O caso dos verbos
auxiliares
Alguns critérios para a determinação da
auxiliaridade
A auxiliaridade, ou seja, o
comportamento estritamente gramatical que certos verbos exibem quando entram a
fazer parte do que, tradicionalmente, se tem chamado de locução verbal, é, sem dúvida, um dos tópicos mais controversos em
gramática. Tenciono, neste texto, examiná-lo com vistas a avaliar a adequação
de um conjunto de critérios sintáticos que nos permitiriam determinar se, dada
a proximidade de dois verbos, um dos quais deve ou não ser considerado um verbo
auxiliar. A apresentação desses critérios se seguirá a um longo e acurado
esforço analítico de uma série de problemas recobertos pelo fenômeno da
auxiliaridade.
Minha hipótese inicial é que os referidos
critérios sintáticos, em si, isto é, quando tomados sem qualquer referência ao
aspecto semântico implicado na questão, não dão conta de todos os casos que a
tradição gramatical considera casos de locução verbal. Sem embargo, penso que
eles são indispensáveis para que se consiga estabelecer as condições que fazem
de uma combinatória verbal um caso de locução verbal.
Antes de encetar a discussão, faz-se mister dar a
saber um elenco de conceitos básicos que devem ser, de antemão, conhecidos, a
fim de que a própria discussão se torne tanto mais compreensível ao leitor
quanto menos dispendiosa para mim. Com a apresentação e definição desse
conjunto de conceitos, creio não só contribuir para facilitar o trabalho de
compreensão do leitor, como também me escuso da necessidade de fazer, vez ou
outra, ao longo da discussão, alguma digressão para esclarecer um conceito
circunstancialmente relevante.
1. Conceitos básicos
1.1. O que
é gramática?
O primeiro conceito que eu gostaria de esclarecer
é o de gramática. Duas acepções do
termo gramática estarão pressupostas no desenvolvimento desta exposição. A
primeira acepção do termo gramática
recobre a ideia de sistema de regras e
princípios que governam a construção dos arranjos linguísticos. Nesse sentido,
todas as línguas naturais são dotadas de uma gramática – de um sistema de regras -, que prevê as
possibilidades combinatórias que tomam parte da produção de enunciados
funcionalmente aceitáveis em cada língua. Assim, por exemplo, a gramática da
língua portuguesa – o sistema de regras dessa língua – prevê uma regra que nos
obriga a usar a preposição “de” para conectar o verbo “ter” a uma forma de
infinitivo, procedimento de que resulta uma locução verbal (conforme veremos).
Um exemplo dessa construção é a frase (a), abaixo:
(a) Tenho de
sair cedo amanhã.
inf.
Por outro lado, a desobediência a essa regra
gramatical torna a construção agramatical ou inaceitável para os usuários do
português (o * marca a agramaticalidade):
(a1) *Tenho
# sair cedo amanhã.
A segunda acepção do termo gramática que o leitor
deve ter em conta ao longo desta exposição é recoberta pela designação gramática descritiva, a qual constitui
uma hipótese elaborada pelo linguista
com base na qual ele busca descrever e explicar a estrutura e o funcionamento de
uma dada língua. A gramática descritiva, enquanto modelo teórico-metodológico,
cientificamente construído com base nos postulados da observação e da análise
de certo conjunto de “fatos linguísticos”, eles mesmos determinados pelo
recorte teórico-metodológico que, por sua vez, norteia a observação e a
análise, visa, portanto, à descrição e à explicação da gramática tomada na
primeira acepção acima. A rigor, o que o linguista tenta descrever e explicar é
esse sistema de regras – a gramática na primeira acepção - que se encontra
inscrito na mente/cérebro dos falantes nativos na forma de um saber que eles
dominam intuitivamente.
Já de início, como eu pretenda situar a
problemática sobre a qual me debruçarei, buscarei aporte em um exemplar de
gramáticas tradicionais do português, chamadas também de gramáticas normativas, as quais, embora encerrem uma porção de
descrição, são orientadas fundamentalmente por uma preocupação prescritivista.
As gramáticas normativas, que se identificam com nossas gramáticas escolares,
isto é, que, tradicionalmente, fornecem insumo ao ensino de língua portuguesa
na escola, são manuais que reúnem certo número de regras pelas quais se
estabelece “o bom uso” da língua. Assim, acredita-se que os falantes que pretendem ser
socialmente bem avaliados, quando do uso de sua língua materna, deverão pautar
seu comportamento linguístico pelas regras prescritas por essa gramática.
