O Véu
de MĀYĀ
A realidade não é o que parece
1. Introdução
A cada nascimento, um
indivíduo é lançado ao desconhecido. Nascer é o começo de uma experiência
bastante perturbadora: aperceber-se como um “eu” lançado num mundo estranho e
incompreensível, sem razão e casualmente. Assim, o indivíduo, tendo atingido
certo grau de consciência reflexiva, não poderá ignorar que a experiência da
vida é semelhante àquela de alguém que, abruptamente, começa a sonhar. Tanto a
relação entre a vida e o sonho quanto a relação entre a morte e o despertar são
consistentes com os ensinamentos das tradições orientais, nomeadamente a do
hinduísmo e do budismo. Schopenhauer, fazendo eco a essas tradições, postulou
que a vida é um sonho do qual a morte é o despertar. Ora, nós não conferimos
realidade aos nossos sonhos, e só, ao despertar, descobrimos que esta realidade
era enganosa? E se a realidade percebida não passar de uma espécie de sonho?
Esta é uma questão na qual convido o leitor a meditar, com seriedade e cuidado,
ao longo da leitura deste texto. Ao contrário do que podemos pensar, não há
diferença intrínseca entre percepção e alucinação, e toda percepção carreia uma
porção alucinatória.
Sem chegar a um
veredito sobre a referida questão, este texto brota do solo de minha
estupefação, de meu espanto costumeiro, de minhas inquietações espirituais e
tem como fito dar ao leitor comungar dessas mesmas inquietações. Este texto se
estrutura em torno da seguinte hipótese: a
física moderna, nomeadamente a física quântica, parece confirmar a intuição
fundamental das sabedorias indianas, qual seja, a de que a realidade aparente ou percebida não exaure a realidade
mesma. Há uma realidade fundamental que funciona de modo radicalmente
diferente da realidade comum da vida cotidiana. A física quântica ensina-nos
que a realidade não é tal como a conhecemos, tal como aparece a nós em nossa
experiência ordinária. Não me será possível fazer uma aproximação minuciosa
entre a sabedoria védica e as lições da física quântica, e não pretendo sugerir
que a física quântica confirme tudo que essa sabedoria bimilenar ensina. Por
exemplo, a física quântica não compartilha a crença de que o Universo é dotado
de consciência, ou de que a realidade última e fundamental seja o Eu ou a
Consciência Infinita, identificada com Deus. Não obstante, a física quântica,
tal como as sabedorias da Índia, parece dizer a nós, em tom de advertência, o
que Hamlet consagrou na memória discursiva do senso comum: “há mais coisas entre o céu e a terra do que
sonha a nossa vã filosofia”.
Quiçá
seja escusável dizer que o autor deste texto é declaradamente ateu e que,
portanto, acredita que a morte é simplesmente o retorno ao inorgânico.
Acredito, portanto, que, quando morrermos, nosso corpo voltará à temperatura
das coisas inanimadas ao nosso redor, que, uma vez mortos, entramos em
equilíbrio com o ambiente, que nos tornamos, em suma, pó, poeira novamente. Não
creio, portanto, que temos uma alma imortal que sobreviverá à morte de nosso
corpo. Também não pretendo dar a entender que estarei sustentando o vitalismo, ou seja, uma doutrina segundo
a qual a vida surge a partir de um princípio ou força vital que permeia o Cosmo
e que transcende o domínio da química e da física. No entanto, enquanto ateu,
rejeitando uma solução simples e problemática como a da fé na existência do
Deus metafísico das três religiões do Livro, pretendo aceitar o Mistério, sem
deixar de me confrontar com ele, interrogando-me sobre ele. Como bem diz Morin
(2020, p. 19), “não apenas o mistério escapa ao conhecimento como está no
coração do conhecimento. O desconhecido é o enigma; o incognoscível é o
mistério”.
2.
