quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A linguagem é uma forma de constituição e elaboração da realidade


                    


                            A construção textual da realidade
                                                
                                                     A referenciação em foco


Sobre moluscos e homens

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a necessidade que faz o sapo pular”. E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo no momento (insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no momento”) da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em aprender. Explicaria sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a denúncia de Bruno Bettelheim contra a escola: “Fui forçado (!) a estudar o que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto. Somente os necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais ( inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência que se faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com o seu saber? Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos...


Conforme havia prometido, revisito o texto de Rubem Alves – Sobre moluscos e homens –, a fim de apresentar e desenvolver o tema da referenciação.

A referenciação

Usamos a linguagem também para falar do mundo. Mas, como venho insistindo, o mundo de que fala a linguagem não é o mundo tal como é, mas um mundo textualizado. Na verdade, a linguagem não espelha o mundo, mas o trabalha, o reconstrói. Quando, pelo fenômeno da designação, ‘pinçamos’ um ser (ou entidade) do mundo e o introduzimos em nosso discurso, o transformamos num referente, ou melhor, num objeto-de-discurso. Suponhamos que eu tenha um gato e que meu gato esteja dormindo em cima do sofá. Minha mãe pergunta pelo gato e eu respondo:

(1) O gato tá dormindo no sofá.

Note que o referente designado pelo substantivo ‘gato’ aparece na forma de um SN (sintagma nominal) definido (ou seja, antecedido de um artigo definido). O uso do artigo definido indica, em geral, que o referente é parte do saber compartilhado com meu interlocutor. Tanto eu quanto minha mãe sabemos de que gato se trata. Imaginemos que o discurso prosseguisse da seguinte forma:

(2) Acorda ele pra ele comer.

Note agora o uso do pronome ‘ele’ que retoma o referente ‘gato’. O ‘ele’ nos instrui a buscar a informação em outro lugar. Em (1), introduzimos um referente (gato) e em (2) o retomamos pelo uso da forma pronominal. Outras formas de recuperar o referente são possíveis. Vejamos algumas:

(2a) Acorda o bichano pra ele comer.
(2b) Acorda esse felino pra ele comer.
(2c) Acorda esse animal pra ele comer.
(2d) Acorda esse bicho preguiça pra ele comer.
(2e) Acorda esse dorminhoco pra ele comer.
(2f) Acorda esse floquinho de neve pra ele comer.

Todas as formas de referenciação de (2a) a (2e) servem à recategorização do referente ‘gato’, de acordo com a perspectiva do enunciador. Cada escolha revela uma atitude, um ponto de vista do enunciador em relação ao gato. Por exemplo, em (2f), o constituinte “floquinho de neve” expressa afetividade. Seu uso sinaliza que o enunciador nutre afeição pelo gato. Já em (2e), o enunciador designa o gato pelo seu hábito de dormir demais. Em todos os casos, o referente ‘gato’ é reconstruído segundo a perspectiva, crenças ou atitudes do enunciador.
Imaginemos agora que minha tia entre em cena e que o gato ainda esteja dormindo. Minha mãe insiste em pedir que acordem o gato. Suponhamos que minha mãe dirija-se a minha tia solicitando-lhe que acorde o gato. Minha mãe pode escolher entre as possibilidades listadas acima. Suponhamos que escolha (2e):

(2e) Acorda aquele dorminhoco pra ele comer.

Poderia suceder que minha tia não conseguisse recuperar o referente de ‘dorminhoco’, já que ele não nos instrui, se não estiver adequadamente integrado num contexto sociocognitivo (grosso modo, um conjunto de conhecimentos variados que os interlocutores supõem partilhar entre si), a recuperar o conteúdo ‘gato’. Para minha tia que acabara de chegar, dorminhoco poderia ser o sobrinho, o genro, etc. Ou seja, minha tia, porque acabara de chegar, não seria capaz de construir um modelo cognitivo da situação, no interior do qual pudesse ativar o referente ‘gato’ assim que ouvisse a palavra ‘dorminhoco’. Além disso, está claro que, para efeitos de produção e compreensão do discurso, importam não as coisas no mundo, mas os procedimentos pelos quais nos referimos a elas. Em outras palavras, quando produzimos nossos textos ou quando buscamos interpretar e compreender textos, importa o modo como o mundo é textualizado, como seus objetos e seres são introduzidos, mantidos e modificados no discurso, tornando-se objetos-de-discurso.
Assim em (2e) não basta saber o que significa ‘dorminhoco’, não basta saber que dorminhoco designa ou qualifica quem dorme muito. Importa identificar o objeto-de-discurso a que ele remete.
A referenciação é, portanto, uma atividade discursiva. Os objetos-de-discurso não se identificam com as coisas do mundo extralingüístico. A realidade extralingüística é (re)construída no próprio evento de interação.
A construção e reconstrução dos objetos-de-discurso envolvem saberes de ordem diversa, tais como:
a) o saber construído por ocasião da compreensão do próprio texto (trata-se de um saber textualmente construído, o qual envolve a produção de inferências com base num vasto conjunto de conhecimentos lexicais, enciclopédicos e culturais);
b) e saberes, opiniões e crenças que são ativados no momento mesmo em que autor-texto-leitor interagem.

