A BIODIVERSIDADE
Quem atrever-se a pedir razoabilidade ao comportamento humano deveria
consultar os anais da história para verificar que a loucura, a insanidade, a
desrazão, a perversidade acompanham a evolução da espécie humana desde tempos
remotos. Conta-se que, em Sodoma e Gomorra, a prática de infanticídio era comum
no modo de vida dos cananeus, habitantes daquelas regiões. Escavações em
Megido, Jericó e Gezer revelaram uma área inteira que teria sido um cemitério
de crianças. Era comum o sacrifício dos alicerces naquele tempo: quando se
construía uma casa, sacrificava-se uma criança e seu corpo era depositado em um
alicerce, porque os habitantes da casa acreditavam que isso traria felicidade
ao resto da família. Antropólogos, historiadores, arqueólogos dirão: felizmente
os costumes mudam , o processo civilizatório tende a coibir tais práticas , a
Lei as tipifica como crimes... mas o que me inquieta é que, algum dia, tenha
sido possível praticar o infanticídio como parte de um ritual religioso, que,
algum dia, grupos humanos tenham podido acreditar que, ao fazê-lo, tornaria feliz ou bem-aventurada a
vida de seus familiares. Como não há uma autoridade
metafísica e divina, que possa julgar os criminosos e a quem até possamos
imputar a responsabilidade pela criação de seres tão insanos, desvairados e
perversos, resta que dentre um grupo destes seres extravagantes, excêntricos
subsistam alguns ajuizados, esclarecidos, que concluam que, se a prática de
infanticídio se tornar uma prática generalizada e normal na comunidade como um
todo, ao fim de 60 ou 70 anos, não sobrará mais ninguém para dar continuidade à
espécie. Então, instituiu-se o interdito pela Lei proibindo que crianças sejam
sistematicamente assassinadas, com punição aos perpetradores do assassínio.
Talvez, a seleção natural tenha alguma participação nesse processo de
esclarecimento gradual da humanidade. Talvez, a Natureza, mais sábia que estes
macacos pelados ufanos, tenha contribuído, sem planejamento e intenção, para
selecionar aqueles que poderiam pôr fim a uma barbárie, que, se não cessasse,
levaria à extinção a espécie. A Natureza parece “saber” mais que o animal
humano que a vida é que deve ser o valor maior a ser cultuado, cultivado,
perpetuado em toda a sua diversidade. Que a morte só pode se dar na medida em que
contribui para a eco-organização do todo. O excesso de morte responde ao
excesso de vida. A oposição entre a fecundidade desenfreada ( que gera um
crescimento exponencial da população) e a mortalidade sem peias desempenha o
papel de regular mutuamente os níveis demográficos. Assim, a natureza opera por
meio do processo de reorganização que é parte inerente ao processo de
desorganização. A eco-organização é nutrida e regenerada não apenas pela vida,
mas também pela morte, e é regulada pelo antagonismo entre os excessos de vida
e de morte. Todos os ecossistemas tendem ao equilíbrio e parecem lutar contra
as tendências do grande predador humano para causar sistematicamente o
desequilíbrio, para arruinar a ordem, para deflagrar a morte em excesso. As
sociedades humanas se instituem a partir deste princípio natural: a necessidade
de se reorganizar, de produzir continuamente novas ordens em meio à irrupção
necessária das desordens, das perturbações. Todo excesso seja para o lado da
ordem (totalitarismos) , seja para o da desordem (entropia), deve ser
combatido. Uma lição que os macacos pelados ainda não conseguiram aprender com
a natureza é que a eco-organização é inseparável da constituição, da manutenção
e do desenvolvimento da DIVERSIDADE BIOLÓGICA - diversidade, aliás, é um fato
biofísico que esses animais doentes, loucos e desnaturados insistem em recusar
no modo de organização de suas sociedades e culturas. É em virtude dessa
insistência com que esses animais erram na aprendizagem da diversidade como um
elemento vital constitucional da biocenose (o conjunto de todas as interações
entre os seres vivos no meio geofísico) que ainda é preciso combater os
preconceitos ( no sentido amplo do termo, tanto como pré-concepção enganosa ou
falsa quanto como repúdio, aversão) contra o que é diferente, diverso de um
padrão normativo, que eles mesmos criaram na vida comum, um padrão que não é
algo dado (decretado, posto) nem por um deus, nem legitimado pela ordem
natural. Felizmente, vivemos numa época histórica em que as vozes da
diversidade em todas as suas legítimas manifestações clamam e lutam pelo
direito de reconhecimento, de viver, de contribuir para a construção de
sociedades mais democráticas e plurais. Esse movimento vital, essa agonística
devem ser estimulados, devem ser intensificados contra as forças reacionárias,
conservadoras, contra as mentalidades esclerosadas que persistem em reagir
contra o modo de ser da vida, que se manifesta como pluralidade, diversidade e
exuberância.
