sábado, 3 de novembro de 2012

"O homem inautêntico é o homem cuja consciência está anestesiada" (BAR)




                         Kierkegaard e o filistenismo

Soren Kierkegaard (1813-1855), considerado o fundador do existencialismo, foi tão influente no pensamento moderno quanto Nietzsche. Fora filósofo e teólogo; apaixonadamente cristão, mas averso à religião organizada e a qualquer forma de doutrina que embota a consciência. Sua filosofia, banhando-se na caldeira humanista-racional à época, opunha-se ao pensamento de Hegel. Kierkegaard rejeitava as abstrações e os conceitos do filósofo idealista alemão, por ter eles mais valor, no interior de sua filosofia, do que o próprio real.
A condição humana e a angústia estavam no centro de suas preocupações filosóficas, o que parece justificar o fato de Ernest Becker, em seu livro A negação da morte (2012), ter-lhe conferido o título de psicanalista. Nas palavras deste autor,

“A estrutura de compreensão que Kierkegaard tem do homem é quase que exatamente uma recapitulação do moderno retrato clínico do homem que esboçamos nos quatro primeiros capítulos deste livro.”
(p. 94)
(ênfase no original)


As contribuições de Kierkegaard ao estudo da psicologia humana foram tão importantes, que Becker não hesitou em equiparar o trabalho do filósofo dinamarquês ao de Freud.
Kierkegaard propunha a inseparabilidade entre religião e psicanálise no que toca ao tratamento da condição humana. Esses dois domínios discursivos, segundo ele, têm muito a ensinar sobre nossa ambiguidade.
Veremos de que natureza é essa ambiguidade; antes, porém, convém reter que Kierkegaard concebia o homem como resultado da união entre uma autoconsciência e um corpo físico. Tendo evoluído na base de uma ação instintivo-reflexa, à semelhança dos outros animais, o ser humano passou a refletir sobre sua própria condição. O homem se liberta das limitações da natureza e desenvolve uma autoconsciência. Ele não só toma consciência de sua individualidade, mas passa a creditar que participa da dimensão do divino pela criação.
O desenvolvimento da autoconsciência no homem se acompanhou da formação da consciência do terror do mundo e de sua  própria morte. Eis aqui a ambiguidade constitutiva do homem: um ser consciente da realidade do mundo e consciente da inevitabilidade de sua morte. De acordo com Becker,

“A queda na autoconsciência, a saída da confortável ignorância na natureza, acarretou uma grande penalidade para o homem: pavor ou angústia”.

(p. 95)

A angústia, que para Kierkegaard decorria da consciência da morte, é consequência dessa ambiguidade, ou seja, do fato de o homem ser consciente do terror do mundo e de sua própria morte, mas também do fato de não poder exercer domínio sobre essa ambiguidade.
Kierkegaard antecipou a compreensão do caráter como couraça de que se vale o homem contra a visão da verdadeira realidade do mundo. O filósofo dinamarquês, no entanto, usou o termo “confinamento”, com o qual “se referia ao fato de que a maioria dos homens vive um estado (...) no qual bloqueia suas percepções da realidade” (p. 97). Atualmente, utiliza-se, em psicanálise e em psicologia, o termo repressão. A repressão é a causa da fragmentação interior da pessoa. Ela produz uma descontinuidade de sua personalidade.

“(...) a verdadeira percepção da realidade se encontra sob a superfície, bem à mão, pronta para irromper, deixando a personalidade aparentemente intacta e funcionando como um todo, em continuidade – mas essa continuidade é quebrada e assim a personalidade se encontra realmente à mercê da descontinuidade expressa pela repressão”

(p. 99)

Como se forma, pois, a mentira do caráter? Essa mentira forma-se na infância, quando a criança precisa adequar-se ao mundo, aos pais e lidar com seus próprios conflitos existenciais. Consoante nos ensina Becker,

“Ela se forma antes que a criança tenha a oportunidade de aprender sobre si mesma de uma maneira aberta e livre, e, por essa razão, as defesas do caráter são automáticas e inconscientes.”

(ib.id.)