A ilusão de Maya
Ilusão
provém do latim illusio-onis, que, em
retórica, equivalia a ironia. A ilusão ou ironia consistia numa estratégia do
discurso por meio da qual o orador zombava de um adversário, fingindo dizer
algo diferente daquilo que, na realidade, estava dizendo. A forma latina illusion-onis deriva do verbo iludo, que, por sua vez, provém de ludo, que significa ‘jogo’. Illudo é ‘divertir-se’, ‘recrear-se’,
mas também ‘burlar’, ‘enganar’. De iludo
originou-se o nosso “iludir”, mas também “lúdico”, “eludir”, “prelúdio”,
“alusão”. Iludir é enganar, causar uma impressão enganosa, suscitar uma interpretação
enganosa. Ilusão significa, então, engano, coisa efêmera, interpretação
enganosa ou errônea.
A doutrina vedanta,
tal como sistematizada e ensinada por Sankara, reza que Maya recobre o caráter insubstancial e fenomênico do mundo por nós
percebido. Todas as coisas existentes que percebemos e com as quais temos
contato através de nossos cinco sentidos carecem de densidade ontológica, estão
submetidas à ilusão de Maya. Também as faculdades conscientes e subconscientes
de nossa personalidade são efeitos da ilusão de Maya. Mas devemos rechaçar a
conclusão de que o mundo externo e o nosso eu são inexistentes, porque tal
conclusão seria um sinal de incompreensão da doutrina. Deveras, Maya é um enigma inquietante. Maya é uma espécie de “feitiço cósmico”,
que nos faz acreditar que a realidade percebida é a única e verdadeira
realidade. Permita-me o leitor fazer aqui uma digressão para esclarecer o que
significa dizer que, sob o Véu de Maya, o mundo fenomênico é desprovido de
substancialidade. Em filosofia, substância (ousía)
é aquilo que existe em si mesmo, é a realidade de algo como suporte dos
atributos, qualidades, acidentes. A substância, é, assim, a quididade, isto é,
aquilo que a coisa é por si e em si mesma, por sua realidade própria. A
substância tem uma existência independente. A substância é independente de suas
qualidades, permanecendo sempre o que é; ela é imutável. A substância é tanto o
ser enquanto existente, quanto a essência, ou seja, a natureza desse ser.
Coube a Aristóteles
tratar sistematicamente da noção de substância
(ousía) a partir de três planos: o
lógico, o físico e o metafísico. Do ponto de vista lógico, a substância é
recobre aquilo que não é afirmado de um sujeito. A substância, portanto, não é
um predicado. Em “A neve é branca”, o adjetivo “neve” não é substância, porque
não designa uma realidade que existe independentemente. Ao contrário, é um
predicado, porque designa aquilo que se diz do sujeito (neve). Assim, a ousía é o sujeito lógico, aquilo do qual
alguma coisa é predicada. Situada no domínio físico, a substância, porque é
sujeito, suporte da predicação, é concreta. Na experiência, só nos é dado
sujeito concreto, sensível, que pertence à natureza e que é objeto da ciência.
Aqui Aristóteles chama a substância de matéria, que é considerada a substância
universal. É na substância material ou física que ocorre a mudança. A
substância física permite a explicação da geração e corrupção. A partir daí, se
desenvolve a teoria hilemórfica de Aristóteles, segundo a qual toda substância física
é composta de matéria (hýle) e forma
(morphé). Do ponto de vista
metafísico, a substância pode ser estudada a partir de quatro pontos de vista.
Do ponto de vista da quididade, caso em que a substância é aquilo que a coisa é
por si e em si mesma, independente de qualquer qualidade atribuída a ela. A
substância é uma existência independente. Do ponto de vista do universal (kathólou) e do gênero (génos), caso em que a substância,
enquanto essência, é comum a todos os seres que admitem a mesma definição. Por
exemplo, a animalidade é a substância
ou essência comum a vacas, bois e homens. Por fim, a substância é o substrato,
ou sujeito (hypokeímenon), o que
subjaz. Essa noção atrela-se à de quididade, porquanto a substância é
independente de suas qualidades. Porque permanece sempre o que é, não muda. A
substância, como substrato, é a sede, o sujeito das qualidades (os acidentes: symbebekóta) e da mudança. A despeito de
toda essa classificação e subclassificação, Aristóteles conclui que a
verdadeira substância é aquela que possui a quididade, ou seja, que existe em
si e por si mesma, que tem uma realidade própria e independente. A substância,
portanto, é tanto o ser enquanto ser, quanto essência, isto é, a natureza de um
ente.
