Mostrando postagens com marcador Estagnação. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Estagnação. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 4 de novembro de 2025

"Que a vida não significa nada, todo mundo sabe ou pressente: que se salve ao menos por um truque verbal" (Cioran)

 


               

               Estagnação

“Desde sair para dar uma volta até o massacre, o homem só percorre a gama dos atos porque não percebe seu sem-sentido. Tudo que se faz sobre a terra emana de uma ilusão de plenitude no vazio, de um mistério do Nada...”

 

Cioran.

Ocorreu-me, há pouco, que, não conseguiria escrever duas teses de Doutorado, uma dissertação de Mestrado e uma monografia de Especialização, se tivesse de escrevê-las hoje. Lendo algumas páginas de minha tese de doutorado em Filosofia, que compreende 749 páginas, das quais 730 abrigam o desenvolvimento da tese, muito embora admirado da qualidade acadêmica do texto, da meticulosidade com que empreendi a análise do tema de estudo, sinto resplandecer sua insignificância, social, histórica, cosmológica... Não deixo, contudo, de me impressionar com o fato de tê-la escrito durante a pandemia da covid-19. Tive covid, ansiedade e sofri com as aflições da quarentena, mas não desisti de escrevê-la.

É um alívio pensar que levei a termo todo este percurso acadêmico que se iniciou em 2001, quando ingressei no curso de Letras, e que se prolongou até meados de 2023, quando defendi minha segunda tese de doutorado. Não conseguiria escrever tantos trabalhos acadêmicos hoje como escrevi ao longo de 22 anos, não apenas por cuidar desimportante e insignificante essa empresa, mas também por me dar conta de que minha vocação, meu talento para a escrita está minguando. Falta-me o entusiasmo jovial, até ingênuo, que, outrora, animava meus versos, tornava viçosos meus pensamentos. Há quize anos, quando criei meu blog, parecia-me que eu conseguiria viver prolongadamente acalentado pela crença – ilusória, decerto – de que minha escrita, tornando públicas minhas inquietações espirituais e os conhecimentos auferidos no curso de uma prática de leitura diária (não interrompida, a despeito de episódios de declives espirituais e abatimento cerebral), manteria minha existência sustentada por uma rede de sentido (decerto, muito delgada e frágil). Com o blog, abri um espaço para a interlocução. Mas, em dois ou três anos, a interlocução cessou. Meus textos deixaram de estimular comentários e se tornaram nada mais do que artefatos verbais a boiar entre outros dejetos verbais no mar de banalidades dos ciberespaços.

É inapropriado o emprego da palavra “crise” para descrever o estado psicofisiológico com que escrevo este texto. Do grego Krisis, a palavra “crise” significava, originalmente, ‘julgamento’, ‘separação’, ‘momento de decisão’. No domínio discursivo da medicina, ela era usada para designar o momento decisivo de uma doença, em que o padecente poderia evoluir para a cura ou para a morte. Nesse sentido, não vivo uma crise, já que não vislumbro qualquer alteração significativa a sobrevir a este estado em que me encontro. Não estou em crise; estou imerso numa estagnação, que beira ao esgotamento, do qual fala Cioran.

Outrora, escrever, quase cotidianamente,  ajudou-me a atravessar as tempestades da alma, as tormentas da depressão. Recordo aquele tempo não com saudade, mas com certa admiração, pois que dos tormentos depressivos se iam construindo suntuosas catedrais verbais. Daquele tempo, período que se estende de 2005 a 2011, guardo muitos poemas e tantos textos em prosa, com gratidão. Sentia-me mais íntimo das palavras; entretinha-me com elas. Querem uma prova disso? Eis, abaixo, um fragmento de um dos textos escritos naquele período:

 

“Um pensamento insano aconchega-me no âmago e suscita-me uma inquietação: será possível que as palavras conversem umas com as outras? Parece-me que sim. Escrever é uma forma de arte impressionista que combina a verdade das coisas e o sentimento que elas provocam. As palavras dialogam, decerto, pois, quando dou minhas pinceladas verbais, ouço uma orquestra de vozes a compor páginas sinfônicas em meu coração. Muitas vezes, sou apenas ouvinte; mas, às vezes, atrevo-me a participar das conversas.

