segunda-feira, 11 de julho de 2011

Amor através dos discursos

                                                
                  

                       Discursos e Amor

C hamou-me a atenção a seguinte passagem, em O amor em palavras: o discurso amoroso em questão:

“(...) o discurso amoroso, de origem incerta, esteve presente em todos os momentos da história do homem e assim deverá continuar, em movimento constante, até o fim dos tempos. Impreciso, vago, escorregadio. Assim é o discurso. E sobre o amor o que temos? Discursos. E só”
(pp. 34-35)


A autora, Isabel Osório T. D. Coutto, lembra-nos que a relação entre amor e palavra (ou discurso) estava presente em O Banquete, de Platão. Nessa obra, Eros era manifestado de diversas formas através do logos (palavra, linguagem, discurso). Em uma das redações escolares citadas pela autora, um aluno da 8ª série escreve que o amor “é dizer que a gente gosta de uma pessoa e ela gosta de você” (p. 34). Mais adiante, acrescenta: “O amor é dizer que eu te amo e tu me ama”.
A construção ideológica do amor nos chega por meio de vozes, ou discursos, cultural e historicamente determinados. O imaginário do amor é tecido, em grande parte, pelos discursos legados à posteridade em O Banquete. Além disso, o ideário do amor romântico, caracterizado pela necessidade de consumação no laço matrimonial ainda encontra raízes no imaginário do homem pós-moderno. Os valores do amor romântico ainda estão presentes na literatura, no cinema, nas revistas, na televisão.
É preciso, antes de prosseguirmos, considerar, em linhas gerais, a função do discurso relativamente à sociedade que o produz. Discurso deve ser entendido como prática social, que é moldada pela estrutura social e, ao mesmo tempo, é constitutivo dessa estrutura. Através do discurso, a estrutura social é constituída, reproduzida e modificada. Discursos são, pois, formas de ação sobre o mundo e sobre a sociedade. Trata-se de um fenômeno da vida social inter-relacionado a outros elementos dessa vida.
Toda prática discursiva envolve processos sociocognitivos de produção, distribuição e consumo de textos. Tais processos estão relacionados a âmbitos políticos, econômicos e institucionais (ideológicos) específicos.
Portanto, a forma de dizer o amor está intimamente relacionada à forma como desejamos experienciá-lo. Como seja um tema universal, há muitos discursos sobre o amor. A obra referida O Banquete dá-nos testemunho disso. Uma das vertentes discursivas dizem do amor que é um sentimento sublime, o mais elevado, o mais nobre dentre os bons sentimentos. Naquela obra, encontraremos a ideia de amor como força ordenadora do cosmos, ou força responsável pela harmonia do universo.
Uma interessante amostra discursiva dos “retratos” do amor através dos séculos é o poema de Carlos Drummond de Andrade, referido abaixo. Leiamos com atenção:

Balada do amor através das idades

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria do meu bergantim.
Mas quando eu ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal da cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.

Depois, (tempos mais amenos)
fui cortesão em Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina;

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.

(Carlos Drummond de Andrade)

Note-se que o poema, de estilo narrativo, expressa a experiência amorosa através das épocas. Na primeira estrofe, faz-se referência ao amor na Grécia Antiga, mais precisamente no tempo mítico da Guerra de Tróia. Na segunda estrofe, o amor é experienciado no período cristão, em Roma. Ele era um soldado romano que se apaixona por uma cristã lançada aos leões. A cada período os amantes se encontram, como se reencarnassem, mas nunca conseguem viver juntos. A morte é seu destino. Na última estrofe, finalmente, chega-se à época moderna, em que vive o homem prático, individualista, independente, que vai ao cinema, e não precisa enfrentar leões; um típico consumidor das sociedades modernas que tem dinheiro no bolso, que não tem de duelar para viver junto à pessoa amada, muito embora ainda conserve o sonho de felicidade amorosa oferecida pelos filmes hollywoodianos.
Embora pareça simplista a visão do estudante sobre o amor, ele não deixa de revelar a relação entre Eros e Logos, discutida em O Banquete. Claro é que o aluno não tem consciência disso, o que nos mostra que o imaginário do amor é devedor da construção ideológica através do discurso da Antiguidade Clássica. Ora, ele dá testemunho do resultado dos saberes acumulados pelas gerações durante séculos.
O imaginário do amor é construído discursivamente pelas vozes (autores, personagens, pessoas comuns...) que o dizem através das épocas. Atualmente, fala-se em amor líquido, contrariamente à concepção tradicional do amor como sentimento de permanência, de fidelidade à própria união que o engendrou. O amor líquido é descartável, fugaz, porque escorre, se dissipa, dada a sua fragilidade, e urgência. O amor líquido é resultado de práticas sociais em que os envolvidos são estimulados ao consumo desenfreado de coisas e pessoas.
É interessante notar que há duas grandes vertentes de estudo sobre o amor: uma realista, de que se encarrega a ciência, preocupada com a descrição dos processos fisiológicos ocorridos no organismo de um indivíduo “acometido” de amor e/ou paixão; e uma idealista, mais abstrata e especulativa.
O amor, como abstração, como matéria de pensamento, se dissolve em face da carência de modelos de experiência amorosa que a sustentem. Em outras palavras, é comum que se diga que não sabemos o que é o amor, que há um grande hiato entre o que se diz do amor e a forma como o experienciamos. Sucede que, em geral, não somos incentivados, ou ensinados a pensar sobre o amor, a refletir sobre a experiência amorosa. Disso não se segue que pensar sobre o amor seja garantia de prosperidade; mas pensá-lo permite-nos situá-lo na dimensão da vida real e reconhecê-lo nas  suas diversas manifestações. Nossa dificuldade de entendê-lo se deve, em parte, à dificuldade de dizê-lo, de pensá-lo.
O amor é corpo, é intimidade da alma; é sua nudez revelada no convívio com a pessoa amada. Discurso nenhum apreenderá toda a dimensão anímica que torna o amor um sentir que nos alegra, que nos anima, que, para muitos, justifica a existência – um absurdo destinado a sucumbir.

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