É suficiente dizer – já que o território em que
se desenvolve esta discussão não carece aqui de ser inspecionado – que os
critérios pelos quais esse “bom uso” é estabelecido são não só variados, como
também determinados e sustentados por uma argumentação atravessada por
pressupostos elitistas ou aristocráticos quase sempre silenciados ou quase
nunca acessíveis aos não-especialistas. O “bom uso” é um valor normativo,
sociolinguisticamente determinado, inspirado num ideal de correção idiomática
que se busca estabelecer, por seleção arbitrária dos usos feitos pelos assim
considerados “grandes escritores” da literatura.
1.2. Formas
nominais do verbo
Chamam-se formas
nominais do verbo às formas que cumulam a função verbal com a de nomes.
Significa isso dizer que tais formas preenchem funções sintáticas típicas de
substantivo e adjetivo. Essas formas nominais apresentam as desinências –r, -do e –ndo. Dividem-se em infinitivo, que se comporta como um substantivo
(cf. Recordar é viver); em particípio, que assume a função típica do adjetivo
(cf. homem sabido/ empresa falida); em gerúndio, que assume a função típica de adjetivo
(cf. Despeje a água fervendo na vasilha = água fervente) e também de advérbio,
muito embora, atualmente, a classe dos nomes
recubra apenas o adjetivo e o substantivo, em virtude do fato reconhecido de que
eles são praticamente indistintos do ponto de vista morfossintático (cf.
Amanhecendo, sairemos = assim que amanhecer, sairemos/ cedo sairemos).
Note-se que, nesse último caso, a forma de gerúndio “amanhecendo” ocupa a
posição suscetível de ser ocupada por uma oração adverbial ou por um advérbio
simples.
1.3.
Significado lexical e significado gramatical
O significado lexical recobre o modo como as
línguas segmentam nossas experiências de mundo. Trata-se do significado que
corresponde à organização do mundo extralinguístico. Por exemplo, o vocábulo
“casa” comporta significado lexical, porque descreve um elemento, uma coisa do
mundo exterior à língua. Estou ciente de
que simplifico demais a explicação; mas essa simplificação é indispensável para
que não percamos de vista o que é necessário reter na distinção que ora procuro apresentar.
Por seu turno, o significado gramatical
compreende o conjunto de distinções significativas que pertencem ao domínio
estrito da gramática. Tomando-se a forma “casas”, o elemento “-s” marca a noção de pluralidade que está na base
da distinção entre os pares “casa/casas”.
A distinção singular x plural é marcada pela oposição ‘presença de marca –s’ e
‘ausência de marca -s’. A presença da marca ‘-s’ indica o plural, ou seja, expressa a quantidade ‘mais de um elemento’ relativamente ao ao referente ‘casa’; a ausência dessa marca indica a ausência da noção 'mais de um'. Nos substantivos, a distinção singular/plural é referencialmente motivada: o singular serve à expressão da ideia de unicidade; o plural, à ideia de pluralidade. Ademais, essa distinção é determinada por
condições gramaticais. A forma assumida pelo determinante (artigo, por exemplo)
fixará a forma que deverá ser assumida pelo substantivo subsequente. Assim, em
“as casas”, a ocorrência da desinência “-s” em “a” determina a ocorrência
da desinência “-s” no substantivo “casa”. Por outro lado, a ausência de marca
no primeiro elemento do sintagma implica a ausência de marca no segundo
elemento (cf. a casa). Naturalmente, essa regra vale para a variedade de
prestígio da língua. Em outras variedades, muito estigmatizadas, basta
acrescentar o “s” no artigo para indicar que todo o grupo sintagmático foi
pluralizado (cf. as casa).
A distinção entre significado lexical e
significado gramatical pode ser estabelecida também em termos da distinção
entre lexemas e gramemas. Assim, distinguem-se os lexemas, que são morfemas lexicais que comportam um significado de
base extralinguística, o qual representa parcelas de nossa experiência de
mundo, dos gramemas, os quais
comportam significado estritamente gramatical, responsável pelas distinções
operadas no interior da gramática. Por exemplo, se os nomes “Alexandre” e
“Márcia” identificam entidades do mundo extralinguístico, os pronomes “ele” e
“ela” apenas indicam as entidades do discurso, seja essas entidades designadas
por substantivos [+ animado], seja por entidades [- animado]. As formas “ele” e
“ela” não designam referentes no discurso, mas nos instruem para que os
recuperemos no domínio discursivo. A distinção entre “ele” e “ela” repousa no
fato de que a primeira forma remete a um referente designado por um substantivo
masculino no singular; a segunda, a um referente designado por um substantivo
feminino no singular.