Toda palavra é grávida de silêncio. O silêncio significa; não é ausência de som. Nenhuma palavra diz tudo; toda palavra tem frestas por onde escorre o silêncio. As palavras criam conceitos através dos quais nós, homens, compreendemos o mundo. Para o senso-comum, palavras são artefatos que empregamos cotidianamente para nos comunicar. Mas as palavras são como lentes pelas quais vemos, sentimos e interpretamos a realidade.

As palavras provocam-me sempre um efeito estético. Fico extasiado com seus contornos, texturas, cores e sabores. Há também o prazer de que me impregno ao pronunciá-las. Pronuncie a palavra esperança. Não é bom pronunciá-la? Há suavidade e doçura em sua estrutura fônica. A palavra amor tem o frescor da brisa marinha e o perfume do jasmim. Outra palavra cujas formas me aprazem é a palavra existência. Pronuncie-a, novamente, leitor! Percebe como ela derrete na boca?

Assim que me pus a escrever este texto, algumas ideias escuras povoavam-me o espírito. Desejava usar a palavra para escrever sobre a palavra, ou melhor, sobre o modo como me relaciono com ela. Para tanto, precisava iluminar aquelas ideias. Agora, um clarão de palavras manifesta-se em minha alma, Quero capturá-las... Mas elas resvalam na minha inépcia. Vão-se como folhas secas ao vento. Talvez, pretendam aninhar-se em espíritos mais sensatos e equilibrados, que não sendo desbravadores da linguagem, conformam-se com os pequenos goles de significado que elas podem dar. Eu, por outro lado, busco extrair toda a seiva semântica delas. Acomodo-as em ambientes sintáticos estranhos aos seus usos convencionais; busco na aparente incompatibilidade semântica de uma combinatória uma nova forma de significação. Atente o leitor para as seguintes combinações: “palavras rasteiras”, “olhos anoitecidos”, “fuga cândida”, “parto verbal”. Note que a arte, como tenha um apelo estético, ou seja, vise a provocar a sensibilidade, a estimular as emoções, a produzir significações, a produzir o Belo, permite-nos experimentar os mais variados conteúdos. Pela arte, o homem exprime seus sentimentos mais profundos, cria imagens que traduz um modo de sentir. Toda forma de arte é um trabalho de recriação ou transformação da realidade. O artista é um criador de mundos, de espaços, beleza, sonhos, etc.”

(Fevereiro de 2010)

 

Mas, hoje, sinto como se os pensamentos me viessem ao espírito como fantasmas, que fugazmente aparecem para sumir na escuridão de um deserto. Escrevo agora com extrema dificuldade. Escrever é uma tarefa inútil. Já não posso mais falar da escrita como dela falou Cioran. Ela nem é um “desafogo extraordinário”, para mim, nem me serve para ajudar a “atravessar os anos”.  Não só sei que as palavras não revelam nada, não esclarecem o que o mundo é verdadeiramente, como também lamento que elas não estimulem, na maioria das pessoas, a compreensão  das ocorrências do mundo. O prazer da escrita sucumbiu à percepção de minha condição existencialmente insignificante. Leio para matar o tempo, para não sofrer de tédio mortal. Eis tudo!

 

O dia seguinte...

 

Ao leitor ausente ou  ao curioso, se fosse dado percorrer fortuitamente os escritos que vieram à luz naquele período, salvo por desatenção ou limitações cognitivas, não escaparia o fato de que a tonalidade afetiva, o humor e a acuidade intelectual sofreram uma radical transformação quando se comparam os escritos produzidos antes de 2011 com os que foram produzidos a partir desse ano. Essa transformação radical não só se deu em função do abandono da tradição religiosa em que fui criado e da assunção do ateísmo; se deu, principalmente, em função de meus avanços no estudo filosófico. O ano de 2014 inaugura uma fase de exuberante transformação intelectual e descerra um caminho sem volta. Desde então, ia se formando um filósofo. Se bem que já me apetecesse a leitura dos filósofos desde 2005, foi somente em 2014 que dei início a minha experiência acadêmica com a filosofia. Foi um período de grande entusiasmo  com o novo mundo que a filosofia me descerrava, período  em que fui tomado de certa vaidade por aperceber-me desperto para uma realidade obnubilada nas vivências do senso comum. No entanto, não tardei a aperceber-me de que no próprio curso de aprofundamento dos estudos filosóficos o estudante ou estudioso é levado a pôr em suspeita a própria filosofia como uma modalidade de saber, uma prática ou atividade intelectual que torne aquele em que nela se exercita uma pessoa dotada de alguma insígnia que o posicione acima dos reles mortais. O encantamento primaveril com a filosofia converteu-se, em alguns anos, portanto, em desencanto, sinal, contudo, - assim penso – de maturidade intelectual e do envelhecimento biológico. É certo que minhas leituras de Cioran foram decisivas também para esse desencanto com a filosofia; decisivas, mormente, para afiar ainda mais meu pessimismo filosófico.