Dizer, portanto, que Maya recobre o caráter não substancial
da realidade aparente é dizer que essa realidade percebida, que cremos existir
independentemente de nós, como uma coisa objetiva e sólida, não tem quididade,
não existe em si e por si mesma. Como pondera Zimmer (2020, p. 33), ““Tudo isto
à minha volta... meu próprio ser...”: eis a rede de liames chamada maya, a potência criadora do mundo. Maya manifesta sua força através do
universo mutante e das formas evolutivas do mundo”. Maya, cuja raiz ma-
significa ‘formar’, ‘produzir’, ‘medir’, designa o poder de um deus ou demônio
de produzir ilusões. Esse deus muda de forma e aparece sob máscaras enganosas. Daí
deriva o sentido de “magia”. Na filosofia vedanta, Maya recobre a ilusão que, como um véu, é sobreposta à realidade
como efeito da ignorância humana. Todo o universo visível e perceptível é,
portanto, Maya.
A sabedoria indiana
busca ensinar o indivíduo humano a compreender como opera Maya, a fim de que ele possa transcendê-lo, libertando-se do seu
feitiço cósmico. A maior parte dos ensinamentos, dos escritos indianos
consagra-se à meta do supremo libertar-se da ignorância e das paixões
provenientes da ilusão do mundo fenomênico (o mundo ilusório de Maya). Destarte, a meta última que deve
ser alcançada é a redenção ou libertação espiritual, que os hindus
chamam Moksa. Moksa é a emancipação final da alma (atma). Consoante ensina Zimmer (ibid., p. 40), “Moksa deriva da raiz muc: “desatar, livrar, soltar, libertar,
liberar, deixar em liberdade, sair de, abandonar, largar””.
Moksa é a metafísica posta em prática. Moska
aponta para além das estrelas. (...) Moska
é a técnica para transcender os sentidos, a fim de descobrir, conhecer e
permanecer identificado com a realidade atemporal que subjaz no sonho da vida
no mundo. (ibid., p. 43-33).
Maya
parece expressar, numa linguagem metafísico-esotérica, o que a filosofia e as
ciências ocidentais, nomeadamente a física moderna, as neurociências, a
sociologia, antropologia e linguística nos ensinam: nossa percepção da realidade não é direta. Como assinala Morin
(ibid., p. 22), “nossa percepção do mundo exterior é coproduzida pelas forças
organizadoras do cérebro”. Nosso cérebro recria em hologramas (imagens com
relevo) uma realidade feita de ondas de frequência. Se pensamos na realidade
sócio-histórica, fica patente seu caráter de constructo, de construção resultante do concurso do simbólico no
imaginário, socialmente constituídos. Nesse tocante, Morin observa:
(...)
a realidade do mundo exterior é uma realidade humanizada: não a conhecemos diretamente,
mas por meio do nosso espírito humano, traduzida/reconstruída não só pelas e
nas nossas percepções, como também pela e na nossa linguagem, pelas e nas
nossas teorias ou filosofias, pelas e nossas culturas e sociedades. (ibid., p.
23).
Se a doutrina de Maya
subtrai ao mundo fenomênico a sua substancialidade, será que a física quântica confirma,
mesmo que noutro registro, o que reza esta doutrina? É este o problema que nos
ocupará na próxima seção.
3. A física quântica ou a loucura
quântica
Guitton, em seu livro
Deus e a Ciência (1992), escrito na
forma de um diálogo com os cientistas Grichka Bogdanov e Igor Bogdanov, nos dá
testemunho da verdadeira revolução levada a efeito pela física quântica:
A
teoria quântica nos diz que, para compreender o real, é preciso renunciar à
noção tradicional de matéria: matéria tangível, concreta, sólida. Que o espaço
e o tempo são ilusões. Que uma partícula pode ser detectada em dois lugares ao
mesmo tempo. Que a realidade fundamental não é cognoscível. (ibid., p. 16).
