quinta-feira, 15 de novembro de 2012

"Ler diverte o pensamento" (BAR)



                                         



                                  

                                 Ler é emersão

Deixei de brincar com brinquedos para me entreter com as palavras. Deixei de usar a imaginação nas brincadeiras que embalavam minha infância, para aplicá-la à leitura. Os meus brinquedos são os livros. Eles me entretêm, ensinando-me. Isso é o verdadeiro aprendizado lúdico. Se não estou lendo, estou escrevendo. O melhor presente que podem me dar é um livro. É claro que não qualquer livro.
Pode ser surpreendente para muitas pessoas, mas existe vida depois da leitura. Ler não me impede de me entreter fora de casa. Nenhuma leitura deveria ser feita por obrigação. É claro que, muita vez, lemos porque é preciso ler (por exemplo, para resolver uma prova). Mas, mesmo nesse caso, a leitura deveria ser encarada como uma atividade motivada por outros propósitos. É verdade que há leitura informativa, por exemplo, quando lemos uma bula de remédio (se é que alguém a lê mesmo) ou quando lemos jornais. Há leitura que serve para nos instruir a executar alguma tarefa, como a leitura de manuais para pôr a funcionar um aparelho eletrônico ou de uma receita para preparar um bolo.
Pensemos, agora, nos livros. Afora os casos em que temos de ler um livro, porque seu conteúdo será cobrado numa prova, eu lhe pergunto, leitor, por que você lê um livro. Talvez, porque se trate de um livro cujo conteúdo lhe agrada. As motivações para a leitura são muito variadas e subjetivas. Mas, como regra geral, lemos, porque queremos nos apropriar de conhecimentos universalmente produzidos. Lemos porque não é factível, para um indivíduo apenas, produzir toda sorte de conhecimentos. Em outras palavras, não sendo eu um paleontólogo, mas me interessando pelas produções nesta área, busco adquirir, num livro que abrigue contribuições em paleontologia, conhecimentos produzidos nesse campo do saber. Não preciso me formar em psicologia, para aprender sobre as teorias que iluminam as práticas dos psicólogos; basta que eu leia alguns livros sobre o assunto. É claro que, se não somos iniciados numa determinada área do saber, melhor será procurar ler livros de introdução, que forneçam, portanto, princípios elementares.
  Lemos para saber mais sobre a complexidade do mundo. Lemos para aprender mais sobre o mundo. Lemos também para aprender sobre quem somos (tanto como indivíduo quanto como espécie). Lemos para alargar nossa percepção de mundo. Lemos para que sejamos capazes de pensar com maior abrangência, complexidade e destreza. A leitura torna mais robusto, mais complexo, mais analítico o pensamento. Lemos para desenvolver habilidades argumentativas mais eficientes. É claro que argumentamos quando falamos. Não custa lembrar que o uso da linguagem é intrinsecamente argumentativo; no entanto, é com a leitura que podemos nos apropriar de  estratégias de argumentação mais complexas e sistemáticas . É com a leitura que temos mais oportunidades de experiência  direta e demorada com recursos argumentativos diversos.
Ler permite-nos disciplinar o pensamento. Não se poderia esquecer as consequências socio-culturais e políticas da leitura. Quem lê atua mais criticamente no mundo. Isso soa como um lugar-comum, mas verdadeiro. Devemos ler com atenção as palavras de Silva, em O Ato de Ler (2011), que nos ensina sobre o papel da leitura enquanto experiência de participação:


“A leitura, enquanto uma forma de participação, somente é possível de ser realizada entre os homens. Os signos impressos, registrando as diferentes experiências humanas apenas medeiam as relações que devem existir entre os homens – relações estas que dinamizam o mundo cultural. Sendo um tipo específico de comunicação, a leitura é uma forma de encontro entre o homem e a realidade sociocultural; o livro (ou qualquer outro tipo de material escrito) é sempre uma emersão do homem do processo histórico, é sempre a encarnação de uma intencionalidade e, por isso mesmo, “sempre reflete o humano” (...).”
(grifo meu)
(p. 47)


É nesse encontro com a realidade sociocultural, pela leitura, que o leitor pode, em face daquela, posicionar-se criticamente. É na leitura que o homem pode elevar sua consciência sobre os condicionamentos sócio-hístóricos que lhe deram forma, para contemplar a si mesmo (entenda-se “refletir sobre”). É isso que significa a ‘emersão do homem do processo histórico’. Se o homem, pela leitura, emerge, é porque, no seu dia-a-dia, desocupado da atividade de leitura e envolvido em suas atividades de rotina, vê-se apenas como produto do devir histórico; a emersão se dá com a tomada de consciência de sua situação nos movimentos históricos. O homem que lê reconhece-se dialeticamente vinculado à realidade histórica, porque, ao mesmo tempo, produto e agente das condições socio-culturais, historicamente determinadas. A leitura permite-lhe uma atuação esclarecida nessa realidade.
A leitura torna possível a desrotinização da consciência, cujos horizontes estão atrelados à cotidianidade. Ler é emersão; é uma forma de experiência pela qual nos desafogamos das vivências comuns do cotidiano, para alargar o pensamento sobre elas.
Que fique claro: a posse da cultura escrita não é só uma forma poderosa de marcar a distinção social, é o caminho mais próspero (e possivelmente único) para a compreensão e o questionamento das formas de legitimação do poder das classes dominantes. É, finalmente, uma etapa importante para a transformação das relações de dominação.

2 comentários:

  1. Uma emersão... Que, na verdade, vem de uma imersão... nas palavras, né?
    Muito interessante e acrescentador, como sempre, meu amigo.

    E me desculpe pela ausência por aqui. Sinto falta de tais leituras de q posso desfrutar. Mas acredito q nas férias, me atualizarei, por mais disponibilidade para a atenção exigida. ;-)

    Bjo

    ResponderExcluir
  2. Beijos, querida. É sempre um prazer ler suas palavras.

    ResponderExcluir