Estou convencido de que a escrita de minha tese de doutorado, para cuja realização foram necessárias extensas e cuidadosas pesquisas sobre o fenômeno do niilismo, foi  o divisor de águas na minha experiência com a filosofia, em especial, com a filosofia acadêmica.

A esta altura, o leitor talvez suspeite de que dissimulei ao declarar a dificuldade que pesa sobre mim ao escrever, uma vez que este texto parece ter superado aquele estado de empobrecimento vocacional  a que eu estaria destinado enquanto sujeito da escrita. Quiçá o leitor tenha razão; mas não renuncio a minha certeza fundamental, alicerçada num sentimento, e não em meros argumentos: careço de aptidão para produzir trabalhos intelectuais da envergadura de minhas teses de doutorado. A bem da verdade, toda produção intelectual que precise se ajustar à normatividade que regula a produção textual acadêmica é, para mim, desestimulante e, por isso, uma prática a cuja realização me recuso.

Embora não deva exclusivamente a Cioran o meu desencantamento com o poder “revelador” das palavras ou da linguagem, a ele devo a revelação das consequências perturbadoras, em nível psicofisiológico-afetivo, dessa profunda e radical ruptura entre a palavra e o mundo. Cito, por fim, um trecho de minha tese de doutorado em que discorro sobre o tema da Lucidez, em Cioran, em cujo desenvolvimento ele vai esclarecendo o processo de ruptura entre o espírito e o mundo. Desde então, sinto-me afundado nessa experiência de Lucidez. Tornei-me um homem lúcido e isso é antes uma condição inquietante, perturbadora, aflitiva que um estado dignificante e salvífico.

 

“Faz-se mister também não confundir a Lucidez, em Cioran, com o esclarecimento da razão. A Lucidez não é um esclarecimento do tipo iluminista. O iluminista não está mais apto para chegar à clarividência que um analfabeto. A Lucidez é uma forma de experiência mística, sem salvação[1]. A salvação, todavia, almejada pelo místico implica uma completa perda de si, um completo desapego ao “eu”, ou mesmo a dissipação do eu individualista (o “ego”, para as tradições de pensamento orientais). Para Cioran, essa dissipação do “eu”, essa aniquilação dos desejos do eu não chega a ser alcançada na experiência da Lucidez. O homem lúcido não experiencia, portanto, salvação alguma; ele está permanentemente ameaçado pelo cansaço do vazio. A Lucidez é uma plenitude do Nada. Não encontrando sentido algum em sua vida, o homem lúcido sacrificaria a própria vida por uma ilusão convincente. Como bem observa Savater, alundindo à condição do homem lúcido e do próprio Cioran, “o desengano já não pode deslocar-se da lucidez; místico fracassado, não é incapaz de orientar seus êxtases para coisa alguma, está condenado a ver”[2]. (tradução nossa)

Como a Lucidez é um estado transitório entre acessos de febre, não resta àquele que a alcançou senão esperar que as crises cessem, certo, porém, de que este consolo é enganoso, pois que o homem lúcido já é outro diferente do que era, uma espécie de desesperado sem consolo. Assim, jamais dispomos da Lucidez, mas somos sempre possuídos por ela. O homem lúcido não pode contar sequer com a ilusão de esperar algo desse estado de desilusionamento. Tampouco deve orgulhar-se de não ser possuído pelas ilusões habituais de que se servem os demais indivíduos para viver e para se proteger das garras do desespero, para evitar as tensões orgânicas, o desequilíbrio espiritual. Nas palavras de Savater, “Tal como o místico, o clarividente alcança seus cumes - ou seus abismos - de lucidez, através de certas experiências que ocorrem em momentos únicos: desejo, dor, terror em face da morte são algumas das principais”[3] (tradução nossa). O medo da morte é um exemplo paradigmático de experiência de Lucidez.

