Política
não se discute?
A política é uma atividade humana em
cujo cerne está o diálogo, a deliberação; portanto, a discussão, no sentido de
exposição conflitante, polêmica de pontos de vista, de julgamentos,
interpretações, avaliações sobre a melhor forma de organizar uma sociedade em
consonância com valores como igualdade e justiça. A política, ensina Hanna
Arendt, diz respeito à coexistência e à associação de seres humanos diferentes.
Como objeto de reflexão filosófica, a política descerra-se como um campo de
questões que norteiam a convivência dos homens e dos grupos humanos entre si, e
também as relações deles com o mundo. No entanto, o ditame que sentencia
“política não se discute” quer dizer uma coisa que, sendo estranha ao fenômeno
político, pretende levar à desmobilização dos atores sociais da participação
política: não se deve tomar a política como assunto do falatório do senso
comum, porque, nas esferas interacionais mediadas pelo senso comum, os
interlocutores mobilizam, na conversação, uma série de crenças simplistas ou
falsas, preconceitos, ideologias, lugares-comuns, representações coletivas de
mundo que se vão acumulando na intercalação animados com as paixões tristes e
ressentidas que levam a maus encontros e perturbam o contrato comunicativo
tacitamente estabelecido. A política não é objeto de exame crítico, de reflexão
sistemática, articulada e cuidadosa na definição e articulação dos conceitos
largamente usados no debate calcado sobre o senso comum. O senso comum não
consegue trabalhar os conceitos teóricos , não consegue pensá-los nem
articulá-los para compor um discurso coerente e teoricamente bem fundamentado.
O senso comum não se ocupa da problematicidade das questões que emergem de cada
turno de fala dos interactantes. A conversação do senso comum leva os
interlocutores a desconsiderarem os pressupostos de seus enunciados. Portanto, a
discussão sobre política, no âmbito do senso comum , se converte, com muita
facilidade, em bate-bocas que levam, quase sempre, a arrelias, a mútuas
incompreensões, reforçando nos participantes o sentimento de que toda aquela
disputa verbal foi em vão, porque nenhum deles modificou sua percepção da
realidade construída e reconstruída no discurso de cuja produção eles se
encarregavam. No senso comum, os interlocutores são muito mal
instrumentalizados teoricamente para pretender refletir sobre “a questão política”,
sobre os problemas complexos da realidade sócio-histórica em que vivem.
Conceitos como “neoliberalismo”, “capitalismo de mercado”, “mercado”,
“ideologia”, “Estado de direito”, “democracia”, “classe social” e outros tantos
que definem o domínio discursivo da política como problema científico e
filosófico a ser pensado com seriedade teórica são regularmente ignorados pelos
interactantes que se movem nas esferas do senso comum. Na insistência no velho
preconceito segundo o qual “o Brasil quebrou por causa da roubalheira do PT”, o
senso comum assume como verdade incontestável uma visão simplista e equivocada
acerca da realidade sociopolítica e econômica do Brasil, ao mesmo tempo que não
vê que a realidade é muito mais complexa do que sugerem suas opiniões grosseiras.
O senso comum ignora, por exemplo, que o governo Lula jamais rompeu com o
sistema de acumulação neoliberal, com que os antipetistas, mesmo sem o saber,
parecem simpatizar. O senso comum ignora a incompatibilidade entre o
neoliberalismo, cujo significado também desconhece, e a democracia, cujo
significado não compreende bem ou, o que dá no mesmo, compreende confusamente.