Os lexemas pertencem a um inventário aberto,
ilimitado de formas; ao contrário, os gramemas pertencem a um universo fechado
ou limitado de formas. Verbos, adjetivos, substantivos e advérbios em –mente (felizmente, alegremente, etc.)
são exemplos de lexemas. Artigos, preposições, conjunções, numerais e pronomes
são exemplos de gramemas.
Essa distinção, conquanto suscite críticas e sem
reivindicar qualquer rigor teórico-metodológico, será importante, todavia, para
que se compreendam os verbos auxiliares como formas gramaticalizadas, formas
que perderam o significado lexical (mas não todo e qualquer significado,
conforme veremos) e com ele sua natureza valencial, no ambiente sintático em
que se encontram.
1.4.
Locução verbal
Por locução,
entende-se um grupo constituído por dois ou mais elementos em vias de
cristalização, que pode ser totalmente invariável ou pode admitir a
pluralização de um de seus elementos constituintes, desde que não seja o último.
Essa definição, deveras, abrangente reúne num mesmo elenco construções como “atrás
de” e “cesta básica”, “merenda escolar”. Também aí devemos incluir os
substantivos e adjetivos compostos, tais como “navio-escola” e “verde-garrafa”,
entre outros tantos.
A definição que apresento não pretende dar conta
da complexidade envolvida nessa questão. É extremamente difícil determinar a
natureza locucional de um grupo de palavras. Essa definição deve ser encarada
apenas como um guia para a compreensão do conceito de locução verbal, que é o conceito que convém elucidar para efeitos
de discussão.
A locução verbal é uma unidade
semântico-sintática formada pela combinação de dois ou mais verbos, um dos
quais preserva sua natureza semântico-sintática. Cumpre, então, esclarecer o
seguinte. A locução verbal é um complexo constituído por pelo menos dois
verbos, o primeiro dos quais perde significado lexical e assume o papel de suporte
para a expressão das categorias gramaticais de tempo, número, pessoa, modo e
aspecto. O segundo verbo, no entanto, conserva seu comportamento valencial; é
ele o predicador, o responsável por determinar a estrutura relacional da
oração.
As noções de número e pessoa são reflexos da
pessoa e número do sujeito. Destarte, o verbo se flexiona para expressar as
categorias de número e pessoa inerentes ao sujeito. Na locução verbal, é ao
verbo auxiliar que cumpre manifestar as flexões de tempo, número, pessoa, modo
e aspecto.
A categoria de aspecto diz respeito à duração
do processo verbal independentemente da instanciação do tempo. O aspecto
indica ou não a estrutura temporal interna de um fato (Costa, 1997, p.38).
Assim, por exemplo, na oração “O garoto começou a correr”, o aspecto incoativo,
ou seja, a expressão da fase inicial do processo de “correr”, é marcado pelo
verbo “começar”, que também atualiza as categorias de tempo, número, pessoa e
modo.
1.5.
Valência
Entendo por valência
a propriedade que tem o verbo, por excelência, na condição de predicador, de
determinar certo número de lugares vazios
passíveis de ser preenchidos pelos seus actantes. A valência é um fenômeno de base semântica que exibe, no entanto,
uma dimensão sintática. Além do número de lugares vazios, o verbo determina
também as propriedades morfossintáticas e semânticas dos actantes. A valência é
uma propriedade semântica também extensiva a certos substantivos e adjetivos,
mas é o verbo a forma que mais sistematicamente a manifesta.
Por actante,
entendo cada um dos constituintes sintáticos que preenchem os lugares vazios
determinados pela valência do verbo. O fenômeno de valência verbal se sustenta
pelo princípio da previsibilidade
valencial, por mim demonstrado em minha dissertação de mestrado, o qual se
define como o fato de o significado do verbo prever certo número de lugares
vazios e tipos morfossintáticos e semânticos de actantes.
Cada um dos lugares vazios é representado por uma
das variáveis x, y, z, que são
marcadores de posição. A variável x
corresponde à posição típica do actante sujeito; a variável y, à posição do complemento direto
(objeto direto), outro actante; e a variável z , à posição do complemento indireto (objeto indireto), outro
actante.
Assim, tomando-se os verbos “construir” e “dar”,
temos as seguintes estruturas relacionais formalizadas abaixo:
(b) X construir Y
(c) X
dar Y
a Z
Essas estruturas servem de modelos para a
produção de um sem-número de frases das quais “construir” e “dar” são
predicadores. Vejam-se os dois exemplos abaixo:
(b1) O rapaz construiu a maquete em
uma hora.
X
v Y
(c1) O pai deu
a mesada ao garoto.
