terça-feira, 24 de setembro de 2019

"Existir seria uma empresa totalmente impraticável, se deixássemos de dar importância ao que não tem" (Cioran)


                      NIETZSCHE E O NIILISMO - ProEnem
                                                  

                  O niilismo como pensamento dessacralizador


Nesta exposição, interessa-me retomar o tema do niilismo, a fim de argumentar em favor da tese de que o niilismo constitui toda forma de pensamento e/ou questionamento filosófico que põe a descoberto, que desnuda o caráter ficcional do conjunto dos valores e instituições sociais. O niilismo, sendo a lógica de constituição da história ocidental, é um fenômeno decisivo – quiçá determinante - das dinâmicas sócio-históricas que permitiram o desenvolvimento, no interior da sociologia, de uma teoria construcionista crítica. Além de dilucidar, em linhas gerais, a tese central de uma teoria construcionista crítica, pretendo também esclarecer em que medida é lícito dizer que o niilismo instaura o horizonte epistêmico à luz do qual foi possível o desenvolvimento de uma compreensão da realidade social como resultado de uma construção humana.
Antes, porém, de levar a efeito as duas tarefas referidas, urge dizer que o niilismo não é um fenômeno histórico circunscrito ao século XIX. Embora seja sustentável argumentar que os séculos XX e XXI são os períodos históricos de radicalização do niilismo, embora devamos admitir que o niilismo é hoje a nossa condição normal, há traços, pegadas do niilismo em quase toda a história da filosofia ocidental e, certamente, em toda doutrina na qual o Nada aparece como problema central (Volpi, 1999). Os primeiros registros de um pensamento niilista parecem remontar ao movimento sofista. Tome-se, por exemplo, a contenda sofística que põe em confronto nómos e phýsis. Nómos é a convenção dependente de um acordo estabelecido por um grupo de indivíduos e que se torna lei para esse grupo. A phýsis é a natureza cuja ordem necessária independe da ação humana. O niilismo como categoria crítica social começa sua carreira com o questionamento sofístico. Os sofistas sustentaram a primazia do nómos sobre a phýsis. A moral é convenção. A igualdade e desigualdade entre os homens são produzidas pela vida social; elas não são naturais. Pitágoras (481- 411 a.C.), advogando que de todas as coisas “ o homem é a medida”, tomou o homem para critério da realidade. O homem é a medida de todas as coisas, das que são, que são, e das que não são, que não são significa que é a ação humana que faz as coisas existir tais como são; é pela ação humana que outras coisas não existem, porquanto os homens convencionaram , por meio de leis, criadas por eles, não as admitir. O pensamento de Protágoras se filia à invenção da história. É no convencionalismo sofístico, na defesa sofista do nómos que se podem encontrar as primícias do desenvolvimento do niilismo como categoria crítica social. Górgias, por seu turno, foi o primeiro niilista da história ocidental (Volpi, 1999). Pela primeira vez, com clareza, desfaz-se a identidade entre ser, pensar e dizer, expressa na palavra lógos. Com Górgias, estabelece-se a diferença, a separação e a autonomia entre realidade, pensamento e linguagem. Três são as declarações de Górgias cujas consequências levaram à ruptura daquela identidade: 1) o ser não é ou o Nada é; 2) o ser não pode ser pensado; 3) o ser não pode ser dito. Os limites desta exposição impedem-me de me alongar sobre essas três teses. Penso suficientes estas considerações acerca das origens históricas do niilismo.


1. A realidade como constructo social

Passo, pois, a partir de agora, a me debruçar sobre as duas seguintes questões, já anteriormente mencionadas e agora devidamente enunciadas: 1) o que defende uma teoria construcionista crítica?; 2) em que medida o niilismo abre o horizonte epistêmico à luz do qual tornou-se possível o desenvolvimento de reflexões, teorias que põem a descoberto o caráter de constructo social das instituições humanas? A fim de dar conta da primeira questão, começo por citar Harari, que, em seu Sapiens – uma breve história da humanidade (2018, p. 52-53), observa:


(...) grande parte de nossa história gira em torno desta questão: como convencer milhões de pessoas a acreditarem em histórias específicas sobre deuses nações, ou empresas de responsabilidade limitada?