 

[...] quem, no ápice do horror de qualquer noite, vislumbrou o que significa cessar, além de qualquer imagem dramática ou macabra, sofrerá um choque impossível de esquecer ou minimizar; pressentirá que, a partir daí, terá que construir sua vida ocultando de si o que percebeu naquela noite, pois ninguém pode viver sob a sombra letal do inevitável. Esta experiência pode, assim, se tornar uma espécie de ruído surdo, inconsciente, que serve de pano de fundo para o seu cotidiano, conferindo-lhe uma inexplicável ansiedade; mas também pode vir a iluminar tudo, com sua luz predatória, roubando a solidez e a maior parte de tudo o que existe, o Ser em si, infectando cada palavra e cada justificação com a névoa da vacuidade que introduziu o horror naquela noite[4]. (tradução nossa).

 

Consoante Savater, deve-se aproveitar o horror em que está embebida a tomada de consciência do que significa realmente morrer, para favorecer o desenvolvimento da disposição para a Lucidez. Quem nunca sentiu necessidade fisiológica de negar a si mesmo, de negar tudo, de negar em cada coisa o seu ser ou seu deixar de ser, o vazio ofensivo de suas pretensões, a futilidade cruel da vida, quem nunca amaldiçoou, entre soluços, a consciência e a impotência da carne não está predisposto para a Lucidez. Somente a ignorância tem futuro; somente o engano e o autoengano gozam a serena felicidade da tradição. Tudo o que não é ilusão é dádiva; e a dádiva é o acaso, o abismo, o terror. Ainda que tenha alcançado, alguma vez, o estado de desengano, o homem, com frequência, recai no estado de delírio, comumente chamado de “senso comum”. Não obstante, se alguma vez, por um instante que seja, um indivíduo foi atravessado por um grau mínimo de Lucidez, jamais deixará de ser um nostálgico do desengano, “dos véus rasgados e dos templos que se agitam, da noite, da negação e de sua irreprimível gargalhada”[5] (tradução nossa).

Se o lúcido é aquele que está livre do delírio ou da loucura, a Lucidez é, porém, uma condição instável; “é somente uma ilhota luminosa na condição sombria do delirante”[6] (tradução nossa). Lembra Savater que cada momento de Lucidez pode ser nosso último. O delírio é, decerto, a condição normal em que nos instalamos. A Lucidez, por seu turno, é penosa e inquietante; não podemos permanecer nessa condição por longo tempo, de modo que “a principal e indubitável certeza que o lúcido alcança é que deixará de sê-lo”[7] (tradução nossa). Não se deve confundir a Lucidez com a consciência. A Lucidez representa a culminação do processo de ruptura entre o espírito e o mundo, de sorte que “o discurso do mundo e o discurso do discurso - o espírito - são acomodados sem atrito, até que a lucidez marque a descontinuidade entre cada um deles e si mesmo, uma vez demonstrado que ambos são idênticos”[8] (tradução nossa). Para Cioran, nossos sentidos não mentem; é apenas quando se dá a interpretação de seus dados, no momento em que estes são codificados no sistema da língua, que aqueles podem nos enganar e nos enganam.  O homem vive sob o feitiço da palavra que o domina e o define, “mas a vida mesma, tal como a experienciamos, está envolvida nesse feitiço”[9] (tradução nossa). Insurgindo-se contra o feitiço da língua, a Lucidez encontra a vida, a vida desnuda, e se ocupa dela. Todavia, a tentativa de enfrentar o feitiço das palavras com as palavras, ou seja, por meio do discurso, está sempre sob a ameaça de recair no encantamento da língua. Ao usar a língua, acreditamos que a estrutura de nossos enunciados, os estados de coisas neles designados, refletem exatamente a ordem, a estrutura da realidade mesma. O homem comum, geralmente, assume existir uma relação natural entre a palavra e a “coisa” designada; quase sempre se esquece de que a relação entre o significante e o significado no signo, e deste com o seu referente, é resultado de uma convenção[10]. A Lucidez se encarrega de mostrar haver nessa relação uma “fissura”, momento em que, dando-se conta de que o laço que une o significante ao significado, o signo à coisa designada, é uma ficção imaginária, ou é determinada por uma imaginário-simbólico instituído socialmente, realiza-se a ruptura entre o espírito e o mundo e se revela o funcionamento da ficção. Assim, “o delírio se desvanece por uns instantes e o homem lúcido é separado do mundo; mas, sobretudo, ele é separado dos outros homens”[11] (tradução nossa).