X v Y Z
Acrescente-se que, além de determinar o número de
actantes, o verbo “construir” faz restrição de seleção quanto aos traços
semânticos que devem comportam seus actantes. Assim, o actante sujeito deve ser
preenchido por um substantivo [+ humano], na função semântica de AGENTE
(entidade dotada dos traços [+ animação] e [+ intencionalidade]). O verbo
“construir” não autoriza a ocorrência de um substantivo como “cachorro”, por
exemplo, para ocupar a posição de sujeito. Ora, claro está que “construir”
codifica uma experiência complexa que supõe um agente inteligente, dotado de
capacidades cognitivas e motoras que lhe permitam praticar a ação de
“construir”.
Por seu turno, o verbo “dar”, na acepção com que
foi empregado em (c), a saber, na acepção de ‘transferir ou doar o que se
possui a outrem’, tem uma seleção menos restritiva, já que autoriza a
ocorrência de um sujeito [+ animado], como “cachorro”, desde que o segundo
actante designe um elemento que possa integrar a experiência de um cachorro.
Naturalmente, “cachorros” não dão mesadas, mas podem ser treinados para “dar”
um molho de chaves ao seu dono.
Há que considerar verbos que fazem ainda restrições
quanto à forma do sujeito. Um exemplo desse tipo de verbo é o verbo “convir”,
que seleciona uma oração reduzida de
infinitivo para ocupar a posição de sujeito.
(d) Convém dizer sempre a verdade.
actante-sujeito
Não menos importante é que esse verbo exige que o
sujeito lhe seja, sistematicamente, posposto. Relativamente aos seus actantes, o verbo
determina suas (1) propriedades morfossintáticas; (2) propriedades sintáticas;
(3) propriedades semântico-categoriais; (4) propriedades semântico-relacionais.
As propriedades do tipo (1) – morfossintáticas -, recobrem a presença
ou ausência de marcas preposicionais introduzindo os actantes. Por exemplo, o
verbo gostar exige um actante
introduzido de preposição “de” (cf. Gosto de
sorvete). As propriedades do tipo (2) – sintáticas
– recobrem, por sua vez, as diferentes possibilidades de pronominalização dos
actantes. Por exemplo, os verbos obedecer
e recorrer exigem diferentes formas
de pronominalização de seu actante imediatamente posposto. Para uma frase como “Ele
obedece ao pai”, temos a correspondente com pronominalização do actante “ao pai”
“Ele lhe obedece”. Mas o verbo “recorrer” recusa a forma “lhe” para substituir
seu actante lhe posto à direita. Nesse caso, devemos usar a forma “a ele/a ela”:
“Pedro recorreu ao pai”/ Pedro
recorreu a ele.
Também é uma propriedade sintática a forma
assumida pelo actante por exigência do
verbo predicador. Assim, o verbo “alegrar” pode selecionar para acantante
sujeito um SN cujo núcleo é um substantivo, como em “Alegra-me a sua vinda”, ou
um SN na forma de oração desenvolvida, como em “Alegra-me que você venha”. É
possível também construir o verbo “alegrar” com um actante na forma reduzida de
infinitivo, como em “Alegra-me cumprimentá-lo”.
As propriedades do tipo (3) – semântico-categoriais
– dizem respeito a restrições de seleção dos semas constitutivos do significado
do núcleo dos actantes. Por exemplo, o verbo “espantar” exige que o actante
correspondente à função de sujeito seja ocupado por um substantivo [+ animado],
como em “O garoto se espantou com a atitude do colega”. Esse verbo recusa a
ocorrência de um substantivo nessa mesma posição desprovido desse traço, como
em “* A cadeira se espantou com o mau tempo”.
Finalmente, as propriedades do tipo (4) – semântico-relacionais – recobrem as funções
semânticas que os actantes devem assumir no estado-de-coisas designado. Novamente,
é o verbo que determinará essas funções para seus actantes. O verbo “ouvir”
fixa a função semântica de “EXPERENCIADOR” para o actante x (sujeito), ao passo que o verbo “arremessar” fixa a função semântica
de AGENTE para esse mesmo actante (cf. João
ouviu o barulho que vinha da cozinha/ Paulo
arremessou a pedra na vidraça).
1.6. Verbos
ergativos
O conceito de verbos
ergativos também será importante num momento de minha análise. Verbos
ergativos são verbos cuja estrutura valencial encerra um sujeito que cumpre a
função semântica de PACIENTE.
Cada uma das construções em que se especificam os
actantes do verbo e seus respectivos papéis semânticos é uma diástese. Vejamos um exemplo de verbo
ergativo:
(e) O tanque encheu.
O verbo “encher” pode assumir uma forma ergativa.
Em (e), ele determina a ocorrência de um substantivo no papel semântico de
paciente. Coteje-se (e) com (e1):
(e1) O frentista encheu o tanque.
