Estagnação
“Desde sair para dar uma volta até o
massacre, o homem só percorre a gama dos atos porque não percebe seu
sem-sentido. Tudo que se faz sobre a terra emana de uma ilusão de plenitude no
vazio, de um mistério do Nada...”
Cioran.
Ocorreu-me, há pouco, que, não conseguiria escrever duas
teses de Doutorado, uma dissertação de Mestrado e uma monografia de
Especialização, se tivesse de escrevê-las hoje. Lendo algumas páginas de minha
tese de doutorado em Filosofia, que compreende 749 páginas, das quais 730
abrigam o desenvolvimento da tese, muito embora admirado da qualidade acadêmica
do texto, da meticulosidade com que empreendi a análise do tema de estudo,
sinto resplandecer sua insignificância, social, histórica, cosmológica... Não deixo,
contudo, de me impressionar com o fato de tê-la escrito durante a pandemia da
covid-19. Tive covid, ansiedade e sofri com as aflições da quarentena, mas não
desisti de escrevê-la.
É um
alívio pensar que levei a termo todo este percurso acadêmico que se iniciou em
2001, quando ingressei no curso de Letras, e que se prolongou até meados de
2023, quando defendi minha segunda tese de doutorado. Não conseguiria escrever
tantos trabalhos acadêmicos hoje como escrevi ao longo de 22 anos, não apenas
por cuidar desimportante e insignificante essa empresa, mas também por me dar
conta de que minha vocação, meu talento para a escrita está minguando. Falta-me
o entusiasmo jovial, até ingênuo, que, outrora, animava meus versos, tornava
viçosos meus pensamentos. Há quize anos, quando criei meu blog, parecia-me que
eu conseguiria viver prolongadamente acalentado pela crença – ilusória, decerto
– de que minha escrita, tornando públicas minhas inquietações espirituais e os
conhecimentos auferidos no curso de uma prática de leitura diária (não
interrompida, a despeito de episódios de declives espirituais e abatimento
cerebral), manteria minha existência sustentada por uma rede de sentido
(decerto, muito delgada e frágil). Com o blog, abri um espaço para a
interlocução. Mas, em dois ou três anos, a interlocução cessou. Meus textos
deixaram de estimular comentários e se tornaram nada mais do que artefatos
verbais a boiar entre outros dejetos verbais no mar de banalidades dos
ciberespaços.
É
inapropriado o emprego da palavra “crise” para descrever o estado
psicofisiológico com que escrevo este texto. Do grego Krisis, a palavra “crise”
significava, originalmente, ‘julgamento’, ‘separação’, ‘momento de decisão’. No
domínio discursivo da medicina, ela era usada para designar o momento decisivo
de uma doença, em que o padecente poderia evoluir para a cura ou para a morte. Nesse
sentido, não vivo uma crise, já que não vislumbro qualquer alteração
significativa a sobrevir a este estado em que me encontro. Não estou em crise;
estou imerso numa estagnação, que beira ao esgotamento, do qual fala Cioran.
Outrora,
escrever, quase cotidianamente, ajudou-me
a atravessar as tempestades da alma, as tormentas da depressão. Recordo aquele
tempo não com saudade, mas com certa admiração, pois que dos tormentos
depressivos se iam construindo suntuosas catedrais verbais. Daquele tempo,
período que se estende de 2005 a 2011, guardo muitos poemas e tantos textos em
prosa, com gratidão. Sentia-me mais íntimo das palavras; entretinha-me com
elas. Querem uma prova disso? Eis, abaixo, um fragmento de um dos textos
escritos naquele período:
“Um
pensamento insano aconchega-me no âmago e suscita-me uma inquietação: será
possível que as palavras conversem umas com as outras? Parece-me que sim.
Escrever é uma forma de arte impressionista que combina a verdade das coisas e
o sentimento que elas provocam. As palavras dialogam, decerto, pois, quando dou
minhas pinceladas verbais, ouço uma orquestra de vozes a compor páginas
sinfônicas em meu coração. Muitas vezes, sou apenas ouvinte; mas, às vezes,
atrevo-me a participar das conversas.
Toda
palavra é grávida de silêncio. O silêncio significa; não é ausência de som.
Nenhuma palavra diz tudo; toda palavra tem frestas por onde escorre o silêncio.
As palavras criam conceitos através dos quais nós, homens, compreendemos o
mundo. Para o senso-comum, palavras são artefatos que empregamos cotidianamente
para nos comunicar. Mas as palavras são como lentes pelas quais vemos, sentimos
e interpretamos a realidade.