Quando ouvimos, por exemplo, o Presidente da República, falar em “nosso sentimento patriótico”, devemos inferir daí duas conclusões: 1) há uma forte cumplicidade entre o discurso político e o senso comum; 2) o enunciador evoca a crença, comumente partilhada, na existência objetiva dessa entidade chamada “pátria”. A crença na existência objetiva de tipos de coisas que são, na verdade, constructos sociais, ficções culturais, criações da imaginação humana é indispensável não só à constituição da realidade social, mas também à sua permanência. Conservando e partilhando a crença no caráter objetivo dos constructos sociais, como se a realidade social existisse independentemente da atividade humana, muitas pessoas vivem e morrem em nome dessas ficções culturais, dessas construções sociais. À medida que o poder de influência dessas construções imaginárias se amplia, vai-se tornando cada vez mais claro que a própria sobrevivência de rios, leões e matas depende de nossa crença no poder dessas criações da imaginação que damos o nome de nações, deuses, corporações, Estado, capitalismo, dinheiro, etc.  Segundo Harari (ibid., p. 158-159), a ordem imaginada está incrustrada no mundo material. Embora seja criada por nossa imaginação, exista como ente da razão, essa ordem se objetiva, sendo até mesmo gravada na pedra. A ordem imaginada define nossos desejos, como bem assinala o autor:



(...) a maioria das pessoas não quer acreditar que a ordem que governa a sua vida imaginária, mas na verdade cada pessoa nasce em uma ordem imaginada preexistente, e seus desejos são moldados desde o nascimento pelos dominantes. Nossos desejos pessoais, portanto, se tornam as defesas mais importantes da ordem imaginada.



A ordem imaginada é intersubjetiva, ou seja, ela é uma criação de indivíduos social e historicamente situados e engajados em práticas sóciocognitivas-interacionais. Conforme assinala Harari (ibid., p. 164),


[ela] existe na rede de comunicação ligando a consciência subjetiva de muitos indivíduos. Se um único mudar suas crenças, ou mesmo morrer, será de pouca importância. (...) Fenômenos intersubjetivos existem de uma maneira diferente de fenômenos físicos como a radioatividade, mas seus impacto no mundo ainda pode ser gigante.



Uma ordem imaginada só pode ser mudada, se, primeiramente, as pessoas passarem a acreditar na possibilidade de criar uma ordem social alternativa. Um dos postulados da teoria construcionista crítica é sustentar que toda realidade social, por mais densa ontologicamente que seja, por mais sólida que seja, pode ser revogada, muito embora reconheça que o instituído, tendo se estabelecido, passa a existir concretamente, fazendo valer seus imperativos, de modo que “a realidade construída perdura, torna-se instituição, estrutura, moldagem, não sendo o caso de pensá-la como de fácil demolição” (Filho, 2017, p. 38). O que uma teoria construcionista crítica sustenta é, em suma, o seguinte:


A realidade social existente (incluindo as dimensões imaginárias, simbólicas e subjetivas) é uma construção que decorre das práticas dos indivíduos, grupos, classes sociais, instituições, etc. em sua contínua atuação nos vários espaços em que se distribuem nas diferentes sociedades e épocas. ( grifo meu, Filho, ibid., p. 31-32).



O construcionismo crítico mantém que nossas lutas e disputas fazem parte da constituição do tecido histórico, mas essa constituição da história não segue um plano racional. Em grande medida, as construções sociais e seus resultados são involuntários e imprevisíveis. O mundo social é permeado de instituições que não foram racionalmente concebidas ou conscientemente planejadas. Como bem disse Cioran (2011, p. 100), “ninguém quer aceitar que a história se desenvolveu sem nenhum motivo, independentemente de uma direção determinada, de um objetivo”.
Cuidando esclarecida a tese central da teoria construcionista crítica, lançarei olhares sobre a questão que consiste em determinar em que medida o niilismo constitui um horizonte histórico-epistêmico à luz do qual se tornou possível o desenvolvimento de uma teoria ou de um conjunto de reflexões sociológicas, filosóficas que põem a descoberto o caráter ficcional, artificial, imaginário da realidade social.