Agora, o verbo “encher” assume um comportamento
transitivo. Seleciona um actante sujeito AGENTE e um actante complemento
PACIENTE.
Verbos como “encher” são transitivos-ergativos,
porque se comportam como transitivos ou ergativos. A esse grupo deve-se
acrescentar o verbo “abrir”, que ocorrerá em um dos próximos exemplos que
tratarei de examinar neste estudo. A construção ergativa também é determinada
pela valência do verbo.
2. Situando
a problemática
Em sua Moderna
Gramática Portuguesa (2002), o gramático Evanildo Bechara aduz sua
definição de locução verbal nos seguintes termos:
“Chama-se
locução verbal a combinação das
diversas formas de um verbo auxiliar com o infinitivo, o gerúndio ou particípio
de outro verbo que se chama principal
(...) Muitas vezes o auxiliar empresta um matiz semântico ao verbo principal dando
origem aos chamados verbos aspectuais (p. 203)”.
Deve-se notar que a definição de locução verbal
de Bechara assenta apenas no domínio formal do fenômeno, ou seja, sua definição
descreve a estrutura de uma locução verbal, e nada nos diz sobre o que faz com
que um verbo seja considerado verbo auxiliar, questão principal deste trabalho.
Tampouco nos dá a razão por que o outro verbo constituinte da locução é chamado
de principal.
Bechara ajunta que, entre o verbo auxiliar e o
principal na forma de infinitivo, pode ocorrer ou não uma preposição, entre as
mais comuns refere as preposições de, em,
por, a e para (cf. Tenho de sair/
Estou para conseguir um emprego). Prossegue o autor observando que, na locução
verbal, é somente o auxiliar que manifesta as flexões de pessoa, número, tempo e modo
(cf. Haveremos de fazer, iam trabalhando).
Veja-se o elenco de verbos auxiliares apresentado
por Bechara a seguir:
1) ter,
haver e ser
Os verbos ter
e haver constituem os chamados tempos compostos, caso em que se combinam
com a forma de particípio do verbo principal. Assim, temos “tenho cantado” e “havia
vendido”.
O verbo ser
se combina com o particípio-adjetivo (porque variável em gênero e número) para
a formação da voz passiva, equivocadamente chamada pela tradição passiva de ação. Não nego que, em muitos
casos, o verbo ser entra a fazer
parte da formação de uma voz passiva de ação, mas isso se dá apenas quando o
particípio deriva de um verbo que indica ação ou processo. Por exemplo, em “O
carro foi comprado ontem”, há uma voz passiva de ação, já que o verbo “comprar”
denota ação. No entanto, em “João é amado por todos”, não há voz passiva de
ação, pois que a forma participial “amado” é formada a partir do verbo “amar”
que não denota ação, mas uma experiência de ordem psico-física. É lícito dizer
– me parece – que “ser amado” encerra um significado estativo, no sentido em
que a entidade amada encontra-se no estado de objeto do amor.
2) estar e
ficar
Os verbos estar
e ficar também formam a voz
passiva; estar integra a construção
passiva de estado; e ficar, a
construção passiva de mudança de estado. Assim, temos “Estou acordado” e “Depois
de tanto caminhar, ficou cansado”.
Os verbos estar
e ficar também podem-se combinar
com gerúndio, como se vê nas frases “Estamos andando o dia todo” e “Ficava
conversando sem parar”.
3) auxiliares
aspectuais que se combinam com infinitivo ou gerúndio para determinar as
fases da duração do fato expresso pelo verbo. Nesse grupo, Bechara inclui os
verbos: começar a, por-se a, continuar,
estar para, estar (a), andar, vir, ir, tornar a, costumar, acabar, cessar de,
deixar de, parar de.
Notemos, de passagem, que os verbos estar e ficar, quando combinados com gerúndio, indicam o aspecto cursivo,
ou seja, marcam a ação em seu desenvolvimento, em seu curso, como em “Estou escrevendo este texto agora”.
4) auxiliares
modais, que se combinam com o infinitivo ou o gerúndio do verbo principal
para marcar as atitudes que o locutor projeta sobre seu enunciado. Na esteira
da tradição lógica aristotélica, tais marcas expressam as modalidades
fundamentais do possível e do necessário e, por negação, os seus respectivos
contrários, o impossível e o contingente. A despeito de sua herança lógica, a
modalidade é tratada em Linguística como modalização, que não é pura e
simplesmente um novo termo para um já reconhecido fenômeno linguístico, mas uma
nova maneira de encará-lo. Basicamente, o que a Linguística fez ver foi a
importância de considerar o envolvimento dos interlocutores na tentativa de
compreender o fenômeno da modalização. As línguas naturais não conservam as
definições estabelecidas pela Lógica, justamente porque o envolvimento de
interlocutores, numa dada situação de interação, implica a existência de um
contrato epistêmico que redefine as modalidades sentenciais propostas pela
Lógica tradicional.