As
palavras provocam-me sempre um efeito estético. Fico extasiado com seus
contornos, texturas, cores e sabores. Há também o prazer de que me impregno ao
pronunciá-las. Pronuncie a palavra esperança. Não é bom pronunciá-la? Há
suavidade e doçura em sua estrutura fônica. A palavra amor tem o frescor da
brisa marinha e o perfume do jasmim. Outra palavra cujas formas me aprazem é a
palavra existência. Pronuncie-a, novamente, leitor! Percebe como ela derrete na
boca?
Assim
que me pus a escrever este texto, algumas ideias escuras povoavam-me o
espírito. Desejava usar a palavra para escrever sobre a palavra, ou melhor,
sobre o modo como me relaciono com ela. Para tanto, precisava iluminar aquelas
ideias. Agora, um clarão de palavras manifesta-se em minha alma, Quero
capturá-las... Mas elas resvalam na minha inépcia. Vão-se como folhas secas ao
vento. Talvez, pretendam aninhar-se em espíritos mais sensatos e equilibrados,
que não sendo desbravadores da linguagem, conformam-se com os pequenos goles de
significado que elas podem dar. Eu, por outro lado, busco extrair toda a seiva
semântica delas. Acomodo-as em ambientes sintáticos estranhos aos seus usos
convencionais; busco na aparente incompatibilidade semântica de uma combinatória
uma nova forma de significação. Atente o leitor para as seguintes combinações:
“palavras rasteiras”, “olhos anoitecidos”, “fuga cândida”, “parto verbal”. Note
que a arte, como tenha um apelo estético, ou seja, vise a provocar a
sensibilidade, a estimular as emoções, a produzir significações, a produzir o
Belo, permite-nos experimentar os mais variados conteúdos. Pela arte, o homem
exprime seus sentimentos mais profundos, cria imagens que traduz um modo de
sentir. Toda forma de arte é um trabalho de recriação ou transformação da
realidade. O artista é um criador de mundos, de espaços, beleza, sonhos, etc.”
(Fevereiro
de 2010)
Mas,
hoje, sinto como se os pensamentos me viessem ao espírito como fantasmas, que
fugazmente aparecem para sumir na escuridão de um deserto. Escrevo agora com
extrema dificuldade. Escrever é uma tarefa inútil. Já não posso mais falar da
escrita como dela falou Cioran. Ela nem é um “desafogo extraordinário”, para
mim, nem me serve para ajudar a “atravessar os anos”. Não só sei que as palavras não revelam nada,
não esclarecem o que o mundo é verdadeiramente, como também lamento que elas
não estimulem, na maioria das pessoas, a compreensão das ocorrências do mundo. O prazer da escrita
sucumbiu à percepção de minha condição existencialmente insignificante. Leio
para matar o tempo, para não sofrer de tédio mortal. Eis tudo!
O
dia seguinte...
Ao
leitor ausente ou ao curioso, se fosse
dado percorrer fortuitamente os escritos que vieram à luz naquele período,
salvo por desatenção ou limitações cognitivas, não escaparia o fato de que a
tonalidade afetiva, o humor e a acuidade intelectual sofreram uma radical
transformação quando se comparam os escritos produzidos antes de 2011 com os
que foram produzidos a partir desse ano. Essa transformação radical não só se
deu em função do abandono da tradição religiosa em que fui criado e da assunção
do ateísmo; se deu, principalmente, em função de meus avanços no estudo
filosófico. O ano de 2014 inaugura uma fase de exuberante transformação
intelectual e descerra um caminho sem volta. Desde então, ia se formando um
filósofo. Se bem que já me apetecesse a leitura dos filósofos desde 2005, foi
somente em 2014 que dei início a minha experiência acadêmica com a filosofia.
Foi um período de grande entusiasmo com o
novo mundo que a filosofia me descerrava, período em que fui tomado de certa vaidade por
aperceber-me desperto para uma realidade obnubilada nas vivências do senso
comum. No entanto, não tardei a aperceber-me de que no próprio curso de
aprofundamento dos estudos filosóficos o estudante ou estudioso é levado a pôr
em suspeita a própria filosofia como uma modalidade de saber, uma prática ou
atividade intelectual que torne aquele em que nela se exercita uma pessoa
dotada de alguma insígnia que o posicione acima dos reles mortais. O
encantamento primaveril com a filosofia converteu-se, em alguns anos, portanto,
em desencanto, sinal, contudo, - assim penso – de maturidade intelectual e do
envelhecimento biológico. É certo que minhas leituras de Cioran foram decisivas
também para esse desencanto com a filosofia; decisivas, mormente, para afiar
ainda mais meu pessimismo filosófico.