O senso comum também faz vistas grossas ao conservadorismo do Estado
brasileiro, que busca sempre assegurar os privilégios das elites econômicas, as
relações de dominação, bem como busca reproduzir o modo de exploração que
perpetua os padrões existentes de desigualdade de renda, riqueza e privilégio,
independentemente do desempenho econômico do país. O senso comum não consegue levar
em consideração as mudanças macroeconômicas na economia brasileira que,
realizando a transição do Brasil de uma economia de Industrialização por
separação de Importações para o neoliberalismo, tornaram a economia brasileira
uma economia de baixo crescimento desde que, no fim dos anos de 1980 e início
dos anos de 1990, o Brasil ingressou de vez no neoliberalismo, com uma
democracia frágil que convive com profundas desigualdades socioeconômicas. Por
fim, a discussão política, no senso comum, não leva em conta as mudanças
estruturais da economia brasileira, ocorridas na década de 1990. Com o novo
Sistema de Acumulação então vigente, o setor secundário da economia brasileira,
ou seja, o setor manufatureiro (industrial) declinou, e a capacidade produtiva
caiu significativamente, sobretudo nos ramos tecnologicamente mais sofisticados
da indústria. Se, por um lado, a economia perdeu a capacidade de gerar “bons
empregos”, o Estado foi-se demonstrando cada vez menos eficiente no
enfrentamento dos problemas do crescimento, na reestruturação produtiva e na
busca por coordenar políticas econômicas. As reformas neoliberais feitas no
Brasil foram incorporadas à Constituição por meio de regras fiscais que se
justificavam pela necessidade de estabilização da inflação e da “boa
governança”. Consequentemente, entre nós, o neoliberalismo ganhou legitimidade
e reforçou sua influência sobre o tecido institucional do país, minando as
aspirações democráticas previstas pela Constituição. Mas tudo isso é ignorado
pelo senso comum, que limita toda a discussão política ao comportamento ético
dos atores políticos, à polarização partidária, ao mesmo tempo que faz desfilar
toda sorte de preconceitos como o de classe (o senso comum da classe média
prefere culpabilizar os mais pobres pelo desastre econômico do país, já que
estes, como os índios aos olhos dos colonizadores , não apreciam a labuta
diária, preferindo mamar nas tetas do governo, que por sua vez pouco faz para
realizar o suposto desmame). Assim, o senso comum da classe média reflete o
modo de ser e de pensar das elites socioeconômicas brasileiras edificadas numa
tradição escravocrata e autoritária ainda persistente no modo de ser
brasileiro. É que o senso comum compreende o conjunto de esquemas
interpretativos úteis para orientar e dar significado e ordem à vida cotidiana.
Ele se forma em cada ser humano de modo inconsciente e natural no curso de sua
socialização primária e secundária, formando o pressuposto básico das ações
individuais. Por isso, a experiência pessoal circunscrita ao âmbito do senso
comum é um referencial muito limitado e empobrecido para nos assegurar um
profundo e elaborado conhecimento do mundo. Nossas experiências pessoais,
formadas pelos encontros com o mundo das coisas, nas diversas situações de
interação social, lidam com parcelas muito circunscritas da realidade
humanamente experienciável; nossas experiências pessoais, se permanentemente
divorciadas da experiência da leitura, não nos permitem uma compreensão
sistemática do todo, da totalidade dos problemas com que a existência humana
lida; nossa experiência pessoal ordinária parcializa o real, pois só podemos conhecer
aquilo que é imediatamente acessível em seu campo, aquilo que se torna para nós
familiar. Alargar nossas experiências pessoais com o mundo é o que nos
possibilita a leitura, o convívio com os livros. A leitura é também uma
experiência pessoal, que se vai enriquecendo, no entanto, à medida que o sujeito leitor
participa da construção e reconstrução sociointerativa de um modelo de mundo,
de uma versão da realidade que é produto de atividades
sociocognitivo-interacionais e dialógicas do produtor do texto. Assim
compreendida, a leitura é também uma atividade
sociointeracional, na medida em que o leitor é um sujeito social que, no
ato de ler, dialoga com um interlocutor-autor (ele mesmo também um sujeito
social), mediante um texto que oferece (que propõe) uma imagem do mundo que é social,
cognitiva, interacional e linguisticamente construída. A leitura nos patenteia
que o real é muito mais complexo do que o conhecimento que podemos ter dele. Há
muitos níveis de realidade que nos são inacessíveis em nossa experiência
pessoal e imediata com o mundo na cotidianidade. Por isso, a experiência
pessoal cotidiana de mundo não é um critério seguro para validar a
consistência, a razoabilidade, a veracidade do que pensamos, julgamos ou
acreditamos saber acerca das coisas. Nossos encontros imediatos com o mundo da
vida são “enxertados” e mediados pelas representações coletivas, as crenças, as
ideias, os preconceitos do senso comum.