A física quântica
pede-nos que, para compreender o real, em sua natureza íntima, em sua essência,
por assim dizer, renunciemos ao modo familiar pelo qual nos relacionamos com o
mundo. Nesse sentido, também para a doutrina vedanta de Maya, o conhecimento verdadeiro do
mundo supõe a libertação da teia de Ilusão tecida por Maya sobre toda a realidade fenomênica.
Guitton, no entanto, vai mais longe e ajunta que “(...) a física quântica toca
de modo surpreendente a Transcendência” (ibid., p. 10). É nesse momento que
Guitton faz sobressair o cristão que era sobre o filósofo que foi. É bastante
problemático afirmar que a física quântica admita, de algum modo, uma realidade
transcendente. Antes de tentar demonstrar por que penso que a física quântica
não toca a Transcendência, preciso dizer algumas palavras sobre o que significa
transcendência na história do pensamento ocidental. De modo geral, transcendência designa a condição de
algo que pertence a outra natureza radicalmente diferente, que é radicalmente
exterior, que é de ordem superior. No teísmo, por exemplo, diz-se que Deus é
transcendente em relação ao mundo e aos homens. Isso significa dizer que Deus é
radicalmente superior e exterior ao mundo e aos homens. Chamo a atenção para o
fato de Guitton grifar a palavra transcendência com “T” (maiúsculo), talvez
para sugerir que a Transcendência se identifica com o próprio Deus teísta. Ao
menos me parece que Guitton concebe a transcendência como “princípio divino,
condição do Ser além de toda experiência humana”. Não creio que a física
quântica acene a uma Transcendência no sentido pretendido pelo autor. Os
físicos e astrofísicos, muito provavelmente, relutariam em admitir que a física
quântica seja o reconhecimento de que há algo muito além do Universo conhecido
que se identificaria com algum princípio divino ou espiritual. Talvez possamos
dizer que a única transcendência postulada pela física quântica seja a da
existência de uma realidade fundamental que, mesmo sendo inacessível à
experiência humana ordinária e até mesmo ininteligível pelos padrões dessa
experiência, e, portanto, superior a ela, não implica a suposição de que essa
realidade tem algo de divino ou sobrenatural. Todavia, se a física quântica não
parece implicar uma Transcendência divina como causa explicativa do mundo, ela
seria permeável a investigações metafísicas? Em outras palavras, será que no
afã de investigar como o mundo funciona no nível subatômico, determinando
quantas e quais seriam as partículas elementares do universo, os físicos não
estariam adentrando o domínio das investigações metafísicas? Parece-me que sim,
e direi o porquê. Consideremos, em primeiro lugar, que Metafísica é a ontologia geral, o tratado do ser enquanto ser.
Aristóteles definia-a como a filosofia
primeira, pois que ela se ocupa dos princípios e causas primeiras da phýsis. Na tradição escolástica, a
metafísica divide-se em metafísica geral,
que examina o conceito geral do ser e a realidade em seu sentido fundamental e
transcendente; em metafísica especial,
que compreende domínios específicos do real. A metafísica especial se subdivide
em cosmologia ou filosofia natural, a qual, por seu
turno, se ocupa do mundo e da essência da realidade material; em psicologia racional, ou tratado da
alma, de sua natureza e propriedades; e em teologia
racional ou natural, que recobre
o conhecimento de Deus e das provas racionais de sua existência (sem o recurso
à fé). Foi no pensamento moderno, sobretudo com Kant, que a metafísica deixa de
ocupar um lugar central no pensamento filosófico, já que a filosófica crítica
de Kant vai fixar limites às pretensões da metafísica de conhecer o mundo.
Devemos a Kant a acepção da metafísica com a qual estamos mais familiarizados
hoje em dia. Kant entendia por metafísica
toda pretensão a um conhecimento que busque ultrapassar os limites da
experiência possível, ou seja, é metafísica toda investigação que pretende
ultrapassar o mundo fenomênico, o mundo da representação, das coisas tais como
nos são dadas sob as formas da intuição (formas puras que, para Kant, são o
tempo e o espaço). A metafísica ousa ir além das formas puras da intuição para
dizer algo sobre o incondicionado, o em-si das coisas. Em outras palavras,
fazemos metafísica quando nos interrogamos sobre o que se oculta, o que está
por trás da natureza, da realidade sensível.