Estou
convencido de que a escrita de minha tese de doutorado, para cuja realização
foram necessárias extensas e cuidadosas pesquisas sobre o fenômeno do niilismo,
foi o divisor de águas na minha
experiência com a filosofia, em especial, com a filosofia acadêmica.
A
esta altura, o leitor talvez suspeite de que dissimulei ao declarar a
dificuldade que pesa sobre mim ao escrever, uma vez que este texto parece ter
superado aquele estado de empobrecimento vocacional a que eu estaria destinado enquanto sujeito da
escrita. Quiçá o leitor tenha razão; mas não renuncio a minha certeza
fundamental, alicerçada num sentimento, e não em meros argumentos: careço de
aptidão para produzir trabalhos intelectuais da envergadura de minhas teses de
doutorado. A bem da verdade, toda produção intelectual que precise se ajustar à
normatividade que regula a produção textual acadêmica é, para mim,
desestimulante e, por isso, uma prática a cuja realização me recuso.
Embora
não deva exclusivamente a Cioran o meu desencantamento com o poder “revelador”
das palavras ou da linguagem, a ele devo a revelação das consequências
perturbadoras, em nível psicofisiológico-afetivo, dessa profunda e radical
ruptura entre a palavra e o mundo. Cito, por fim, um trecho de minha tese de
doutorado em que discorro sobre o tema da Lucidez, em Cioran, em cujo
desenvolvimento ele vai esclarecendo o processo de ruptura entre o espírito e o
mundo. Desde então, sinto-me afundado nessa experiência de Lucidez. Tornei-me
um homem lúcido e isso é antes uma condição inquietante, perturbadora, aflitiva
que um estado dignificante e salvífico.
“Faz-se
mister também não confundir a Lucidez, em Cioran, com o esclarecimento da
razão. A Lucidez não é um esclarecimento do tipo iluminista. O iluminista não
está mais apto para chegar à clarividência que um analfabeto. A Lucidez é uma
forma de experiência mística, sem salvação[1]. A
salvação, todavia, almejada pelo místico implica uma completa perda de si, um
completo desapego ao “eu”, ou mesmo a dissipação do eu individualista (o “ego”,
para as tradições de pensamento orientais). Para Cioran, essa dissipação do
“eu”, essa aniquilação dos desejos do eu não chega a ser alcançada na
experiência da Lucidez. O homem lúcido não experiencia, portanto, salvação
alguma; ele está permanentemente ameaçado pelo cansaço do vazio. A Lucidez é
uma plenitude do Nada. Não encontrando sentido algum em sua vida, o homem
lúcido sacrificaria a própria vida por uma ilusão convincente. Como bem observa
Savater, alundindo à condição do homem lúcido e do próprio Cioran, “o desengano
já não pode deslocar-se da lucidez; místico fracassado, não é incapaz de
orientar seus êxtases para coisa alguma, está condenado a ver”[2].
(tradução nossa)
Como
a Lucidez é um estado transitório entre acessos de febre, não resta àquele que
a alcançou senão esperar que as crises cessem, certo, porém, de que este
consolo é enganoso, pois que o homem lúcido já é outro diferente do que era,
uma espécie de desesperado sem consolo. Assim, jamais dispomos da Lucidez, mas
somos sempre possuídos por ela. O homem lúcido não pode contar sequer com a
ilusão de esperar algo desse estado de desilusionamento. Tampouco deve
orgulhar-se de não ser possuído pelas ilusões habituais de que se servem os
demais indivíduos para viver e para se proteger das garras do desespero, para
evitar as tensões orgânicas, o desequilíbrio espiritual. Nas palavras de
Savater, “Tal como o místico, o clarividente alcança seus cumes - ou seus abismos
- de lucidez, através de certas experiências que ocorrem em momentos únicos:
desejo, dor, terror em face da morte são algumas das principais”[3]
(tradução nossa). O medo da morte é um exemplo paradigmático de experiência de
Lucidez.