Existem três estratégias de referenciação. Elas servem à construção dos referentes textuais (ou objetos-de-discurso):

a) introdução (construção): um ‘objeto’ é introduzido no texto, sem ter sido antes mencionado, e a expressão que o representa é colocada em ‘foco’ na memória textual do leitor.

b) Retomada (manutenção): um ‘objeto’ já introduzido no texto é reativado mediante uma forma referencial, de sorte que o objeto-de-discurso permanece em foco na memória do leitor.

c) Desfocalização: ocorre quando um novo objeto-de-discurso é introduzido no texto, passando a ocupar uma posição ‘focal’. O referente que ocupava antes uma posição de foco, conserva o status focal em potência (encontra-se, por assim dizer, num estado de stand by). Ele continua disponível para ser usado quando necessário.

Vejamos como essas estratégias foram usadas pelo autor de Sobre moluscos e homens. Segue-se um trecho inicial do texto:

Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suiça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, f seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há muito f teriam desaparecido se não f fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que f inventaram para não se f tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os protegem da fome dos predadores. f Ignoro detalhes da biografia de Piaget e f não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, f tive de imaginar. E foi imaginando que f pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. f Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco chamado “homem”. Se é que você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida.


O símbolo f indica a elipse do referente. Notemos que a expressão “os moluscos dos lagos da Suíça” designa um referente então introduzido e, logo em seguida, recuperado no sintagma genérico “os moluscos”. A operação anafórica recupera apenas o núcleo do sintagma que tem o estatuto de referente e a forma referencial (anafórica) é mais genérica, já que exclui o adjunto que delimitava o domínio de referência de "moluscos". De qualquer modo, após ter sido introduzido, o referente é mantido em foco na memória textual do leitor. A manutenção do referente no modelo textual é feita pela omissão do termo “moluscos”, que é recuperável na desinência dos verbos subsequentes (seriam, teriam, fossem...). Ocorre a desfocalização do referente “moluscos” na sétima linha, em que o autor introduz o enunciador, pelo recurso à elipse da forma ‘eu’. O referente ‘eu’ elíptico é mantido, ou seja, fica em foco da sétima até a décima linha, quando o referente ‘Piaget’, que fora introduzido no limiar do texto, é retomado. Mas o referente fica em foco por pouco tempo. Na linha treze, um novo referente passa a ocupar a posição de foco na memória do leitor - é o referente ‘homem’, que será mantido até o fim do parágrafo.
Como vemos, a referenciação é um dos mecanismos responsáveis pela construção da teia textual. Tudo no texto está conectado. A referenciação, também denominada de coesão referencial, quando examinada, revela as diversas conexões entre as unidades textuais. Quando, pela análise, buscamos reconstruir a atividade de produção textual feita pelo autor, percebemos que a estruturação do texto se realiza por sucessivas introduções e retomadas de referentes. Quando os referentes retomados servem de base para nova introdução de referentes, temos então uma progressão referencial. Saliente-se, pois, que o texto, embora não resulte do acréscimo de novas unidades a outras previamente colocadas, constitui uma totalidade de relações sequenciadas, mas não lineares, já que há outros movimentos referenciação no texto, que não seguem o modelo introdução-retomada imediata. Por exemplo, após introduzir o referente ‘Piaget’, o autor passou a introduzir novos referentes, e só muito posteriormente, o retomou.


Nenhum comentário:

Postar um comentário