Do ponto de vista
metodológico, os físicos podem alegar que muitas de suas especulações e
hipóteses ensejadas pela imaginação criadora não chegam a perturbar a zona da
cientificidade das teorias já comprovadas pela observação empírica. Físicos
podem (e o fazem com certa frequência) formular muitas hipóteses que poderiam
ser encaradas como metafísicas, sem que isso tenha alguma validade científica,
pois que teorias científicas precisam ser, segundo Popper, refutáveis, ou testadas
pela verificação. Em todo caso, se entendemos por metafísica o estudo das
causas e princípios primeiros do mundo, então a física quântica adentra o
terreno da metafísica. Quando os físicos assumem a existência de uma realidade
fundamental diversa da realidade macroscópica de três dimensões de espaço e uma
dimensão de tempo em que vivemos, eles fazem metafísica. Nesse sentido, a
Teoria das Cordas ou Supercordas, que não foi ainda comprovada empiricamente,
embora seja uma solução consistente e elegante para articular a Relatividade
Geral à mecânica quântica, ilustra um caso de especulação metafísica no
interior da cosmologia.
O mundo desvelado e
explicado pela física quântica é um mundo como campo de interações mediadas por
bósons. Acredita-se que no mundo
subatômico existam centenas de partículas elementares. Existem quatro
partículas estáveis no mundo subatômico: o próton, o elétron, o fóton e o
nêutron. Mas, segundo Igor Bogdonov (Guitton, ibid., p. 77), “quando
mergulharam no cerne do núcleo [do átomo], os físicos descobriram o imenso
oceano dessas partículas nucleares, deste então, chamadas hádrons”. Os hádrons
decompõem-se em partículas menores, chamadas de quarks. Assim, consoante nota Guitton, “o que chamamos de realidade
não é outra coisa senão uma sucessão de descontinuidades, flutuações,
contrastes e acidentes de terreno que, em seu conjunto, constituem uma rede de
informações”. (ibid., p. 84). As partículas subatômicas como quarks, elétrons, bósons, neutrinos,
entre outras, foram primeiramente formuladas como hipóteses matemáticas, para,
posteriormente, se revelarem como elementos da realidade fundamental.
A Teoria das Cordas, desenvolvida no
interior da física quântica, se propõe ligar a Relatividade Geral à física
quântica. Assim, ela funciona como um elo entre uma teoria que explica o
funcionamento do mundo numa escala grande e o funcionamento do mundo numa
escala pequena. De acordo com essa teoria, se fosse possível observar
microscopicamente o interior das partículas fundamentais da matéria (elétrons,
quarks, etc.), o que encontraríamos não seria um ponto, mas uma corda em forma
de laço (um laço de corda). As partículas interagiriam entre si mediante
diversos padrões de vibração desses laços. Embora os físicos não ousem afirmar
que as cordas são as partículas fundamentais e indivisíveis do universo, o que
é preciso fazer ver é que, cada vez mais, a física moderna assume uma realidade
fundamental radicalmente diferente do mundo macroscópico do espaço-tempo.
3.1.
A granularidade da matéria
A
mecânica quântica não nos permite mais pensar a matéria como algo sólido,
tangível. A matéria é granular e a realidade não é feita de coisas, mas de
relações, de eventos. A física quântica não descreve como as coisas são, mas
como elas acontecem. Como ensina Rovelli (2017, p. 132),
Não descreve onde está uma partícula, mas onde a
partícula “se faz ver pelas outras”. O mundo das coisas existentes é reduzido
ao mundo das interações possíveis. A realidade é reduzida à interação. A
realidade é reduzida à relação.