O senso comum abriga juízos morais e
afetivos sobre as causas, as condições dos eventos humanos, naturais e
sobrenaturais. O senso comum compreende um conjunto de proposições cognitivas e
valorativas, fortemente restritivo e seletivo, porquanto seleciona e articula
um dado número de “fatos” dentre a massa ilimitada de eventos, de ocorrências
que constituem o mundo da vida. Assim, tudo no senso comum tem caráter de
obviedade, de objetividade, de irrevogabilidade e coercitividade irrecusável.
Para o senso comum, o mundo é um mar tranquilo de fatos autoevidentes. Nesse
sentido, discutir política, no âmbito do senso comum, que ousa entender mais do
que entende, é arriscar-se a envolver-se numa disputa na qual ninguém se
entende, todos arengam e da qual todos saem como entraram: munidos com o mesmo
background de crenças, suposições equivocadas, juízos afetivos e morais
cristalizados, preconceitos, valores inquestionáveis e pretensas verdades não
devidamente examinadas.
A FARSA DA MERITOCRACIA
O projeto político do capitalismo
financeiro neoliberal, há mais de 30 anos, é condenar ao silêncio o sofrimento
da maioria, ao mesmo tempo que dá visibilidade ao 1% dos negros e mulheres mais
talentosos e aptos na esfera pública como se representassem todo o sofrimento
social existente.
A mentira da meritocracia consiste em
afirmar que, embora o mundo seja um lugar inóspito e cruel, aquele que se
esforça e trabalha duro conseguirá ganhar 500 vezes mais que outros. Os que
ganham 500 vezes menos é porque são burros ou preguiçosos. Mas a meritocracia
mascara o fato de que são as classes sociais os principais meios que permitem
reproduzir os privilégios visíveis e invisíveis. A reprodução desses
privilégios ocorre, em primeiro lugar e fundamentalmente, pela SOCIALIZAÇÃO
FAMILIAR. Como só existe a família de classe, cada qual tem uma história e uma
forma de reprodução dos privilégios visíveis e invisíveis. O privilégio mais
visível é o econômico. Este é notável na classe da elite de proprietários, os
quais detêm todas as riquezas. Entre estes estão os donos de grandes fazendas,
dos meios de comunicação, das cadeias de comércio, os grandes especuladores e
rentistas. Abaixo desse 0,1% da população, situam-se as classes que lutam pelo
capital cultural, que não é visível como o dinheiro e a propriedade. O capital
cultural é formado pela incorporação do conhecimento útil e legítimo
socialmente. Será a classe média - que se define pela reprodução do privilégio
da educação - que criará e disseminará, de modo invisível e eficiente, a farsa
da meritocracia mediante a incorporação privilegiada do capital cultural. Numa
sociedade como a brasileira, disposições como disciplina, autocontrole, visão
de futuro, capacidade de concentração e de elaboração do pensamento abstrato não
são dons naturais, mas competências que são verdadeiros privilégios de classe.
O hábito da leitura, por exemplo, é criado pelos pais. A criança passa a
exercer a prática de leitura seguindo o exemplo dos pais. A disciplina do
equilíbrio entre brincar e aprender, que acostumará a criança a renunciar,
quando crescer, ao presente em benefício de um futuro, é aprendida na
socialização familiar. Tudo isso é, portanto, privilégio de classe,
nomeadamente da classe média brasileira, que produz a base social invisível que
todo mérito pessoal oculta. Nas classes dos oprimidos e socialmente excluídos
no Brasil, os valores reproduzidos são quase todos “negativos”. Toda a
socialização familiar se realiza por meio de exemplos práticos (e não por
discursos). São estes exemplos práticos que os filhos vão imitar e, mais tarde,
reproduzir como um legado de sua classe social. Uma mãe que diz a um filho que
ele deve ir à escola precária dos negros e pobres porque só assim ele terá
chances de sair da pobreza, dificilmente o convencerá porque, afinal, a própria
mãe frequentou uma escola semelhante que não a tornou mais do que uma
analfabeta funcional, como sucede com tantos outros membros dessa classe social
a que ela e seu filho pertencem. Enquanto os humilhados e desprivilegiados,
quase todos negros, se colocam como “fracassados” já no ponto de partida, os
membros da classe média entram na escola como bem-sucedidos já desde tenra
idade, porque foram nutridos, desde o berço, com os pré-requisitos emocionais,
morais e cognitivos para tanto. Essas condições de que se beneficiam desde
muito cedo na vida os farão indivíduos predispostos ao sucesso escolar e ao
acesso a postos de trabalho com remuneração muito maior anos mais tarde.
