quarta-feira, 20 de julho de 2011

" A dor da morte é a saudade, que não se enterra, mas se hospeda" (BAR)





                            Ao meu cachorrinho
                               Do meu coração

Percorri os arquivos de textos em meu computador, a fim de encontrar algum texto em que escrevi sobre o budismo. Gostaria de trazer à cena um pouco do que li sobre a filosofia budista. Impressiona-me o fato de meu espírito trafegar por áreas temáticas diversas. Houve uma época em que me dediquei à leitura de várias doutrinas religiosas.
Como eu não encontrasse o texto, lembrei-me de que Rubem Alves escrevera brilhantemente sobre temas que nos são inquietantes, em O Deus que conheço (2010). No capítulo Sobre a morte e morrer, apresenta-nos a seguinte confissão:

“Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas do coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca vazia de cigarra”
(p. 40)

Decerto, a vida humana não se reduz a explicações biológicas; a dimensão biológica é tão-só a evidência de que pertencemos a uma totalidade natural, orgânica. Mas somos, antes de tudo, espírito e emoção. É o espírito e a emoção o fundamento da vida humana. Espírito e emoção tornam essa vida mais complexa e, por que não dizer, complicada.
Mais abaixo, na mesma página, o autor acrescenta, ao referir-se à necessidade de morrer:

“Liberta-me. Deixa-me ir”. A vida deseja descansar”

A vida de meu cachorrinho precisava descansar. Acometido de um câncer irreversível, de cegueira e surdez, meu cachorrinho viveu seus últimos dias prostrado, absorvido por um sofrimento que consternava a todos nós. A decisão pela eutanásia não se deu sem o custo de muitas lágrimas lamentosas e um choro plangente.  É quando a morte se desnuda diante de nós e nos lembra que nossa estada aqui é passageira; ela retira o seu véu e nos chama inelutável e inexoravelmente.
No capítulo O direito de morrer sem dor, o autor declara-nos:

“(...) sou a favor da eutanásia por motivos éticos”.
(p. 66)

E, citando, Albert Camus, adere a esse imperativo irreprochável:

“Eu apenas conheço um único dever, que é o de amar”.

É porque acolhemos esse princípio que decidimos que era chegada a hora de meu cachorrinho partir. Uma prova do amor que nutrimos por ele era consentir que a morte pusesse fim ao seu sofrimento, que era também o nosso sofrimento.
Rubem Alves, novamente, nesse texto, se nega a aceitar a vida como apenas resultante de processos biológicos. E se pergunta: o que é a vida? Escreve-nos:

“A vida não será como a música? Uma música sem fim seria insuportável. Toda música quer morrer. A morte é parte da beleza da vida.”
“A vida não pode ser medida por batidas do coração ou ondas elétricas”
(p. 67)

Músicas emocionam a vida. Tocam à vida. Dizem de nossas almas, embalam nossas emoções, fazem dançar nossas lágrimas, reaviva-nos lembranças adormecidas ou mortas. A analogia entre música e vida é bastante pertinente, pois que a música eterniza a vida. Na música, a vida é recontada, a alma da vida permanece na melodia, nas notas, nos versos. Na música, quem nos fala não é a voz, mas a alma. Música, alma e vida conduzem-nos ao infinito, porque nos tornam desejosos de inesgotabilidade.
Decerto, a imortalidade da vida orgânica seria entediante, mas não da vida espiritual, que a transcende e que é atemporal. O tempo cerceia vida, a aprisiona; somente uma vida atemporal pode nos regozijar plenamente, porque não conheceremos a pressa, a urgência, a espera. Nada mais a esperar.
Eu não sou apenas um homem, sou um acontecimento do Mistério da vida; sou um rebento da inquietude, da des-esperança.
A morte biológica é quando as luzes do corpo se apagam. A morte do corpo é mera in-animação. A matéria imóvel, enrijecida, apodrecendo é apenas a sobra de uma casa envelhecida destinada à ruína. E toda a nossa complexidade biológica será destinada a ser pó, alimento dos vermes, adubo para a terra faminta.
Mas o sopro da vida, que inspira o AMOR, que aspira à felicidade, ao prazer, ao gozo; o sopro da vida que deseja a eternidade, mesmo que cindida num instante, breve, fugaz, mas deleitoso; esse sopro que se apossa de nós quando vivemos apaixonados, acolhidos nas asas do AMOR, que nos permite experimentar sensações provindas das Alturas – regiões intangíveis, incognoscíveis, mas tão humanamente reconhecíveis; esse sopro que nos adverte, todos os dias, que somos finitos, que as coisas do mundo são passageiras, que nada podemos reter, senão o AMOR que nos foi permitido experienciar e as alegrias, também efêmeras, que compartilhamos com aqueles que amamos e que nos amaram; esse sopro que, em alguns, é desperto e inquieto; em outros, permanece sempre adormecido; esse sopro não se extingue, porque é emoção (é o que nos move, nos agita, nos impele). E a emoção é o que permanece em nosso coração, é a lembrança que dói por um tempo, mas que há de tornar-se amena, confortante; emoção que é desejo, demasiadamente humano, de que a morte imperiosa não seja o fim, mas apenas um recomeço.

4 comentários:

  1. Bruno, que triste! Infelizmente essa é uma dor que eu conheço bem, perder o nosso verdadeiro melhor amigo, aquele amigo que ama a gente de verdade sem interesse algum. Infelizmente a vida dos cachorros passa muito rápido, dez anos pra gente é quase nada, mas para os bichinhos é praticamente a vida dele. Muito triste, sinto muito de coração porque eu sei que o quanto dói, é uma parte da família que estava presente no dia a dia, sempre fiel e de repente tem que partir...

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  2. Nossa Bruno! Ontem eu lembrei do seu cachorrinho, pelo que você escreveu em outra postagem... Mas concerteza foi a decisão mais correta... É difícil... Sei bem o que sentes. Bjusss

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  3. Querido Bruno...

    Esse texto me fez chorar porque revivi uma situação semelhante vivida em novembro de 2010.Depois de 16 anos, minha cachorrinha se foi , silenciosa e doce , em um cantinho do meu carro.
    Devo dizer-lhe que a lacuna, 9 meses depois, não foi preenchida. Chego a escutar os passinhos dela pelo assoalho e ouso dizer que foi o MAIOR AMOR que alguém me dedicou nessa vida.Quando abro a porta de casa, fico esperando-a como se fosse possível ela estar lá.
    Também lhe escrevi um post e sofri como você.
    Temos que acreditar que ganhamos um presente , fomos privilegiados, ainda que por um tempo finito.
    beijos.

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  4. O grande contentamento que me dá este blog é justamente o da partilha de pensamentos e emoções, enfim, de experiências. A minha solidão é acolhida na solidão de meus leitores. Noto isso nos comentários de todos. Todos dão alguma medida de si. Sinto-me feliz por ter alcançado a abundância do espírito de todos e tomar parte dela, com o meu coração.

    Beijos agradecidos!

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