[...] quem, no ápice do horror de
qualquer noite, vislumbrou o que significa cessar, além de qualquer imagem
dramática ou macabra, sofrerá um choque impossível de esquecer ou minimizar;
pressentirá que, a partir daí, terá que construir sua vida ocultando de si o
que percebeu naquela noite, pois ninguém pode viver sob a sombra letal do
inevitável. Esta experiência pode, assim, se tornar uma espécie de ruído surdo,
inconsciente, que serve de pano de fundo para o seu cotidiano, conferindo-lhe
uma inexplicável ansiedade; mas também pode vir a iluminar tudo, com sua luz
predatória, roubando a solidez e a maior parte de tudo o que existe, o Ser em
si, infectando cada palavra e cada justificação com a névoa da vacuidade que
introduziu o horror naquela noite[4].
(tradução nossa).
Consoante
Savater, deve-se aproveitar o horror em que está embebida a tomada de
consciência do que significa realmente morrer, para favorecer o desenvolvimento
da disposição para a Lucidez. Quem nunca sentiu necessidade fisiológica de
negar a si mesmo, de negar tudo, de negar em cada coisa o seu ser ou seu deixar
de ser, o vazio ofensivo de suas pretensões, a futilidade cruel da vida, quem
nunca amaldiçoou, entre soluços, a consciência e a impotência da carne não está
predisposto para a Lucidez. Somente a ignorância tem futuro; somente o engano e
o autoengano gozam a serena felicidade da tradição. Tudo o que não é ilusão é
dádiva; e a dádiva é o acaso, o abismo, o terror. Ainda que tenha alcançado,
alguma vez, o estado de desengano, o homem, com frequência, recai no estado de
delírio, comumente chamado de “senso comum”. Não obstante, se alguma vez, por
um instante que seja, um indivíduo foi atravessado por um grau mínimo de
Lucidez, jamais deixará de ser um nostálgico do desengano, “dos véus rasgados e
dos templos que se agitam, da noite, da negação e de sua irreprimível
gargalhada”[5]
(tradução nossa).
Se
o lúcido é aquele que está livre do delírio ou da loucura, a Lucidez é, porém,
uma condição instável; “é somente uma ilhota luminosa na condição sombria do
delirante”[6]
(tradução nossa). Lembra Savater que cada momento de Lucidez pode ser nosso
último. O delírio é, decerto, a condição normal em que nos instalamos. A
Lucidez, por seu turno, é penosa e inquietante; não podemos permanecer nessa
condição por longo tempo, de modo que “a principal e indubitável certeza que o
lúcido alcança é que deixará de sê-lo”[7]
(tradução nossa). Não se deve confundir a Lucidez com a consciência. A Lucidez
representa a culminação do processo de ruptura entre o espírito e o mundo, de
sorte que “o discurso do mundo e o discurso do discurso - o espírito - são
acomodados sem atrito, até que a lucidez marque a descontinuidade entre cada um
deles e si mesmo, uma vez demonstrado que ambos são idênticos”[8]
(tradução nossa). Para Cioran, nossos sentidos não mentem; é apenas quando se
dá a interpretação de seus dados, no momento em que estes são codificados no
sistema da língua, que aqueles podem nos enganar e nos enganam. O homem vive sob o feitiço da palavra que o
domina e o define, “mas a vida mesma, tal como a experienciamos, está envolvida
nesse feitiço”[9]
(tradução nossa). Insurgindo-se contra o feitiço da língua, a Lucidez encontra
a vida, a vida desnuda, e se ocupa dela. Todavia, a tentativa de enfrentar o
feitiço das palavras com as palavras, ou seja, por meio do discurso, está
sempre sob a ameaça de recair no encantamento da língua. Ao usar a língua,
acreditamos que a estrutura de nossos enunciados, os estados de coisas neles
designados, refletem exatamente a ordem, a estrutura da realidade mesma. O
homem comum, geralmente, assume existir uma relação natural entre a palavra e a
“coisa” designada; quase sempre se esquece de que a relação entre o
significante e o significado no signo, e deste com o seu referente, é resultado
de uma convenção[10].
A Lucidez se encarrega de mostrar haver nessa relação uma “fissura”, momento em
que, dando-se conta de que o laço que une o significante ao significado, o
signo à coisa designada, é uma ficção imaginária, ou é determinada por uma
imaginário-simbólico instituído socialmente, realiza-se a ruptura entre o
espírito e o mundo e se revela o funcionamento da ficção. Assim, “o delírio se
desvanece por uns instantes e o homem lúcido é separado do mundo; mas,
sobretudo, ele é separado dos outros homens”[11]
(tradução nossa).
