Mostrando postagens com marcador registro simbólico. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador registro simbólico. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

"Na medida em que a fantasia fornece o enquadramento que nos possibilita vivenciar o real de nossas vidas como um Todo significativo, a desintegração da fantasia pode ter consequências desastrosas". (Slavoj Zizek)




A Dança da Morte

 

 

Uma jovem que faz vídeos de TikTok e que conta com quase 200 mil seguidores foi alvo da indignação, do repúdio e da desaprovação dos internautas, após um vídeo que ela fez no quarto de hospital onde sua mãe, em estado terminal de câncer, viria a falecer no dia seguinte. O acontecimento protagonizado pela jovem foi avaliado negativamente por meio das expressões “falta de respeito”, “absurdo”, “irresponsabilidade” (e imagino que os seguidores da jovem tenham usado outros tantos índices de avaliação negativa análogos). Permitam-me fazer uma interpretação do caso que torne visível aquilo que as manifestações simbólicas do senso comum não trouxeram à luz. Que os lacanianos me perdoem se, por ventura, me valendo dos três registros com que Lacan pensa a existência humana, eu ignore um ou outro aspecto da problemática por que eles respondem na teoria deste psicanalista francês.

Para Lacan, o imaginário, o simbólico e o real são os três registros fundamentais que estruturam a existência humana. Eles são as dimensões fundamentais em que um ser humano habita. Os três termos estão ligados de modo indissociável, e, a fim de ilustrar o fato de que “tudo começa com três”, ou seja, de que são necessários três elementos inextricavelmente articulados para que se tenha uma estrutura, Lacan lança mão do modelo de representação do nó borromeano. O imaginário, para Lacan, recobre a ordem do sentido. O imaginário é o domínio da nossa experiência vivida imediata da realidade, mas também de nossos sonhos e pesadelos. O imaginário é o imaginário do sujeito; é marcado por uma falta originária, uma hiância real que virá a ser preenchida pelo simbólico. Essa falta do imaginário do sujeito é uma hiância congênita que o ser real do homem apresenta em suas relações com o natural. Em suma, o imaginário, grosso modo, é o domínio do modo como as coisas aparecem para nós. O registro do simbólico, por seu turno, é o que Lacan chama “o grande Outro” - o outro invisível que estrutura nossas experiências da realidade. O registro do simbólico é da ordem do duplo sentido, porquanto permite ao falante mediar o encontro com o sem-sentido do real. O simbólico é o registro que vem ocupar, no sujeito, o lugar da falta real primordial do imaginário. O que é da ordem do ôntico, para o homem, é constitucionalmente marcado por uma falta originária. Há uma distinção fundamental entre o sujeito e o eu: o sujeito está numa relação excêntrica com o eu. O sujeito não é o indivíduo, isto é, o sujeito não é indiviso. Ao contrário, o sujeito é marcado por uma divisão constituinte, é determinado pelo simbólico, dividido entre os significantes que o constituem. O lugar do sujeito é o lugar do corte, da ruptura, ao passo que o eu representa a configuração de uma unidade, de uma completude, constituída imaginariamente. O que chamamos de realidade é uma montagem pela qual são responsáveis o simbólico e o imaginário. Toda a realidade, incluindo a realidade psíquica, é configurada a partir da fantasia inconsciente fundamental. O relacionamento do sujeito com outros sujeitos e com o mundo exterior será sempre mediado por essa tela da fantasia, protetora do real traumático. É a fantasia, constituída pelo simbólico, pelos significantes do Outro que medeia o encontro do sujeito com o que é inabordável enquanto tal – a saber, o real. Não é custoso entender em que medida o simbólico está no cerne da problematicidade da existência humana. A linguagem é, enquanto substituição do real inefável, uma possibilidade de atividade para o sujeito. O que era vivência passiva imediata para ele passa a ser vivido ativamente por meio da linguagem. A subjetivação das vivências depende do processo de simbolização que a linguagem permite. Todo uso da linguagem é metafórico, no sentido de que a linguagem, em si mesma, é da ordem da substituição de uma falta originária; ela, a linguagem, é, em si mesma, uma imensa metáfora. A precedência da ordem simbólica faz com que a linguagem seja o que constitui a realidade para cada sujeito, pois que, antes dela, só há a indiferenciação do real. Destarte, Lacan entende que a metáfora se situa no ponto preciso em que o sentido se produz a partir do não sentido, isto é, do real. A entrada do sujeito na ordem da linguagem – ordem simbólica – re-produz uma perda de ser original. A linguagem, inscrevendo-se no lugar da falta-de-ser, será sempre metáfora do sujeito. O Outro, enquanto lugar do significante, é o registro do simbólico, na medida em que o campo dos significantes é faltoso, incompleto; nele há sempre a possibilidade de um ato criativo, de um novo significante. Jamais se sai, portanto, do regime da linguagem. Estamos sempre mergulhados no campo da linguagem, e não existe qualquer outra linguagem, senão a linguagem verbal, que venha dar conta desse campo. Em suma, “o grande Outro”, que é o simbólico, é uma complexa rede de regras e significados que nos faz ver o que vemos da maneira como o vemos ( e o que não vemos da maneira como não vemos). Por fim, temos o real . O real de que fala a psicanálise não se identifica com a realidade biofísico-social. Em outras palavras, o real não é a realidade que conhecemos em nossa experiência de mundo cotidiana. O real é o impossível de ser simbolizado. O real é o que ex-siste, ou seja, o que está fora, o que escapa à trama do sentido. O real é o não-senso radical, o que não tem nenhum sentido. O real é a parte do sujeito que escapa à análise. O real se encontra além do simbólico e do imaginário, para além da palavra e da linguagem. O real, não sendo a realidade percebida, tampouco é a realidade psíquica. A realidade psíquica é a realidade do inconsciente, do desejo e de suas fantasias. Se a realidade exterior é fabricada, ordenada a partir da linguagem e tem como referência o sujeito, o real é o pré-subjetivo e constitui um registro distinto do simbólico. O real não se submete à organização do mundo externo nem obedece à organização da realidade psíquica. O real, situando-se além da ordem e da lei, está fora do campo do princípio de prazer. Ele coloca-se como um obstáculo ao princípio de prazer. O real é o oposto do imaginário. Destarte, o real excede à capacidade de representação psíquica: o real é a morte, a perda, aquilo que não tem inscrição possível no psiquismo. O real é, por excelência, o trauma, isto é, aquilo que não pode de modo algum ser assimilado pelo sujeito em suas representações simbólico-imaginárias. O real é o limite da simbolização. Em suma, o real é um encontro traumático, que não pode ser simbolizado, de extrema violência que desestrutura e fragiliza inteiramente nosso universo de significado. O real não é a coisa-em-si kantiana; não é uma coisa externa que resiste a ser apanhado na trama do simbólico, mas são as fissuras, os vestígios e as consequências, os efeitos que se deixam discernir na rede simbólica. O real é um efeito das lacunas e das incoerências da rede simbólica.