São
as relações que dão origem às coisas. Nós, como todas as coisas existentes,
somos processos, fluxos de eventos “que, por um breve tempo são monótonos”
(ibid., p. 133). A física quântica permitiu a descoberta de três aspectos do
mundo: 1) Granularidade: o mundo é
uma sucessão de eventos quânticos granulares; 2) Indeterminismo: o futuro não é determinado univocamente pelo
passado; 3) Relação: os eventos
naturais são sempre relações, interações. A física quântica, segundo Rovelli,
nos ensina a não pensar o mundo como um conjunto de “coisas” que estão neste ou
naquele estado, e sim como um campo de processos, de interações. Um processo é
a passagem de uma interação a outra. E as propriedades das “coisas” se
manifestam como granulares apenas no momento da interação, isto é, nas bordas
do processo, “e são tais apenas em relação a outras coisas, e não podem ser
previstas de modo unívoco, mas apenas de modo probalístico. (ibid., p. 134). Um
elétron não se acha em lugar algum quando está em interação. Assim, a física
quântica esteia-se no postulado do aspecto relacional de todas as coisas. Os
elétrons não existem sempre, mas “existem apenas quando interagem” (ibid.).
Materializam-se em um lugar quando se chocam
contra outra coisa. Os “saltos quânticos” de uma órbita a outra são a única
maneira para tornar-se reais: um elétron é um conjunto de saltos de uma
interação a outra. Quando ninguém o perturba, um elétron não está em lugar
algum. (ibid.).
Bizarro
este mundo? Mas este é o Universo de cuja trama ígnea surgimos como uma faísca do
acaso. A loucura quântica ensina-nos que a realidade observada é dependente do
ponto de vista do observador. Grchka Bogdanov alerta-nos sobre o seguinte:
(...) o sucesso da teoria quântica é o de se ter
edificado à margem da razão ordinária e quase sempre contra ela. É por isso que
há algo de “louco” nessa teoria, algo que doravante ultrapassa a ciência. Sem
que o saibamos ainda claramente, é nossa representação de mundo que está em
jogo e começa a balançar irresistivelmente. (ibid., p. 99).
Decerto,
o mundo como representação, para falar como Schopenhauer, desmorona, a nossa
maneira habitual de perceber e compreender a realidade é radicalmente abalada
na mecânica quântica. Assim, se uma flor é colocada num lugar fora do alcance
da nossa observação, aceitamos que ela não deixa de existir. Isso sabemos por
experiência. Mas a física quântica mantém que, se nós nos detivermos a observar
essa flor a partir do nível atômico, sua realidade profunda e existência estarão
intimamente ligadas ao modo pelo qual a observamos. Portanto, não podemos
assumir a existência objetiva de uma partícula elementar num ponto definido do
espaço. Uma partícula só existe sob a forma de um ponto definido no espaço e no
tempo, quando a observamos diretamente. Como enfatiza Grichka, “não deixa de
ser perturbador constatar que a realidade observada está ligada ao ponto de
vista adotado pelo observador”. (ibid., p. 104). Mas o que há de perturbador não
é o simples fato de que o mundo percebido exista na dependência de quem o
percebe, mas no fato de que o observador afeta o comportamento de suas partículas
elementares no momento em que as observa.
3.2. A granularidade
do espaço
O
espaço também é granular em pequena escala. Os fótons se encontram no espaço,
mas os quanta são eles mesmos o espaço. Os quanta de espaço são o lugar. Em uma
escala muito pequena, o espaço não é contínuo, mas tecido por elementos finitos
interconectados. Segundo Rovelli, “o espaço físico é o tecido resultante do
pulular contínuo dessa trama de relações” (ibid., p. 170). A estrutura do
espaço é um efeito do encontro entre dois grãos de espaço. O espaço não é, como
costumamos imaginar, um recipiente amorfo onde as coisas se situam, aparecem.