O hiato mais profundo e perturbador é o que se instala entre o homem lúcido e o delirante. Cotidianamente, o homem lúcido continuará a reproduzir os mecanismos imaginário-simbólicos que sustentam a vida em sociedade, mas estes se  lhes apresentarão falhos e ineficazes. Se a normalidade plena parece condená-lo a uma condição de estranhamento em relação à existência, ao mundo, “somente o engano, a comédia imita uma vida cujos prazeres deprecia e de cujos fins descrê, podem preencher,  ironicamente e sempre falsamente, a descontinuidade que afasta o homem lúcido do resto dos homens”[12] (tradução nossa). A Lucidez aqui se apresenta como sinônimo de desengano. Ela produz o desengano pleno, completo. A tal desengano pleno pode-se chamar “despertar”. O Todo, isto é, a totalidade do mundo experienciado pelo homem, do universo conhecido, é um mecanismo, e devemos saber desmontar esse mecanismo. O mecanismo do Todo é um complexo de artifícios, de truques, de ficções, de operações imaginário-simbólicas. Como experiência do despertar, em sentido místico, a Lucidez  se determina pela resposta que viermos a dar à questão: até onde se chegou na percepção da irrealidade? Conforme lembra Savater,

 

“[...] Se trata, novamente, de nos purificarmos do feitiço que a vigente explicação do mundo nos colocou: o artificial é apresentado como natural, o fabricado como espontâneo, o arbitrário como necessário, a argumentação que sustenta a coisa toda como um simples reflexo da realidade”[13]. (tradução nossa).

 

 

É preciso, contudo, entender que aquele que despertou não abriu os olhos para uma realidade objetiva; o homem desperto é capaz de perceber, com mais clareza, “os vazios que perfuram o texto do mundo”[14] (tradução nossa). O homem desperto não é um embriagado de luz, mas aquele que se tornou sensível à irrealidade fundamental que o mundo da experiência comum, das nossas vivências ordinárias, mascara. O desperto deixa de estar enganado, porquanto despertar é perceber até que ponto a explicação do mundo escamoteia uma desculpa; e toda coerência, uma falácia. As palavras que o homem lúcido ou desperto usa para dissipar a ilusão não são mais seguras nem mais bem fundamentadas que aquelas com as quais a ilusão cotidiana se enuncia; todavia, se apresentam como pura negação das palavras correntes da vida diária; tendo, por isso, menos pretensão de durar. A Lucidez se encarrega de desnudar as raízes das teorias, a articulação das consequências de cada pensamento. Destarte, segundo Savater, “quem alcança a lucidez é imediatamente despojado da paixão pelo remédio, o resultado mais óbvio do discurso lúcido é o diagnóstico, mas um diagnóstico que exclui ou zomba da ideia de cura”[15] (tradução nossa). Na experiência da Lucidez, a trama verbal se desfaz e a realidade, antes sólida, se torna frágil e porosa. A suspeita e a dúvida precedem o diagnóstico que assinala a deficiência do manto verbal sob o qual experienciamos o mundo. O diagnóstico da Lucidez é sempre negativo, visto que serve de obstáculo tanto para uma ruptura total entre o espírito e o mundo quanto para uma solidariedade inquebrantável entre eles. A fidelidade ao negativo confere à Lucidez seu caráter ingovernável. “

 

( Trecho de minha TESE DE DOUTORADO EM FILOSOFIA DEFENDIDA NA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) em 2023).

 



[1] Savater hesita em identificar a Lucidez com a experiência mística, alegando que, ao contrário desta, a Lucidez não encerra crença nem fé. Como vimos, todavia, Cioran entende que a mística não exige, necessariamente, fé nem adesão a dogmas. Se Savater afirma que o místico pode renunciar a todas as ilusões, exceto a de salvar-se, não deixa de reconhecer que a mística e a Lucidez se assemelham em Cioran, não só porque ambas nos levam a libertar-nos de nossas ilusões habituais, como também porque a Lucidez se define por meio dos memsos vocábulos com que se define a experiência mística no Ocidente e no Oriente: ‘despertar’, ‘ver’, ‘revelação’, ‘experiência’, ‘desenganar-se’, etc. Não acompanhamos Savater em sua hesitação. Para nós, não resta dúvida de que, em Cioran, a Lucidez é tematizada no horizonte da mística heterodoxa, ou seja, se uma mística sem salvação. Por isso, entendemos ser a Lucidez definida por Cioran polissemicamente, de sorte que um dos seus múltiplos sentidos se liga ao campo da mística.