O
hiato mais profundo e perturbador é o que se instala entre o homem lúcido e o
delirante. Cotidianamente, o homem lúcido continuará a reproduzir os mecanismos
imaginário-simbólicos que sustentam a vida em sociedade, mas estes se lhes apresentarão falhos e ineficazes. Se a
normalidade plena parece condená-lo a uma condição de estranhamento em relação
à existência, ao mundo, “somente o engano, a comédia imita uma vida cujos
prazeres deprecia e de cujos fins descrê, podem preencher, ironicamente e sempre falsamente, a
descontinuidade que afasta o homem lúcido do resto dos homens”[12]
(tradução nossa). A Lucidez aqui se apresenta como sinônimo de desengano. Ela
produz o desengano pleno, completo. A tal desengano pleno pode-se chamar
“despertar”. O Todo, isto é, a totalidade do mundo experienciado pelo homem, do
universo conhecido, é um mecanismo, e devemos saber desmontar esse mecanismo. O
mecanismo do Todo é um complexo de artifícios, de truques, de ficções, de
operações imaginário-simbólicas. Como experiência do despertar, em sentido
místico, a Lucidez se determina pela
resposta que viermos a dar à questão: até onde se chegou na percepção da
irrealidade? Conforme lembra Savater,
“[...] Se trata, novamente, de nos
purificarmos do feitiço que a vigente explicação do mundo nos colocou: o
artificial é apresentado como natural, o fabricado como espontâneo, o
arbitrário como necessário, a argumentação que sustenta a coisa toda como um
simples reflexo da realidade”[13].
(tradução nossa).
É
preciso, contudo, entender que aquele que despertou não abriu os olhos para uma
realidade objetiva; o homem desperto é capaz de perceber, com mais clareza, “os
vazios que perfuram o texto do mundo”[14]
(tradução nossa). O homem desperto não é um embriagado de luz, mas aquele que
se tornou sensível à irrealidade fundamental que o mundo da experiência comum,
das nossas vivências ordinárias, mascara. O desperto deixa de estar enganado,
porquanto despertar é perceber até que ponto a explicação do mundo escamoteia
uma desculpa; e toda coerência, uma falácia. As palavras que o homem lúcido ou
desperto usa para dissipar a ilusão não são mais seguras nem mais bem
fundamentadas que aquelas com as quais a ilusão cotidiana se enuncia; todavia,
se apresentam como pura negação das palavras correntes da vida diária; tendo,
por isso, menos pretensão de durar. A Lucidez se encarrega de desnudar as
raízes das teorias, a articulação das consequências de cada pensamento. Destarte,
segundo Savater, “quem alcança a lucidez é imediatamente despojado da paixão
pelo remédio, o resultado mais óbvio do discurso lúcido é o diagnóstico, mas um
diagnóstico que exclui ou zomba da ideia de cura”[15]
(tradução nossa). Na experiência da Lucidez, a trama verbal se desfaz e a
realidade, antes sólida, se torna frágil e porosa. A suspeita e a dúvida
precedem o diagnóstico que assinala a deficiência do manto verbal sob o qual
experienciamos o mundo. O diagnóstico da Lucidez é sempre negativo, visto que
serve de obstáculo tanto para uma ruptura total entre o espírito e o mundo
quanto para uma solidariedade inquebrantável entre eles. A fidelidade ao
negativo confere à Lucidez seu caráter ingovernável. “
(
Trecho de minha TESE DE DOUTORADO EM FILOSOFIA DEFENDIDA NA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO (UERJ) em 2023).
[1] Savater hesita em identificar a
Lucidez com a experiência mística, alegando que, ao contrário desta, a Lucidez
não encerra crença nem fé. Como vimos, todavia, Cioran entende que a mística
não exige, necessariamente, fé nem adesão a dogmas. Se Savater afirma que o
místico pode renunciar a todas as ilusões, exceto a de salvar-se, não deixa de
reconhecer que a mística e a Lucidez se assemelham em Cioran, não só porque
ambas nos levam a libertar-nos de nossas ilusões habituais, como também porque
a Lucidez se define por meio dos memsos vocábulos com que se define a
experiência mística no Ocidente e no Oriente: ‘despertar’, ‘ver’, ‘revelação’,
‘experiência’, ‘desenganar-se’, etc. Não acompanhamos Savater em sua hesitação.
