O problema é que português tem muitas regras
“O problema é que o português tem muitas
regras”. Sempre achei esquisito o afirmar que o português tem muitas regras. Isso
não é óbvio? Todas as línguas do mundo têm
muitas regras. No entanto, quando nos detemos a pensar na forma desse
enunciado, nos apercebemos de que ele deixa entrever uma avaliação negativa do
enunciador sobre o fato, óbvio, de que a língua portuguesa tem regras e que são
muitas. Para o enunciador, ter muitas regras é um problema. E o fato de ele
achar que é um problema sinaliza algo sobre o modo como ele compreende o
conceito de regra.
Em
conversa recente com uma pessoa que se queixou do fato de o português ter
muitas regras, indaguei dela as razões por que pensa assim. Estava interessado
em saber em que sentido a grande quantidade de regras em sua língua materna
seria um problema para ela. É claro que eu já suspeitava da natureza do
problema, mas precisava ter certeza de que minha suspeita trilhava o caminho
correto. E, realmente, trilhava.
Ela,
como a grande maioria de pessoas que estudam ou estudaram português na escola,
tem em conta o conceito de regra relativamente aos domínios da ortografia
(incluindo aí o da acentuação gráfica), da crase, mas também da concordância
verbal e nominal. A primeira confusão diz respeito ao que é do domínio da língua
propriamente dita e ao que é do domínio do sistema gráfico da língua – confusão
esta que explica também a crença generalizada, por ocasião da recente reforma
ortográfica, de que o português agora mudou. Nesse caso, o que escapa ao
conhecimento das pessoas é que toda língua varia e muda, por um lado; e que a
mudança quanto ao modo de acentuar algumas palavras ou de grafá-las não
constitui uma mudança da língua. Houve, decerto, uma mudança no código oficial
que regulamenta a ortografia do português, código que passa por decreto do
Presidente da República; mas, insisto, o português sempre apresentou variação,
mudou e continuará mudando. Não se fala nem se escreve do mesmo modo hoje e no
início do século passado. O português do século XIX não é o mesmo português
falado/ escrito por brasileiros que vivem no século XXI.
As regras de ortografia, de acentuação gráfica
e de crase dizem respeito ao domínio da escrita. Já as regras de concordância
verbal e nominal e de regência verbal e nominal (mas não só estas,
evidentemente) dizem respeito à língua propriamente dita.
No que
diz respeito à ortografia, não temos, a rigor, uma grande quantidade de regras.
Na verdade, o modo correto de grafar as palavras é uma competência que
adquirimos muito mais pelo contato com a língua escrita do que pela memorização
de regras. Em outras palavras, aprende-se a grafar as palavras de acordo com a
ortografia oficial lendo.
Para não
ser descuidado, preciso notar que a crase é um fenômeno fonético, o qual
consiste na fusão de duas vogais idênticas. (a + a = a). Trata-se de um fenômeno
comum na passagem do português arcaico para a fase moderna. No entanto, hoje,
trata-se de um fenômeno morfofonêmico, já que envolve a fusão fônica de
unidades morfológicas (p. ex. a fusão da preposição “a” com o artigo feminino “a)).
Essa fusão é sinalizada na escrita pelo acento grave (`). Por isso o dizer se
tratar de um fato de escrita.
Considerarei,
agora, o conceito de ‘regra gramatical’. A palavra ‘regra’, em qualquer domínio
discursivo que a empreguemos, significa ‘norma’, ‘comando’, ‘princípio’. Regras
são princípios que regulam uma prática ou uma atividade. Regras regem,
governam. Quando pensamos em regras gramaticais, devemos, em primeiro lugar,
pensá-las como princípios que governam os usos das unidades da língua. Por
força da tradição escolar, habituamo-nos a considerar regras de gramática tão-somente
num sentido prescritivo restritivo, ou seja, como normas que regem o uso da variedade de prestígio da língua. Nesse
sentido, quando o professor, em sala de aula, ensina o estudante a usar ‘implicar’
(no sentido de ‘trazer como consequência’), insiste na necessidade de ele
seguir a regra contemplada na norma culta, qual seja, a que nos recomenda o uso
do verbo sem a preposição “em” (cf. Esta atitude implicará a sua demissão).
Não me vou ocupar com a problemática em torno da aceitação dessa regência entre
os falantes cultos. Isso é um fato, infelizmente, ignorado na escola. O que me
interessa aqui é fazer ver que, nesse caso, estamos diante de uma regra
prescritiva restritiva, porque determina como se deve usar a língua de acordo
com uma norma de prestígio. E é sempre bom lembrar que cada variedade linguística
tem sua norma. Antes de prosseguir, quero que o leitor atente para as frases
abaixo:
(1) Eu gosto de sorvete de morango.
(2) O relógio pertence ao meu pai.
(3) Aquele relógio é do meu pai.
Todas
as três frases são gramaticalmente aceitáveis, isto é, são bem formadas. E são
bem formadas, porque construídas segundo as regras da gramática do português. Em
(1), por exemplo, seguimos a regra que nos diz que se o sujeito for de primeira
pessoa do singular, o verbo deve assumir a forma de primeira pessoa do singular
(Eu gosto, eu compro, eu bebo, eu parto).