Constituem exemplos de verbos auxiliares modais ter de, dever, precisar, poder. Os três
primeiros expressam a modalidade. deôntica (do dever, do ser necessário); o
último a do possível. É claro, no entanto, que a determinação da função
modalizadora desses verbos, ou melhor, do seu conteúdo modal depende sempre das
condições contextuais. O verbo “poder”, por exemplo, expressa possibilidade e/ou permissão em “Ele pode faltar à aula hoje”, mas ‘capacidade’ em
“Ele já pode caminhar sozinho”. O verbo “dever” expressa ‘obrigatoriedade,
necessidade’ em “Você deve ajudar os mais velhos”, mas ‘dúvida’, ‘incerteza’,
em “Amanhã, devo ir à escola (não sei)”.
Outro verbo que serve para modalizar o enunciado
é o verbo “parecer” combinado com infinitivo, como em “Ele parece estar sozinho
agora” (expressão de dúvida, incerteza). É preciso entender que é o enunciador
que, ao fazer uso de uma forma como “parecer”, projeta sobre o enunciado uma
atitude de dúvida ou incerteza sobre o conteúdo comunicado. O fenômeno da
modalização já foi objeto de exame em outros textos neste blog, por isso não
vou me estender sobre ele. Mas cumpre dizer que a modalização deve ser
entendida em termos de mais ou menos
adesão do enunciador ao seu enunciado. Quem diz “Ele parece estar sozinho”
não se compromete totalmente com o valor de verdade do seu enunciado, não adere
totalmente ao conteúdo proposicional. A modalização, nesse sentido, é uma das
estratégias de que dispõem os enunciadores para preservar a sua face. Ademais,
o fato de o enunciador marcar mais ou menos adesão aos seus enunciados tem
claras implicações na orientação argumentativa por ele tomada. O fenômeno da
modalização é, portanto, um dentre os recursos de que dispõem os usuários da
língua para fazer uso eficaz dela argumentativamente. Por exemplo, se estou
insatisfeito com a insistência de minha namorada ou esposa para que vamos à
praia amanhã, posso demonstrar meu desinteresse por ir, enunciando que “Parece
que amanhã vai chover” (as razões de meu desinteresse podem ser outras, é
claro; e isso certamente pode ensejar uma discussão, mas vamos desconsiderar
essa possibilidade). O “parece que amanhã vai chover” constitui não só uma
estratégia de recusa de um pedido indiretamente, mas, por força da ocorrência
de “parecer”, também uma estratégia pela qual não me comprometo, ou melhor,
afrouxo minha responsabilidade pela confiabilidade da informação. Manifesto
dúvida sobre a possibilidade de chover (ouvi dizer, trata-se de uma previsão
meteorológica da qual tomei conhecimento), mas não se me podem imputar a
responsabilidade por enunciar uma falsidade caso “amanhã” faça um sol
escaldante. O “parece que amanhã vai chover” também dá certa margem de
liberdade de escolha a minha interlocutora, que pode se “arriscar” ou não a ir
à praia, na esperança de que a previsão falhe. Assim, ao mesmo tempo em que lhe
dou uma margem de escolha, busco mascarar qualquer atitude autoritária em minha
fala, comunicando-lhe, no entanto e ao mesmo tempo implicitamente, que não
estou disposto a me “arriscar”.
Retomando o elenco proposto por Bechara, cabe
ainda referir outros conjuntos de verbos considerados por ele como auxiliares.
Trata-se de casos, deveras, problemáticos. Vejamos quais são esses conjuntos.
5) Verbos que expressam tentativa ou esforço, em
alguns casos seguido de decepção.
Busco escrever
Pretendo viajar
Tento ficar
Ouso reclamar
Procuro examinar
6) Verbos que indicam volição ou desejo:
Quero escrever
Desejo escrever
Odeio estudar
7) Verbos que exprimem consecução:
Consegui terminar
Logrei fazer
8) Verbos auxiliares causativos e sensitivos:
a) causativos: deixar, mandar e fazer;
b) sensitivos: ver, ouvir e sentir.
Todos esses casos merecem uma avaliação crítica,
mas vou circunscrevê-la a dois casos que, uma vez se demonstrem incorretos à
luz da crítica, os outros dois também estarão. Ater-me-ei aos casos 6) e 8).