Lição básica de história econômica do
Brasil
Um recorte do Brasil
Nestes
pouco mais de 500 anos de história, persistem no Brasil alguns traços que o
definiram como sociedade histórica desde o período colonial. Um desses traços é
justamente a difícil e tortuosa construção da cidadania. Último país, no
Ocidente, a abolir a escravidão, o Brasil convive ainda hoje com inúmeros
processos de exclusão social. Somos campeões em desigualdade social. Nosso
bovarismo, isto é, nosso inextirpável desencanto com nossas condições
sócio-históricas reais, é tão característico do nosso modo de ser brasileiro
quanto o familismo, ou o costume arraigado em nossa cultura de transformar
questões públicas em questões privadas. A lógica e a linguagem da violência
tanto quanto a corrupção estão encravadas profundamente na mais remota história
da formação de nossa sociedade. No Brasil, os pobres e os negros ainda são
culpabilizados pela Justiça. São os que mais morrem cedo, os que têm menos
acesso à educação superior pública ou a cargos mais qualificados no mercado de
trabalho. E estas circunstâncias que nos ajudam a nos compreender como nação,
como sociedade histórica, são mantidas e reproduzidas por uma estrutura de
poder oligárquico caracterizada pela aliança entre os agentes estatais
(funcionários administrativos e do governo) e os potentados privados (os
detentores da riqueza privada). Estes dois grupos de poder buscam, antes de
tudo, realizar seus interesses próprios em detrimento do bem comum do povo.
ALIANÇAS POLÍTICAS
Não deveríamos nos surpreender com essa aproximação
de Lula à agenda neoliberal, representada na figura de Alckmin. Quando estava
na presidência, a despeito de seus 80% de aprovação, Lula foi um neopopulista
de mercado. Em 1 de dezembro de 2010, Lula declarou, na Carta Capital, “ foi
preciso um torneiro mecânico, metido a socialista, para fazer o país virar
capitalista”. O governo lulopetista caracterizou-se pelo desenvolvimento e
expansão do mercado de consumo interno e pelo pacto desenvolvimentista com o grande
Capital nacional. Só mesmo na narrativa fantástica da extrema direita e dos
apoiadores de Bolsonaro, seria possível associar Lula e o PT a algum projeto de
revolução comunista no Brasil. O governo petista historicamente foi
pró-mercado. Assim, vivenciamos três movimentos psicopolíticos no Brasil de
hoje, que configuram juntos uma única produção de força delirante: 1) recusa
dos elementos históricos complexos; 2) regressão imaginária radical a um modo
antigo de organizar a história; 3) ódio e pressão urgente por ação de
violência, sacrifício e restauração da civilização. Esses três movimentos
formam o sistema delirante da extrema direita. Esse sistema delirante,
paranoico e fetichista alimenta o nosso arraigado e antigo desprezo antipopular
e ódio pelos pobres. Esse sistema delirante, alimentando nossa tradição
anticrítica e anti-intelectual, enraizado em nossa formação moderna como
sociedade escravocrata, explica por que é possível que pessoas comuns insistam
em ignorar o fato de que o PT e o governo Lula ousaram dirigir o processo
histórico brasileiro para uma expansão de mercado e riqueza COM UM GRAU MÍNIMO
DE PARTILHA COM OS MUITOS POBRES.