A presença das palavras
Quero convidá-lo a pensar no que se
segue.
Já se deu conta de que os espaços
sociais em que vivemos estão repletos de palavras? Já se deu conta de que para
onde quer que olhemos elas estão a mostrar-se? Estão aqui diante de mim,
estampadas num livro, impressas nesta imagem de papel virtual em que escrevo.
Mas as palavras, embora existam e estejam presentes aos nossos ouvidos, aos
nossos olhos (quando se revestem da roupagem gráfica), à nossa
consciência, não se confundem com
coisas. Palavras não são coisas. Primeira lição importante em semiótica. As
palavras são uma forma de signo linguístico.
Quando eu profiro ou escrevo ‘mundo’,
não é o mundo que se impõe a sua consciência. É a palavra ‘mundo’ com todo seu
investimento polissêmico (v. o mundo
da arte, o mundo da ciência, o mundo do crime, o mundo da prostituição, o mundo
dos antigos gregos, etc.). Cada uso feito da palavra ‘mundo’ produz um forma
diferente de representação de parcelas de nossa experiência de ‘mundo’.
Palavras não são rótulos que colocamos nas coisas, à semelhança de
etiquetas aplicadas em produtos comercializáveis. Palavras são materiais
linguísticos com que criamos conceitos, por meio dos quais organizamos nossas
experiências de mundo numa totalidade dotada de sentido.
Mais uma vez. Se digo ‘baleia’, não é o
animal, maior mamífero do mundo, que está diante de você. É um signo que está em lugar de. Agora, pense que o texto,
que se compõe de palavras, como sendo um supra-signo (ou seja, uma forma de
signo mais complexa e hierarquicamente mais alta), não pode espelhar a
realidade, não pode dizer o que é a realidade ou como é a realidade. Palavras
escondem mais do que revelam. Entre a palavra e o objeto que ela designa, há o
significado de que toma parte aquele que dela se serve (o sujeito do discurso).
Mas esse mesmo sujeito não é senhor do significado (ele apenas julga sê-lo,
porque atravessado pela ideologia). Pois bem. O que ele faz, ao produzir seu
texto, é construir uma versão de mundo com base em seu ponto de vista, suas
crenças, seus valores, que são constituídos sócio-histórica e ideologicamente.
Vozes portadoras de palavras o atravessam, não sendo, portanto, ele um sujeito
adâmico, origem do seu discurso. Ora, usamos a linguagem também para falar do
mundo. É o mundo falado que nos interessa, ou, para usar o jargão dos
linguistas, o mundo textualizado que nos interessa, quando pretendemos
interagir e compreender a realidade mediante a linguagem. Você que lê um texto,
por exemplo, de um articulista num jornal, não pode esperar que ele lhe dirá o
mundo tal como é, mas tão-só lhe exporá a perspectiva que ele tem sobre o
mundo.. A verdade é uma construção social; baseia-se num consenso. Usar a
língua é produzir significados. E usando a língua significamos a realidade de
modos variados, não segundo uma subjetividade livre, desimpedida e que goza do
poder de arbitrar sobre o sentido certo ou a
verdade, mas segundo uma subjetividade posicionada, situada em um contexto
sócio-histórico e ideológico.
O signo não é a coisa, ou a palavra não
se confunde com a coisa. O texto ou o discurso não espelha a realidade, não é
uma imagem exata da realidade tal como é. O que é a realidade ou as realidades?
Construções simbólicas, forjadas num
complexo que envolve a relação entre percepção-cognição, cultura e linguagem.
Toda realidade é um complexo entretecido de sentido. Dar sentido é dar ordem
ou, dito doutro modo, o sentido pressupõe uma ordem, assim o é com os
enunciados que produzimos. A ordem produz o sentido, ao mesmo tempo que o
sentido a pressupõe. Se digo “A quebrou a bola da janela vidraça”, produzo uma
sequência linguística desprovida de sentido. Falta-lhe uma estrutura, uma
forma, uma ordem. Portanto, falta-lhe o sentido. Essa disposição aleatória de palavras, num nível
cognitivo, não representa nenhuma parcela de nossa experiência. Mas se lhe dou
outro torneio, como “A bola quebrou a vidraça da janela”, então o que era caos
se torna ordem, e o sentido ganha vida em nossa consciência. Há algo mais
interessante aí. É certo que essa frase estrutura adequadamente nossa
experiência de mundo. O evento como um todo pode ser representado em nossa
consciência, reconstruído mentalmente na forma de um estado-de-coisas verificável
no mundo. Mas essa é apenas uma versão da representação desse estado do
mundo. Alguém poderia dizer “O garoto quebrou a vidraça da janela com a bola”,
ou ainda “Chutando a bola, o garoto quebrou a vidraça da janela”, ou “O garoto
arremessou a bola contra a vidraça da janela, quebrando ela”, etc.
Note que na primeira versão, omitiu-se
o agente, embora ele esteja cognitivamente pressuposto, já que sabemos que a
bola não pode ter quebrado a vidraça da janela, sem que um agente humano a
tenha lançado. A omissão faz toda diferença. E mais diferença haveria se a
frase produzida fosse “Quebraram a vidraça da janela com a bola”. Nesse “mundo”
representado nesta frase, ou nesse estado-de-coisas descrito nesta frase, falta
a lexicalização do agente. Não há uma palavra que o designe. A frase revela
muito sobre os modos como nos relacionamos com o mundo. Muitas vezes, não
podemos ou não queremos denunciar o perpetrador de um ato que lhe acarretará
alguma repreensão ou punição. A língua influencia nossas estruturas cognitivas.
Sabemos que o verbo ‘quebrar’ inclui em sua estruturação semântica (chamada
‘valência semântica’) um causador (v. A ventania quebrou a vidraça) ou agente (quando o sujeito é ocupado por uma
entidade humana). Faz parte de nosso conhecimento de mundo o fato de que em toda
experiência representada com o uso do verbo “quebrar” o causador ou agente está
implicado. Isso não nos impede de omiti-lo, já que, nossa língua, disponibiliza
um recurso adequado para tanto. É a realidade, portanto, que se reconstrói, e
não que se espelha quando produzimos nossos textos. São os signos que,
organizados segundo as regras previstas pela gramática da língua, a representam
em nossa consciência e não que a põem para nós como algo já dado,
pré-existente.
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