(...)
Aquele caso de Sodoma e Gomorra se me deparou num livro que versa sobre
o que diz a Bíblia sobre a homossexualidade. Não há, como já sabia, pois já
havia lido outro livro dedicado ao tema, nenhuma condenação bíblica da
homossexualidade, ao contrário do que acreditam o homem comum e os
fundamentalistas... enfim... mas o que me deixa deveras estarrecido é como se
pode ainda hoje tomar a Bíblia como referência para fundamentar a moral e os
costumes. É claro que muita gente ignora que as morais modernas é produto de um
longo processo de secularização. Nem tudo na Bíblia serve de parâmetro para
normatizar o comportamento moral do homem moderno, pelo menos nas sociedades
industrializadas ocidentais. Em Juízes 19, por exemplo, conta-se a história de
homens que desejavam estuprar um homem estrangeiro hospedado na casa de um
levita. Esse relato é semelhante ao caso de Sodoma e Gomorra. O hóspede deveria
ser entregue aos homens para que fosse violentado sexualmente. Mas o senhor da
casa se nega a fazê-lo e oferece sua filha virgem e sua concubina para que
fossem estupradas no lugar do forasteiro. E assim elas foram abusadas “toda a
noite até pela manhã”. Tal costume (o de oferecer mulheres para que fossem
estupradas no lugar de um forasteiro) é simplesmente repulsivo às
sensibilidades modernas. Todos nós sentimos repulsa a isso. E as mulheres hoje
deveriam todas se sentirem escandalizadas e deveriam se recusar a admitir qualquer
tentativa de usar a Bíblia para admoestá-las e moldar seu modo de viver, de
ser, de pensar... enfim, sua conduta... Sabemos que a sociedade judaica dos
tempos bíblicos era patriarcal; que o patriarcado é uma herança nefasta que
herdamos das culturas que constituem o berço da civilização ocidental. No mundo
antigo, as mulheres eram servas dos seus maridos. Essa condição de submissão,
de servidão das mulheres é patente nos textos bíblicos. Simplesmente os códigos morais vigentes à
época – estamos falando de um período que cobre os séculos VIII e VI a.C. – não são os nossos, não podem balizar
nossas condutas nas sociedades modernas de hoje. Mas ainda encontramos milhares
de mulheres ostentando a Bíblia, pregando a Palavra de Deus em favor da “Família
Tradicional” (lê-se “família patriarcal”) a outras mulheres!... Eis aí um caso
emblemático do oprimido que aceita a sua opressão por não se reconhecer como
sujeito que vive em condições históricas de opressão... Não quero aqui suscitar
discussões intermináveis sobre religião e Bíblia, embora muito me agradem...
(sou ateu), mas não sou nenhum perseguidor de religiosos... Embora eu acredite
que eles vivam num mundo construído por um imaginário-simbólico entretecido por
suas fantasias (mas também sei que todos nós vivemos nossa relação com o real
pela mediação da fantasia no sentido de Lacan... nós evitamos o confronto com o
real como condição necessária para podermos suportar a existência (mas isso é
outro tema)...
Está claro, para quem quer que se debruce sobre as Escrituras Sagradas, (particularmente, sobre o Antigo Testamento) que o que lá encontramos é uma
literatura heterogênea que reflete os modos de viver, de pensar, de se
organizar politicamente e de compreender o mundo, próprios de comunidades humanas que viveram do século VIII ao século VI a .C, e que tais
condições históricas são muito diferentes das nossas. A Bíblia – não me canso
de repetir – é uma obra humana, demasiado humana. É produto de acontecimentos socioculturais,
políticos, econômicos que cobrem a extensão territorial que inclui hoje o
Líbano, Israel, partes da Jordânia, Egito, Palestina e Síria. Em suma, toda uma
região banhada pelos rios Tigre e Eufrates. Lá se encontra o berço da
civilização ocidental (sem esquecer os gregos e romanos, evidentemente)... mas
o bebê cresceu e deveria ser capaz, agora adulto, de emancipar-se
definitivamente de seus pais e seus preconceitos milenares...