2. O niilismo como categoria crítica social


Consoante ensina Volpi (ibid., p. 8), “o niilismo constitui (...) uma situação de desnorteamento provocado pela falta de referências tradicionais, ou seja, dos valores e ideais que representavam uma resposta aos porquês, e como tais, iluminavam a caminhada humana”.
A modernidade do século XIX se caracterizou pela atuação de sujeitos sociais que questionavam explicitamente valores e instituições sociais vigentes até então de um modo tal considerado por eles revolucionário. O niilismo, a partir da década de 1860, antes mesmo de sua teorização por Nietzsche, era relativamente difundido pela Europa e referia-se a correntes socialistas revolucionárias atuantes na Rússia czarista. Os questionamentos levantados pelos segmentos sociais que se opunham a estes grupos socialistas eram muito próximos daqueles levantados posteriormente pelos filósofos: é desejável romper com instituições consideradas até então legítimas? Mais do que isso: é possível que o mundo social sobreviva sem elas, sem que tornemos a viver em um estado de barbárie? A essas questões que acenavam com o receio e a angústia em face de um futuro catastrófico, acresce-se a dúvida acerca da possibilidade de os novos valores e instituições que esses revolucionários pretendiam criar fornecerem um sentido sólido para o mundo. O niilismo, nesse contexto histórico, congrega uma série de propostas ativas, anseios, atitudes destinadas ao rompimento com os valores, as instituições e sentidos pré-existentes na sociedade. O niilismo na Rússia da segunda metade do século XIX desenvolveu-se no imaginário popular por força das ações de jovens estudantes socialistas, que atuavam nas grandes cidades do país, como São Petersburgo, Moscou e Novgorod. A intenção deles era organizar a população camponesa para o levante revolucionário contra o Estado czarista. As classes dirigentes da sociedade pressentiam nesses movimentos subversivos o risco do Nada, de que é prenhe todo niilismo: a ausência de toda ordem social.
A experiência da Rússia czarista atesta que, historicamente, o niilismo assenta na contestação e na necessidade de ruptura com os valores sociais tradicionais, considerados como esteios sólidos para a instituição de sentido para o mundo e a existência humana. É justamente nesse horizonte de compreensão do niilismo que proponho se deve vê-lo como um acontecimento histórico que determina o modo de ser do homem que se constituiu na confluência das culturas judaico-cristã e greco-romana. O niilismo instaura uma certa ambiência hermenêutica e epistêmica à luz da qual a realidade social ou o mundo humano, ordenado em instituições, relações e práticas simbólicas, costumes e atividades políticas e culturais pôde passar a ser questionada como uma construção resultante da atividade de agentes humanos situados historicamente. É na esteira do niilismo e graças ao seu poder de negação, de nadificação que se pode combater e recusar as concepções essencialistas com base nas quais se explica a existência do mundo e do homem pela alegação da existência prévia, originária de uma instância transcendente e eterna ou de entes sobrenaturais e criadores.
O niilismo se insurge contra o que Michel Meffesoli chama esquema substancialista que marcou o Ocidente, cujas figuras são a do Ser, Deus, Estado, Instituição, Indivíduo, Identidade, Bem, entre outras. O niilismo descerra as condições de possibilidade para o compromisso com a crítica radical do que Meffesoli chama “Fantasma do Uno”, ou seja, uma matriz ideológica, imaginária que, reduzindo toda a diversidade e complexidade do real (domínio das infinitas possibilidades, das virtualidades) ao imperativo do Uno, está na origem da fundação dos monoteísmos morais, políticos e dos autoritarismos que culminaram com os piores totalitarismos. O niilismo, a fim de assegurar seu poder bélico, contestatório de todas aquelas variantes do esquema substancialista, precisa trazer à luz a insignificância radical da condição humana, o abismo em que assenta a história, a abissal indiferença cósmica para com nossas rixas, rivalidades, lutas e disputas pelo poder de determinar o curso do desenvolvimento histórico que resiste a acomodar-se ao regime de um plano racional.
Penso ter descerrado, a esta altura, o que chamo de Lucidez niilista. O niilismo se apresenta, pois, como uma forma de pensamento dessacralizador, fundado na negação radical de todo ideal, de toda pretensão de segmentos societários, que gozam do privilégio do poder instituído, de reificar, de naturalizar, hipostasiar sentidos e valores que são historicamente produzidos, sedimentados e conservados. O niilismo é o modus operandis de toda crítica desconstrucionista ou genealógica que visa a “desenterrar”, a pôr sobre a terra as raízes das configurações, das conformações históricas cuja existência é justificada metaempiricamente ou metafisicamente. Como bem nota Filho (ibd., p. 52),