[2] O texto a que a tradução corresponde é: “El desengaño ya no puede moverse de la lucidez; místico bloqueado, no puede orientar su éxtases hacia nada, está condenado a ver”. (ibidem, p. 51-52).

 

[3] O texto a que a tradução corresponde é: “Tal como el místico, el clarividente alcanza sus cumbres - ou seus abismos - de lucidez a  favor de ciertas experiencias que se poducen em momentos únicos; el deseo, el dolor, el pánico a la muerte son algunas de las principales”. (ibidem, p. 52).

 

[4] O texto a que a tradução corresponde é: “[...]quien, em alto horror de cualquier noche, há vislumbrado lo que significa cesar, más allá de cualquier imagen dramática o macabra, sufrirá un choque imposible de olvidar o minimizar; presentirá que, desde esse punto, deberá construir su vida de espaldas a lo que ha percebido esa noche, pues nada puede viver bajo la sombra letal de lo inevitable. Esa experiencia que puede convertise, de este modo, en una especie de ruido surdo, inconsciente, que sirva de fondo a su contidianidad, poniendo en ele un punto de inexplicable zozobra; pero también pudiera llegar a alumbrar cada coisa com su luz depredadora, robando la solidez y el bulto a todo lo existente, al Ser mismo, contagiando cada palabra y cada justificación de la niebla de vacuidad que introdujo el pânico em aquela noche”. (ibidem, p. 52-53).

[5] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] de los velos rasgados y de los templos que se tambalean, de la noche, de la negación y su irreprimible carcajada”. (ibidem, p. 54).

 

[6] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] es sólo un islote luminoso en la turbia condición del delirante”. (Ibidem, p. 40).

 

[7] O texto a que a tradução corresponde é: “La principal e indubitable certeza que alcanza el lúcido es que dejará de serlo”. (idem).

 

[8] O texto a que a tradução corresponde é: “El discurso del mundo y el discurso del discurso – o espíritu – se acomodan sin rechinamiento hasta que la lucidez marca la discontinuidad entre cada uno de ellos u sí mismo, uma vez demonstrado que ambos son idênticos”. (Ibidem, p. 41).

 

[9] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] pero la vida misma, tal como la padecemos, se cifra em esse embrujo”. (idem).

 

[10] Convém lembrar que, na perspectiva sociocognitivo-interacional da linguagem,em que nos baseamos, os “referentes” das expressões linguísticas não são vistos como “coisas” de um mundo extralinguístico, mas como objetos-de-dicurso, entidades sociocognitivas construídas discursivamente.

 

[11] O texto a que corresponde a tradução é: “El delírio se desvanece por uns momentos y el lúcido queda separado del mundo; pero, sobretodo, queda separado de los otros hombres”. (Ibidem, p 42).

 

[12] O texto a que a tradução corresponde é: “ Sólo el engano, la comedia que mimetiza una vida cuyos placeres deprecia y de cuyos fins descree, puede colmar, ironicamente y siempre en falso, la discontinuidad que aleja al lúcido del resto de los hombres”. (Ibidem, p. 43).

[13] O texto a que a tradução corresponde é: “Se trata, nevamente, de purgarnos del hechizo que la vigente explicación del mundo nos inflige: lo artificioso se apresenta como natural, lo preparado como espontâneo, lo arbitrário como necesário, la argumentación que sostiene todo el tinglado como el simple refejo de la realidad misma”. (Ibidem, p. 44).

 

[14] O texto a que a tradução corresponde é: “[...] los vacíos que agujerean el texto del mundo”. (Idem).

 

[15] O texto a que a tradução corresponde é: “Quien alcanza la lucidez se despoja de imediato de la passion de remediar lo próprio del discurso lúcido, su resultado más evidente, es el diagnóstico, pero un diagnóstico que excluye o se burla de la ideia de curación”. (ibidem, p. 45).