Para nós, não resta dúvida de que, em Cioran, a Lucidez é tematizada no
horizonte da mística heterodoxa, ou seja, se uma mística sem salvação. Por
isso, entendemos ser a Lucidez definida por Cioran polissemicamente, de sorte
que um dos seus múltiplos sentidos se liga ao campo da mística.
[2] O texto a que a tradução
corresponde é: “El desengaño ya no puede moverse de la lucidez; místico
bloqueado, no puede orientar su éxtases hacia nada, está condenado a ver”.
(ibidem, p. 51-52).
[3] O texto a que a tradução
corresponde é: “Tal como el místico, el clarividente alcanza sus cumbres - ou
seus abismos - de lucidez a favor de
ciertas experiencias que se poducen em momentos únicos; el deseo, el dolor, el
pánico a la muerte son algunas de las principales”. (ibidem, p. 52).
[4] O texto a que a tradução
corresponde é: “[...]quien, em alto horror de cualquier noche, há vislumbrado
lo que significa cesar, más allá de cualquier imagen dramática o macabra,
sufrirá un choque imposible de olvidar o minimizar; presentirá que, desde esse
punto, deberá construir su vida de espaldas a lo que ha percebido esa noche,
pues nada puede viver bajo la sombra letal de lo inevitable. Esa experiencia
que puede convertise, de este modo, en una especie de ruido surdo,
inconsciente, que sirva de fondo a su contidianidad, poniendo en ele un punto
de inexplicable zozobra; pero también pudiera llegar a alumbrar cada coisa com
su luz depredadora, robando la solidez y el bulto a todo lo existente, al Ser
mismo, contagiando cada palabra y cada justificación de la niebla de vacuidad
que introdujo el pânico em aquela noche”. (ibidem, p. 52-53).
[5] O texto a que a tradução
corresponde é: “[...] de los velos rasgados y de los templos que se tambalean,
de la noche, de la negación y su irreprimible carcajada”. (ibidem, p. 54).
[6] O texto a que a tradução
corresponde é: “[...] es sólo un islote luminoso en la turbia condición del
delirante”. (Ibidem, p. 40).
[7] O texto a que a tradução
corresponde é: “La principal e indubitable certeza que alcanza el lúcido es que
dejará de serlo”. (idem).
[8] O texto a que a tradução
corresponde é: “El discurso del mundo y el discurso del discurso – o espíritu –
se acomodan sin rechinamiento hasta que la lucidez marca la discontinuidad
entre cada uno de ellos u sí mismo, uma vez demonstrado que ambos son idênticos”.
(Ibidem, p. 41).
[9] O texto a que a tradução
corresponde é: “[...] pero la vida misma, tal como la padecemos, se cifra em
esse embrujo”. (idem).
[10] Convém lembrar que, na perspectiva
sociocognitivo-interacional da linguagem,em que nos baseamos, os “referentes”
das expressões linguísticas não são vistos como “coisas” de um mundo
extralinguístico, mas como objetos-de-dicurso, entidades sociocognitivas
construídas discursivamente.
[11] O texto a que corresponde a
tradução é: “El delírio se desvanece por uns momentos y el lúcido queda
separado del mundo; pero, sobretodo, queda separado de los otros hombres”.
(Ibidem, p 42).
[12] O texto a que a tradução
corresponde é: “ Sólo el engano, la comedia que mimetiza una vida cuyos
placeres deprecia y de cuyos fins descree, puede colmar, ironicamente y siempre
en falso, la discontinuidad que aleja al lúcido del resto de los hombres”. (Ibidem,
p. 43).
[13] O texto a que a tradução
corresponde é: “Se trata, nevamente, de purgarnos del hechizo que la vigente
explicación del mundo nos inflige: lo artificioso se apresenta como natural, lo
preparado como espontâneo, lo arbitrário como necesário, la argumentación que sostiene
todo el tinglado como el simple refejo de la realidad misma”. (Ibidem, p. 44).
[14] O texto a que a tradução
corresponde é: “[...] los vacíos que agujerean el texto del mundo”. (Idem).
[15] O texto a que a tradução
corresponde é: “Quien alcanza la lucidez se despoja de imediato de la passion
de remediar lo próprio del discurso lúcido, su resultado más evidente, es el
diagnóstico, pero un diagnóstico que excluye o se burla de la ideia de curación”.
(ibidem, p. 45).