Segundo Bechara, verbos como querer, desejar e odiar
podem ou não se comportar como auxiliares. Em nota, ele nos dá a conhecer o que
é necessário considerar para que estes verbos sejam considerados ou não
auxiliares:
“Por
exemplo, na frase: queríamos colher rosas,
os verbos queríamos e colher constituirão expressão verbal se
pretendo dizer que queríamos colher rosas e não outra flor, sendo rosas objeto
da declaração. Se, porém, pretendo dizer que o que nós queríamos era colher
rosa e não fazer outra coisa, o objeto da declaração é colher rosas e a
declaração principal se contém incompletamente em queríamos” (p.233).
Bechara cita aí José Oiticica. Esclareça-se o que
nos ensina o gramático. O que está dizendo Bechara é que é a intenção do
falante que determinará se, em “queríamos colher rosas”, há uma locução verbal
“queríamos colher” ou, ao contrário, uma oração principal “queríamos” a que se
articula uma oração de infinitivo “colher rosas”. O problema patente dessa proposta
é o total abandono da descrição à arbitrariedade em que se baseia o recurso à
“intenção do falante”. É claro que a intenção do falante é um dos elementos
importantes a ser considerados quando se descreve a língua em uso, mas a
intenção é sempre pensada como um elemento constitutivo da troca verbal, o qual
deve, para ter valor epistemológico, ser passível de apreensão pela
materialidade linguística. Na esteira da Pragmática, em Linguística, a intenção
é realizada por meio de textos; dito de outro modo, os textos realizam a
intenção dos falantes e permitem recuperá-la. O que Bechara fez, a meu ver, foi
simplesmente renunciar a se decidir sobre a questão. Ele se negou a lançar mão
de um critério seguro, tangível ou operancional para determinar se em
“queríamos colher rosas”, o verbo “querer” é um verbo auxiliar ou não.
A razão por que a análise mais adequada é a que
fixa o caráter não-auxiliar para verbos como “querer” é que esse verbo conserva
seu significado lexical e, por consequência, a sua natureza valencial ou
predicadora. Substituamos “colher rosas” por “casar com você”, e ajustemos a
oração, para vermos que o verbo “querer” seleciona para actante à direita toda
a oração “casar com você” (cf. Quero casar com você). Ora, o sintagma
preposicional “com você” não está sob a dependência do conjunto “quero casar”,
mas apenas de “casar”. Ele integra a
oração de “casar”. O verbo “querer” conserva seu estatuto valencial,
selecionando um complemento direto na forma oracional. Mais adiante, veremos se
os critérios sintáticos se aplicam satisfatoriamente a esse caso.
Detendo-me doravante no caso dos auxiliares
causativos e sensitivos, convém notar que Bechara (p.430), aduzindo os exemplos
abaixo,
Vejo abrir a porta
Ouço soprar o vento
Vejo crescer as árvores
mantém que, em “Vejo abrir a porta”, “a porta” é
objeto direto de “abrir”, interpretação equivocada, porque, nessas construções,
o SN é, sistematicamente, deslocado para a posição posterior à combinatória
verbal. Essa possibilidade de deslocamento é garantida pela natureza
semântico-sintática do infinitivo. Os verbos “soprar” e “crescer” são verbos
que recusam objeto direto; e o verbo “abrir” é um verbo do tipo ergativo-transitivo.
Quando ergativo, o verbo “abrir” seleciona um actante sujeito-PACIENTE. Por
exemplo, “A porta abriu”. Na construção “Vejo a abrir a porta”, “a porta” é
sujeito de “abrir”, que está apenas deslocado de sua posição canônica (cf. Vejo
a porta abrir). O verbo “abrir” admite uma diátese transitiva, caso em que se
construiria com um sujeito-AGENTE – objeto-PACIENTE, como em “Pedro abriu a
porta”.
Apesar do equivoco da análise de Bechara, ele
entende que o conjunto formado pelo infinitivo e o SN que o acompanha é uma
unidade sintática dependente do verbo “vejo”, do que resulta a admissão de que
o verbo “ver” não é um auxiliar.
Um expediente extremamente eficaz para determinar
o caráter não-auxiliar dos chamados verbos sensitivos é o desenvolvimento do
conjunto formado pelo infinitivo numa oração encetada de “que”. Assim, para
“Vejo abrir a porta”, temos “Vejo que abriu a porta (ou que a porta abriu)”.
Esse expediente formal é extensivo ao conjunto dos verbos causativos também.
Assim, para “Mandei o garoto ir ao mercado”, temos “Mandei que o garoto fosse
ao mercado”. A transformação da oração reduzida de infinitivo em uma oração
desenvolvida patenteia que ela é um constituinte selecionado pela valência do
verbo que a precede (respectivamente, “ver” e “mandar”).