Nenhum falante nativo de português infringiria esta regra, dizendo algo como “*Eu
gosta de sorvete de chocolate”. Em (2), seguimos a regra que nos diz que
devemos antepor o artigo ao substantivo, de modo que uma sequência como “relógio o pertence...” nunca
ocorrerá entre os falantes nativos de português. Em (3), seguimos uma regra que
nos diz que devemos usar “aquele” para referir-se a objetos (pessoas) que se
situam longe do espaço de interação (distante tanto do locutor quanto do
interlocutor). Também seguimos a regra, segundo a qual, se usamos artigo, não
podemos usar um demonstrativo, caso em que (4) seria agramatical:
(4) * O
aquele relógio pertence ao meu pai.
Todas
as regras aqui explicitadas compõem o conjunto de regras que todo falante
nativo de português tem armazenado em sua mente/cérebro. Esse conjunto
constitui a sua competência linguística. Essas regras governam o modo como os
usuários da língua constroem as unidades da língua. Não há fixidez total na
atualização das regras. Regras há que são mais flexíveis. Na verdade, as regras
podem ser distribuídas nas seguintes classes (Rodrigues, 2002. apud. Antunes, p. 72):
a) regras
preferenciais, que são as mais escolhidas entre várias aceitáveis;
b) as
regras típicas, que são mais frequentes entre várias aceitáveis;
c) as
regras alternativas, que são escolhidas com o mesmo grau de frequência e
aceitabilidade;
d) as
regras restritas, que são aceitáveis apenas por uma parte de usuários da língua.
Uma
regra que nos instrui a empregar o verbo “gostar” acompanhado da preposição “de”,
para relacioná-lo ao seu complemento, é uma regra que poderíamos chamar de
fixa, já que não temos outra opção. Nenhum falante nativo, que já atravessou o
período de aquisição de sua língua materna, produz algo como “*Ele gosta
chocolate”. Mas esse mesmo falante poderá optar entre dizer “meu livro
chegou” ou “o meu livro chegou”. Em português, é facultativo o
uso do artigo com o pronome possessivo. Esse caso ilustra a situação c).
Dificuldades
pode haver quando não dominamos as regras envolvidas em usos de uma variedade
da língua que não é a variedade em que, normalmente, nos expressamos. Mas isso
nada tem que ver com o fato de a língua portuguesa ter muitas regras. Convém
ler, com atenção, este trecho da linguista Irandé Antunes, que tão bem nos
ensina, em seu Muito além da gramática
(2007):
“Todos os usos da língua são
submetidos à aplicação de regras. A própria natureza das línguas, que
faz delas meios da inter-relação social e marca de identidade cultural dos
grupos, leva a esse cuidado, para que a língua mantenha seus padrões e não
perca a cara que tem”.
(p. 72)
(grifo no original)
É
sempre bom lembrar que, quando pensamos em regras como ‘princípios que governam
a constituição das unidades linguísticas’, devemos pensá-las relativamente aos
domínios fonológico, morfossintático e semântico. Por exemplo, no nível fonológico,
há uma regra, também internalizada por todo falante nativo de português,
segundo a qual toda sílaba é constituída de pelo menos uma vogal. Em outras
palavras, não há sílaba em português sem vogal (cf. es-ca-da; ap-to, af-ta, gno-se, etc.)
Novamente,
as palavras de Antunes lançam luzes sobre a relação entre a língua e seus usuários,
estudantes ou não:
“As línguas têm, em seu comando,
pessoas, seres atuantes, sujeitos ativos, capazes de administrar, entre possíveis
opções, aquela que mais se ajusta à situação. É preciso, sempre que oportuno,
mostrar ao aluno contextos em que ele pode escolher entre uma forma ou outra,
entre uma organização ou outra do período, do parágrafo ou do texto. É preciso
explorar o lado de flexibilidade dos padrões linguísticos, até mesmo porque o que não é flexível já está
internamente sabido e arraigado (ninguém coloca, por exemplo, o artigo depois
do substantivo ou o artigo feminino antes de uma palavra sabidamente masculina”.
(p. 77)
(grifo meu)
É
importante levar em conta o que está em negrito. Como nos ensina a autora, há
um vasto conjunto de regras que constitui o que poderíamos chamar de ‘núcleo duro’ da gramática, que internalizamos.
Em outras palavras, o âmbito das regras fixas, que não dão margem a opções, já
são conhecidas, já estão arraigadas em nossa mente como parte de nosso
conhecimento intuitivo de nossa língua materna. Ninguém, que seja falante de
português, produziria a sequência “menino estudiosa” tanto quanto a frase
(5) *Ele
está de Portugal.
O
falante nativo de português sabe que, nesse caso, deve usar “é”, e não “está”. Não
sucede o mesmo com o falante estrangeiro aprendiz de português, que produz,
normalmente, (5). Comparativamente, o brasileiro, aprendiz de inglês, poderá
produzir (e produz, nos níveis iniciais de aprendizagem do inglês, por interferência
de sua língua materna) algo como (6):
(6) * I have nineteen years old.
O
falante nativo de inglês não terá dúvida em usar o verbo to be, nesse caso.
o problema, amigo, é que o povo não lê!
ResponderExcluirporque regras não precisam ser decoradas nas páginas de gramática. conheço tanta gente q não cursou Letras, no entanto, usa a Língua com brilhantismo - ouso dizer.
afinal, nossa memória é muito mais eidética do que qlqr outra coisa. tudo questão de preguiça intelectual desse povo mergulhado em ignorância! u_u
[revolta mode on rs]
beijos, querido