Com a gravidade quântica, as coisas não se situam no espaço, mas sim habitam a
vizinhança umas das outras, e o espaço “é o tecido de suas relações de
vizinhanças”. (ibid., p. 171). Novamente, devemos enfatizar que o mundo não é
um conjunto de coisas, mas uma trama de eventos. As coisas não são; elas
acontecem. O mundo não é constituído de entes, de coisas que existem, mas é um
pulular flutuante de eventos, acontecimentos, processos. A mudança no mundo é
onipresente. O mundo é puro devir. Consoante lembra Rovelli, “as próprias “coisas”
são apenas acontecimentos que são monótonos por um tempo, antes de retornar ao
pó. Porque, cedo ou tarde, tudo sempre
retorna ao pó”. (ibid., p. 85, grifo meu). Se este mundo nos causa um
sentimento de profundo assombro quando o contemplamos à luz da física quântica,
como não experienciar espanto em face da raridade da vida num Universo tão
enigmático?
É uma surpreendente coincidência que o universo
seja do jeito que ele é. Os cientistas tendem a não se sentirem confortáveis
com as coincidências, e a interpretação de muitos mundos oferece uma saída. Se
o cenário de muitos mundos é verdade, talvez haja muitos universos diferentes
lá fora, com constantes diferentes. Alguns entram em colapso num milissegundo.
Alguns quase não têm matéria. Nós simplesmente habitamos um que é adequado à
vida. (Seife, 2007, p. 227).
3.3. O presente não existe
Quando
a física quântica mantém que o presente não existe, deve-se entender que ela
nega a existência de um presente objetivo universal. A forma como nossas
línguas ocidentais segmentam a experiência do tempo em passado, presente e
futuro é enganosa. As relações temporais entre os eventos são, deveras, mais
complexas do que supomos. Há mudança no mundo, mas ela não ocorre de acordo com
uma ordem universal. A física quântica descobriu a indeterminação, de sorte que
não é possível prever com exatidão onde um elétron vai estar amanhã. O
espaço-tempo também flutua. A distinção entre presente, passado e futuro é
flutuante e indeterminada, de modo que um acontecimento pode estar, ao mesmo
tempo, antes e depois de um outro. Assim, segundo Rovelli (2018, p. 149),
(...) o
presente comum a todo o universo não existe. Os acontecimentos não são todos
ordenados em passados, presentes e futuros: são apenas “parcialmente”
ordenados. Existe um presente próximo de nós, mas não algo de “presente” numa
galáxia distante. O presente é uma noção local, não global.
Ainda
segundo o autor, subtraindo-se os efeitos quânticos, “tempo e espaço são
aspectos de uma grande gelatina móvel na qual estamos imersos”. (ibid., p.
149). O autor ajunta, no entanto, que “na gramática elementar do mundo não
existem espaço nem tempo: apenas processos que transformam quantidade físicas
umas nas outras, cujas probabilidades e relações podemos calcular”. (ibid.). Como
se vê, no nível mais fundamental de realidade que se pode conhecer atualmente,
resta muito pouco do tempo que ordena nossa experiência habitual de mundo.
Porque o tempo não é uniforme em todo o Universo? Por que temos a experiência
da passagem do tempo no mundo de nossa experiência sensível, mas o tempo tanto
quanto o espaço deixam de existir no mundo subatômico? Aqui como em outros
casos, estamos imersos no Mistério. Considere-se, doravante, a realidade do
vácuo ou o vazio.
3.4. O vazio na
origem de tudo
No budismo, o vazio
ou a vacuidade recobre a ideia da interdependência da existência de todas as
coisas. O vazio não é o nada. Tudo que existe é permeado pelo vazio. O mundo
fenomênico depende do vazio para existir. A vacuidade é, portanto, a realidade
suprema, imperecível, imutável. Está além da vida e da morte. Para o budismo, a
vacuidade é ausência de existência inerente. O budismo reza que os fenômenos
carecem de densidade ontológica, ou seja, não existem em si, mas sua existência
depende do observador. Em última instância, o mundo fenomênico é uma construção
de meu cérebro.
