A Dança da Morte
Uma jovem que faz vídeos de TikTok e que conta com quase 200 mil
seguidores foi alvo da indignação, do repúdio e da desaprovação dos
internautas, após um vídeo que ela fez no quarto de hospital onde sua mãe, em
estado terminal de câncer, viria a falecer no dia seguinte. O acontecimento protagonizado pela jovem foi
avaliado negativamente por meio das expressões “falta de respeito”,
“absurdo”, “irresponsabilidade” (e imagino que os seguidores da jovem tenham
usado outros tantos índices de avaliação negativa análogos). Permitam-me fazer
uma interpretação do caso que torne visível aquilo que as manifestações
simbólicas do senso comum não trouxeram à luz. Que os lacanianos me perdoem se,
por ventura, me valendo dos três registros com que Lacan pensa a existência
humana, eu ignore um ou outro aspecto da problemática por que eles respondem na
teoria deste psicanalista francês.
Para Lacan, o imaginário, o simbólico
e o real são os três registros fundamentais que estruturam a existência humana.
Eles são as dimensões fundamentais em que um ser humano habita. Os três termos
estão ligados de modo indissociável, e, a fim de ilustrar o fato de que “tudo
começa com três”, ou seja, de que são necessários três elementos
inextricavelmente articulados para que se tenha uma estrutura, Lacan lança mão
do modelo de representação do nó borromeano. O imaginário, para Lacan, recobre
a ordem do sentido. O imaginário é o domínio da nossa experiência vivida
imediata da realidade, mas também de nossos sonhos e pesadelos. O imaginário é o imaginário do sujeito; é marcado por uma falta originária, uma hiância real que
virá a ser preenchida pelo simbólico. Essa falta do imaginário do sujeito é uma
hiância congênita que o ser real do homem apresenta em suas relações com o
natural. Em suma, o imaginário, grosso modo, é o domínio do modo como as coisas
aparecem para nós. O registro do simbólico, por seu turno, é o que Lacan chama
“o grande Outro” - o outro invisível que estrutura nossas experiências da
realidade. O registro do simbólico é da ordem do duplo sentido, porquanto
permite ao falante mediar o encontro com o sem-sentido do real. O simbólico é o
registro que vem ocupar, no sujeito, o lugar da falta real primordial do
imaginário. O que é da ordem do ôntico, para o homem, é constitucionalmente
marcado por uma falta originária. Há uma distinção fundamental entre o sujeito
e o eu: o sujeito está numa relação excêntrica com o eu. O sujeito não é o
indivíduo, isto é, o sujeito não é indiviso. Ao contrário, o sujeito é marcado
por uma divisão constituinte, é determinado pelo simbólico, dividido entre os
significantes que o constituem. O lugar do sujeito é o lugar do corte, da
ruptura, ao passo que o eu representa a configuração de uma unidade, de uma
completude, constituída imaginariamente. O que chamamos de realidade é uma
montagem pela qual são responsáveis o simbólico e o imaginário. Toda a
realidade, incluindo a realidade psíquica, é configurada a partir da fantasia
inconsciente fundamental. O relacionamento do sujeito com outros sujeitos e com
o mundo exterior será sempre mediado por essa tela da fantasia, protetora do
real traumático. É a fantasia, constituída pelo simbólico, pelos significantes
do Outro que medeia o encontro do sujeito com o que é inabordável enquanto tal
– a saber, o real. Não é custoso entender em que medida o simbólico está no
cerne da problematicidade da existência humana. A linguagem é, enquanto
substituição do real inefável, uma possibilidade de atividade para o sujeito. O
que era vivência passiva imediata para ele passa a ser vivido ativamente por
meio da linguagem. A subjetivação das vivências depende do processo de
simbolização que a linguagem permite. Todo uso da linguagem é metafórico, no
sentido de que a linguagem, em si mesma, é da ordem da substituição de uma
falta originária; ela, a linguagem, é, em si mesma, uma imensa metáfora. A
precedência da ordem simbólica faz com que a linguagem seja o que constitui a
realidade para cada sujeito, pois que, antes dela, só há a indiferenciação do
real. Destarte, Lacan entende que a metáfora se situa no ponto preciso em que o
sentido se produz a partir do não sentido, isto é, do real. A entrada do
sujeito na ordem da linguagem – ordem simbólica – re-produz uma perda de ser
original. A linguagem, inscrevendo-se no lugar da falta-de-ser, será sempre
metáfora do sujeito. O Outro, enquanto lugar do significante, é o registro do
simbólico, na medida em que o campo dos significantes é faltoso, incompleto;
nele há sempre a possibilidade de um ato criativo, de um novo significante.
Jamais se sai, portanto, do regime da linguagem. Estamos sempre mergulhados no
campo da linguagem, e não existe qualquer outra linguagem, senão a linguagem
verbal, que venha dar conta desse campo. Em suma, “o grande Outro”, que é o
simbólico, é uma complexa rede de regras e significados que nos faz ver o que
vemos da maneira como o vemos ( e o que não vemos da maneira como não vemos).