(...) é o ser humano o único animal que tem consciência antecipada de sua morte, e a ilusão produzida por ele próprio, de permanência (reprodução, duração e eternidade) da realidade dos mundos cósmico e social anda, em diversas culturas e até aqui, de par com a vontade de imortalidade, invulnerabilidade à morte. Fenômeno cuja generalidade não o torna menos constructo humano que todos os outros.



Embora não reste dúvida de que, historicamente, os seres humanos erigiram os grandes edifícios simbólicos que constituem a ordem social com vistas a tornar possível a sobrevivência da espécie num ambiente natural inóspito, é sempre bom lembrar que tais edificações garantem aos homens a proteção contra a angústia originária que, acompanhando Heidegger, dormindo no ser-aí, pode, no entanto, ser despertada revelando o Nada – não o nada como “ao lado” do ente em sua totalidade, mas o nada no ente como perda de mundo, como fuga do ente em sua totalidade. O modo de ser do impessoal tende a expulsar o nada: “quanto mais nos voltamos para o ente em nossas ocupações, tanto menos nós o deixamos enquanto tal, e tanto mais nos afastamos do nada. E tanto mais seguramente nos jogamos na pública superfície do ser-aí”. (Heidegger,  1983, p. 41).
O niilismo é o grande pensamento da Lucidez, da mais luminosa Aurora, que descerra o horizonte do Nada, como experiência da nulidade, da insignificância, do desamparo, da perda, do Vazio para afirmar o real como domínio de infinitas possibilidades e a vida, na esteira de Nietzsche, como complexo de múltiplas interpretações configuradoras, criadoras de novas formas de existência. Sendo os seres humanos animais simbólicos dotados de uma consciência antecipada da morte, o niilismo deve afirmar seu poder de dessacralização sob o regime hermenêutico do signo da Morte, à luz do qual cada indivíduo humano é lembrado de que “ganha a sua vida como uma dádiva, surge do nada, depois sofre a perda dessa dádiva através da morte, voltando ao nada”. É sob o regime hermenêutico do signo da Morte que o niilismo deve lembrar aos indivíduos, contra as suas manias de grandeza, contra seus empedernidos hábitos de rivalizar, disputar e até matar em nome de suas crenças ilusórias, justificadas metafisicamente, contra suas aparentemente inofensivas loucuras diárias que os fazem subservientes do falatório e de seus dispositivos de interpretação que visam a assegurar ser o mundo, o real tal como dele se fala – é, repito, sob o regime hermenêutico da Morte que o niilismo deve lembrar aos indivíduos “que seu lugar e duração (...) são partes finitas de um infinito, de um ilimitado” e que



 sua existência propriamente dita encontra-se apenas no presente, cujo escoar sem obstáculos no passado é uma transição contínua para a morte, um sucumbir sem interrupção (...) pois sua vida passada já terminou por inteiro, morreu e não mais existe. (Schopenhauer, 2015, p. 360).