Também a física quântica nega que o vazio seja
o nada, seja ausência total de existência. Ao contrário, o vazio ou o vácuo é
cheio, ele fervilha de atividade. Grichka Bagadanov diz que não há lugar do
espaço-tempo onde não se encontre “nada”: “em toda parte encontramos campos
quânticos mais ou menos fundamentais” (ibid., p. 93). Portanto, pode-se
depreender daí que o “nada” como possibilidade ôntica é uma ilusão. O vácuo é
um palco de acontecimentos permanentes, de flutuações incessantes, de violentas
tempestades quânticas, nas quais se criam novas partículas subatômicas que são,
quase sempre, imediatamente, aniquiladas. Seife nos dá testemunho de sua
perplexidade em face do caráter paradoxal do vácuo no seguinte passo:
Parece uma contradição dizer que o vácuo é o
fenômeno mais complexo do universo. A própria definição do vácuo é a ausência
de tudo, um espaço cheio de coisa alguma. Na década de 1930, entretanto, os
físicos quânticos descobriram, para a sua grande surpresa, que o vácuo não está
sempre realmente vazio. Ele fervilha de atividade, cheio até a borda de
partículas e energia. (ibid., p. 189).
Num aspecto, a física
quântica e o budismo concordam: o vazio é cheio, o vácuo não é o nada. É claro
que isso não significa dizer que a vacuidade búdica signifique a mesma coisa
que o vácuo da física. A vacuidade búdica se inscreve num registro ético que é
estranho ao vácuo de que tratam os físicos. Mas tanto o vazio búdico quanto o vazio
do Universo físico está impregnado de Mistério, esconde um segredo. Segundo
Seife, atualmente, os físicos acreditam que o vácuo – “o vazio no espaço
profundo” - abriga o segredo da mais recente dúvida da cosmologia: o que é a misteriosa força antigravitacional
que achata o Universo e acarreta o afastamento das galáxias? Como o vazio é
constituído de partículas e energias virtuais que, depois de se atualizarem,
teriam produzido a deflagração térmica chamada de Big Bang, não é sem espanto
que os físicos acreditam que “o que parece menos real, o vazio, teria sido a
origem da nossa realidade” (Morin, ibid., p. 29). Se for possível dizer que o
vazio é um vazio originário, então a sabedoria oriental e a física quântica
encontram-se novamente em acordo, pois o budismo também crê no vazio
originário, no vazio como realidade última.
Chegando ao fim do
percurso destas minhas reflexões embebidas no espanto, reencontramos a imagem
do mundo como um sonho mantido pela ilusão de Maya, na pena de Igor Bogdanov,
que diz explicitamente que “nós sonhamos o mundo”.
Segundo
a nova física, sonhamos o mundo. Nós
o sonhamos como algo durável, misterioso, visível, onipresente no espaço e no
tempo. Além dessa ilusão, todas as categorias do real e do irreal se esvaem.
Assim como não podemos considerar que o gato de Schrödinger está vivo ou morto,
também não podemos perceber o mundo objetivo como existente ou não existente. O espírito e o mundo formam uma única e
mesma unidade. (ibid., p. 143, grifos meus).
Estaria a física
quântica validando a tese do idealismo transcendental? Estaria admitindo um
metarrealismo como a melhor abordagem do Universo? Guitton não hesitaria em
dizer que esta é a melhor abordagem para tentar tornar menos misterioso o
Mistério em que estamos mergulhados: “não podemos dizer que o espírito e a
matéria simplesmente coexistem: eles
existem um através do outro”. (ibid., p. 144).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. GUITTON, Jean; BOGDANOV, Grichkva; BOGDANOV,
Igor. DEUS E A CIÊNCIA. Trad. Maria
Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
2. MORIN, Edgar. Conhecimento, ignorância, mistério. Trad. Clóvis Marques. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.
3. ROVELI, Carlo. A realidade não é o que parece: a estrutura elementar das coisas. Trad.
Silvana Cobucci. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.
______________. A ordem do tempo. Trad. Silvana Cobucci. Rio de Janeiro: Objetiva,
2018.
4. SEFIE, Charles. Alfa e Ômega: a busca pelo
início e o fim do universo. Trad. Talita M. Rodrigues. Rio de Janeiro:
Rocco, 2007.
5. ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. Trad. Nilton Almeida Silva, Cláudio Giovani
Bozza, Adriana Franchini De Césare. São Paulo: Palas Atenas, 2020 (1986).