Por fim, temos o real . O real de que fala a psicanálise não se identifica com a
realidade biofísico-social. Em outras palavras, o real não é a realidade que
conhecemos em nossa experiência de mundo cotidiana. O real é o impossível de
ser simbolizado. O real é o que ex-siste, ou seja, o que está fora, o que
escapa à trama do sentido. O real é o não-senso radical, o que não tem nenhum
sentido. O real é a parte do sujeito que escapa à análise. O real se encontra
além do simbólico e do imaginário, para além da palavra e da linguagem. O real,
não sendo a realidade percebida, tampouco é a realidade psíquica. A realidade
psíquica é a realidade do inconsciente, do desejo e de suas fantasias. Se a
realidade exterior é fabricada, ordenada a partir da linguagem e tem como
referência o sujeito, o real é o pré-subjetivo e constitui um registro distinto
do simbólico. O real não se submete à organização do mundo externo nem obedece
à organização da realidade psíquica. O real, situando-se além da ordem e da
lei, está fora do campo do princípio de prazer. Ele coloca-se como um obstáculo
ao princípio de prazer. O real é o oposto do imaginário. Destarte, o real
excede à capacidade de representação psíquica: o real é a morte, a perda,
aquilo que não tem inscrição possível no psiquismo. O real é, por excelência, o
trauma, isto é, aquilo que não pode de modo algum ser assimilado pelo sujeito
em suas representações simbólico-imaginárias. O real é o limite da
simbolização. Em suma, o real é um encontro traumático, que não pode ser
simbolizado, de extrema violência que desestrutura e fragiliza inteiramente
nosso universo de significado. O real não é a coisa-em-si kantiana; não é uma
coisa externa que resiste a ser apanhado na trama do simbólico, mas são as
fissuras, os vestígios e as consequências, os efeitos que se deixam discernir
na rede simbólica. O real é um efeito das lacunas e das incoerências da rede
simbólica.
Nós nunca encontramos o real
diretamente. Na verdade, nosso encontro com o real traumático é evitado pela
fantasia. Como diz Zizek, "a fantasia fornece o enquadramento que nos possibilita vivenciar o real de nossas vidas como um Todo significativo". ( 2017, p. 31). O real é o acontecimento - a morte da mãe, a perda definitiva no
nunca mais, a ruptura de um vínculo no vazio do sem sentido do real. Tudo que o
homem pode experienciar é da ordem do simbolizável; a ordem simbólica é fundante; ela
sempre já existiu. A dancinha da jovem busca reinscrever o real traumático, o
sem sentido no registro do imaginário-simbólico. E todas as avaliações
negativas (expressas pelos significantes “absurdo”, “desrespeito”, e outros
mais) que foram dispensadas sobre a jovem que fez a dancinha de TikTok, momentos
antes da morte da mãe, são tentativas de reestruturar o domínio
imaginário-simbólico, para que a morte encontre nele sentido, um registro
significativo. A dancinha da jovem se inscreve na ordem simbólico-imaginária do
banal, do trivial, do comum, do lúdico, da indiferença. Essa dimensão do banal,
do comum, do lúdico absorve o acontecimento, diluindo o real traumático da
morte. A morte é da ordem do sem sentido , da quebra, do corte com a ordem
simbólico-imaginária. Quando vamos a um enterro, participamos de um evento de ritualização da morte. Nas práticas funerárias, inserimos a morte na ordem simbólico-imaginária que estrutura a realidade comum vivida.
A morte, tão banal e comum a todos os viventes , deixa de ser um evento da
ordem natural simplesmente (morre-se e isso é tudo), para fazer parte da ordem
simbólica (cultura). Assim, evitamos o confronto violento com o real da morte.
Em nossa cultura cristã, a morte não é o fim da vida; a morte é ressignificada, semiotizada, como uma passagem, um acesso a outro modo de existir, a um além-mundo onde os
mortos que enterramos viverão. A morte é, assim, um intervalo que interrompe, por certo período
de tempo, a convivência daquele que deixa este mundo com aqueles que nele
ficam. Tais formas de representar a morte expressam os modos como o evento da morte
é inscrito na ordem simbólico-imaginária; em outros termos, as diferentes representações culturais da morte são as formas como o evento da morte passa a integrar os universos simbólicos, culturalmente construídos, no interior dos quais
O que causou indignação pública, ou mesmo
escândalo, na dancinha de TikTok em face da mãe moribunda é menos a irrupção do domínio íntimo e privado na esfera pública do que o real da morte que ficou muito aparente. A insistência do real em se deixar ver, em aparecer nas fissuras do simbólico, provocou a
reprovação do grande Outro. O grande Outro precisou intervir, com seus
significantes, para restituir o modo simbólico-imaginário como o sujeito tem de
experienciar o acontecimento da morte da mãe. Pois a dancinha expunha o que não
pode ser tolerado, porque é real demais: a insignificância radical da
existência e a banalidade da morte. A dancinha de TikTok continuaria a ser
feita depois do sepultamento da mãe, porque, afinal, o banal da vida resiste,
insiste e prossegue depois que a ‘seriedade’, a solenidade, o respeito, a deferência profunda à figura do morto e o assombro em face da inexorabilidade da morte são suspensos, são novamente afastados de nossa consciência imediata do mundo. Enterramos os mortos para que o horror
do real que representam não nos atormente e não perturbe o curso normal e banal
de nossas vidas. A vida precisa continuar significa precisamente isto: a morte
e os mortos precisam deixar de perturbar, de desestabilizar a ordem simbólica e
imaginária que nos permite levar adiante a vida. A dancinha do TikTok
antecipou aquilo que tem de ser, de qualquer modo, feito: o mortos precisam
deixar de nos perturbar, a morte deve manter-se afastada, por um longo tempo,
da rede simbólico-imaginária que torna possível a vida social, e a banalidade do viver deve prevalecer sobre a
insignificância radical da existência humana, que é demasiado real para ser
encarada.