3.
Critérios sintáticos para a determinação da auxiliaridade dos verbos
Finalmente, cumpre atentar para os critérios de
base formal que podem ajudar-nos na busca por determinar se há, numa dada
combinatória de verbos, um verbo auxiliar.
1º critério: existência
de um único sujeito para o grupo verbal.
Segundo esse critério, há locução verbal e,
portanto, um verbo auxiliar sempre que houver um único sujeito que está em
dependência de todo o conjunto verbal. Nesse caso, o sujeito é selecionado pelo
verbo principal, o verbo que comporta a função de predicação no conjunto.
Seguem-se os exemplos abaixo:
(f) Eu vou correr na Lagoa amanhã.
(g) Ele ficou caminhando o dia todo.
Em (f) e (g), são os verbos “correr” e “caminhar”
que selecionam, respectivamente, os sujeitos “Eu” e “Ele”. São esses verbos que
conservam significado lexical e, portanto, sua natureza valencial. Comparem-se
esses casos como o caso (h), abaixo:
(h) Vejo o menino subindo às escadas.
Em (h), o sujeito de “vejo” é diferente do sujeito
de “subindo”. Podemos transformar o conjunto “subindo as escadas” na forma
desenvolvida: Vejo que o menino sobe às
escadas. Claro está que os sujeitos são diferentes e que, por isso, não há
locução verbal.
2º critério: impossibilidade
de transformação do verbo pleno numa oração desenvolvida
Só há locução verbal, quando não conseguimos
transformar o verbo pleno numa oração desenvolvida, à semelhança do que fizemos
acima. No exemplo abaixo, é impossível tal procedimento:
(i) Eu tive de sair cedo.
(i1) * Eu tive de que saí cedo.
3º critério: inserção
da negação na tentativa de romper com a unidade do conjunto verbal
Se for possível a inserção da negação no conjunto
verbal, sem perturbar sua unidade semântica, não há locução verbal; do
contrário, há locução verbal. No exemplo abaixo, a impossibilidade de usar a
negação entre os dois verbos indica que se trata de uma locução verbal e que o
primeiro verbo é um auxiliar.
(l) A criança está brincando.
(l1) * A criança está não brincando.
Ora, a partícula de negação só pode orbitar o
conjunto “está brincado”, donde se segue que seu escopo é todo o conjunto (cf.
A criança não está brincando).
Esse critério me parece ser o menos eficiente, já
que ele pode não valer para os casos aos quais os outros critérios se
demonstraram aplicáveis. Assim é que, em “Deixa o menino brincar”, a inserção
da negativa entre “deixa” e “brincar” torna o enunciado inaceitável - “* Deixa
o menino não brincar” - ou muito
pouco aceitável “ (?) Deixa não
brincar o menino”. Não obstante, vimos que construções com verbos como “deixar”
seguido de infinitivo não encerram locução verbal. Os critérios 1 e 2 garantem
ser este o caso.
4º critério: pronominalização
Se o verbo que ocupa a segunda posição na
construção supostamente perifrástica for pronominalizável, segue-se daí que
esse verbo comporta-se como um actante do primeiro verbo. Assim, não há locução
verbal, e o primeiro verbo é também um verbo pleno. Veja-se o seguinte exemplo:
(m) Você sabe agradar ao seu marido.
- Eu o
sei. (o = agradar ao seu marido)
Não há dúvida de que o verbo “saber” não se
comporta como verbo auxiliar, não só porque ele conserva seu significado
lexical, quando combinado com um infinitivo, mas também porque pode
construir-se com uma oração desenvolvida encetada por “que” (ou, se na
negativa, com “se”). Por exemplo, temos “Eu sei que o professor dará prova
amanhã”. Ademais, em “Você sabe agradar ao seu marido”, “ao seu marido” não é
um actante do conjunto “sabe agradar”, mas apenas de “agradar”.
Os critérios aqui elencados, longe de resolver a
complexidade do problema de que me ocupei aqui, lança algumas luzes sobre o
estudo da locução verbal e das condições que conferem a propriedade de auxiliaridade a um verbo. Creio, no
entanto, que a adoção desses critérios não pode levar o estudioso a
desconsiderar a raiz semântica do problema, qual seja, a conservação ou não do
significado lexical do primeiro verbo do conjunto e de sua natureza valencial.
Isso é importante quando queremos determinar, por exemplo, se o verbo
“conseguir”, em “Eu consegui namorá-la por dois anos”, é um verbo auxiliar ou
um verbo pleno; se há uma locução verbal ou uma oração principal de que depende
outra oração dita, por isso, subordinada.