Nós nunca encontramos o real diretamente. Na verdade, nosso encontro com o real traumático é evitado pela fantasia.  Como diz Zizek, "a fantasia fornece o enquadramento que nos possibilita vivenciar o real de nossas vidas como um Todo significativo". ( 2017, p. 31). O real é o acontecimento - a morte da mãe, a perda definitiva no nunca mais, a ruptura de um vínculo no vazio do sem sentido do real. Tudo que o homem pode experienciar é da ordem do simbolizável; a ordem simbólica é fundante; ela sempre já existiu. A dancinha da jovem busca reinscrever o real traumático, o sem sentido no registro do imaginário-simbólico. E todas as avaliações negativas (expressas pelos significantes “absurdo”, “desrespeito”, e outros mais) que foram dispensadas sobre a jovem que fez a dancinha de TikTok, momentos antes da morte da mãe, são tentativas de reestruturar o domínio imaginário-simbólico, para que a morte encontre nele sentido, um registro significativo. A dancinha da jovem se inscreve na ordem simbólico-imaginária do banal, do trivial, do comum, do lúdico, da indiferença. Essa dimensão do banal, do comum, do lúdico absorve o acontecimento, diluindo o real traumático da morte. A morte é da ordem do sem sentido , da quebra, do corte com a ordem simbólico-imaginária. Quando vamos a um enterro, participamos de um evento de ritualização da morte. Nas práticas funerárias,  inserimos a morte na ordem simbólico-imaginária que estrutura a realidade comum vivida. A morte, tão banal e comum a todos os viventes , deixa de ser um evento da ordem natural simplesmente (morre-se e isso é tudo), para fazer parte da ordem simbólica (cultura). Assim, evitamos o confronto violento com o real da morte. Em nossa cultura cristã, a morte não é o fim da vida; a morte é ressignificada, semiotizada, como uma passagem, um acesso a outro modo de existir, a um além-mundo onde os mortos que enterramos viverão. A morte é, assim, um intervalo que interrompe, por certo período de tempo, a convivência daquele que deixa este mundo com aqueles que nele ficam. Tais formas de representar a morte expressam os modos como o evento da morte é inscrito na ordem simbólico-imaginária; em outros termos, as diferentes representações culturais da morte são as formas como o evento da morte passa a integrar os universos simbólicos, culturalmente construídos, no interior dos quais toda a experiência humana – é preciso frisar – é concebida como se realizando, se efetivando, se manifestando. 

O que causou indignação pública, ou mesmo escândalo, na dancinha de TikTok em face da mãe moribunda é menos a irrupção do domínio íntimo e privado na esfera pública do que o real da morte que ficou muito aparente. A insistência do real em se deixar ver, em aparecer nas fissuras do simbólico, provocou a reprovação do grande Outro. O grande Outro precisou intervir, com seus significantes, para restituir o modo simbólico-imaginário como o sujeito tem de experienciar o acontecimento da morte da mãe. Pois a dancinha expunha o que não pode ser tolerado, porque é real demais: a insignificância radical da existência e a banalidade da morte. A dancinha de TikTok continuaria a ser feita depois do sepultamento da mãe, porque, afinal, o banal da vida resiste, insiste e prossegue depois que a ‘seriedade’, a solenidade, o respeito, a deferência profunda à figura do morto e o assombro em face da inexorabilidade da morte são suspensos, são novamente afastados de nossa consciência imediata do mundo. Enterramos os mortos para que o horror do real que representam não nos atormente e não perturbe o curso normal e banal de nossas vidas. A vida precisa continuar significa precisamente isto: a morte e os mortos precisam deixar de perturbar, de desestabilizar a ordem simbólica e imaginária que nos permite levar adiante a vida. A dancinha do TikTok antecipou aquilo que tem de ser, de qualquer modo, feito: o mortos precisam deixar de nos perturbar, a morte deve manter-se afastada, por um longo tempo, da rede simbólico-imaginária que torna possível a vida social, e a banalidade do viver deve prevalecer sobre a insignificância radical da existência humana, que é demasiado real para ser encarada.