Sucede, contudo, que a criança se torna dependente dessas defesas e também incapaz de reconhecê-las. A ignorância sobre elas leva-a a ficar mais encerrada em sua couraça (caráter), impedindo-a de transcender a condição de prisioneira.
A tentativa de rejeição da mentira do caráter produz o tipo de homem denominado de “homem inautêntico” (para Kierkegaard, o “filisteu” ou homem imediato). O homem inautêntico não consegue desenvolver sua singularidade. Ele apresenta as seguintes características:

a) Segue modelos de vida irrefletidamente;
b) Não questiona tais modelos a que foi condicionado desde a infância;
c) Não desenvolve autonomia e originalidade;
d) Não constrói uma visão de mundo independente de ideologias que se cristalizaram em sua consciência por ocasião dos processos formativos a que foi submetido;
e) É sensivelmente condicionado por sua cultura, chegando a tornar-se uma espécie de escravo dela (embora a ideia de escravidão aqui seja discutível).

Kierkegaard chamava “filistenismo” ao estilo de vida trivial do homem inautêntico, por ele considerado um filisteu (filisteus formavam um povo da Antiguidade que chegaram a dominar Israel; mas, em Kierkegaard, o significado parece ser o de ‘pessoa vulgar de mentalidade estreita’). Filisteu, na visão do filósofo dinamarquês, é o homem que se satisfaz tão somente com as ofertas de entretenimento de sua sociedade. É o homem imerso e idiotamente feliz em suas rotinas diárias. É o homem que ergue uma cerca ao seu redor e contenta-se em atuar e em perceber a realidade nos limites estreitos fixados pela cerca. Becker levanta a questão sobre o porquê de o homem preferir uma vida trivial, à qual responde como se segue:

“Devido ao perigo que um amplo horizonte de experiências representa, é claro. Esta é a mais profunda motivação do filistinismo, o fato de ele celebrar o triunfo sobre a possibilidade e a liberdade. O filistinismo conhece o seu verdadeiro inimigo: a liberdade é perigosa. Se você a segue com excesso de disposição, ela ameaça arrastá-lo para o ar; se abre mão dela em demasia, você se torna um prisioneiro da necessidade”.

(p. 101)


Não é difícil encontrar esse tipo de homem em nossas sociedades. Por quantas vezes não nos deparamos com pessoas incapazes de pensar por si próprias? Além de ocupar empresas e os domínios da burocracia no Ocidente e no Oriente, o filisteu ou homem inautêntico também habita as tribos limitadas a sua tradição. Estando os homens inautênticos quase totalmente condicionados por sua cultura, não é difícil determinar quais as principais instituições responsáveis pela formação deles (a família, a escola, a mídia (especialmente a televisão), a religião, etc.). Becker observa que eles são “unidimensionais totalmente imersos nos jogos imaginários de sua sociedade, incapazes de transcenderem seu condicionamento social” (p. 100).
Mas é Kierkegaard quem nos oferece a melhor descrição da cotidianidade e estilo de vida desse tipo de homem, completamente fechado em seu caráter:

“homem imediato (...) o seu eu ou ele próprio é algo incluído juntamente com “o outro” no âmbito temporal e do mundano. (...) Assim, o eu combina imediatamente com “o outro”, querendo, desejando, desfrutando etc., mas de forma passiva; (...) ele consegue imitar os outros homens, observando como eles conseguem viver, e assim ele também vive, de certa forma. Na cristandade, ele também é cristão, vai à igreja todo domingo, ouve e compreende o vigário; é, eles se entendem; ele morre; o vigário o conduz à eternidade pelo preço de dez dólares – mas um eu ele não foi, e um eu não se tornou. (...) Porque o homem imediato não reconhece o seu eu, só se reconhece pelos seus trajes, (...) reconhece que tem um eu só pelas aparências”.

(p. 100. Kierkegaard. In. Becker)


É provável que Sartre visse na situação do homem imediato ou homem inautêntico a expressão da má-fé, conceito com que definia a situação do homem que busca defender-se contra a angústia e o desespero, evitando assumir sua condição de ser livre. Platão talvez também visse a situação do homem inautêntico à luz da sua teoria do conhecimento, ilustrada na sua alegoria da caverna. Para Platão, os homens inautênticos não seriam senão os prisioneiros da caverna, para quem a realidade se identificava às sombras projetadas na parede. A mentira do caráter compreende esse conjunto de sombras que lhes impedem de atingir a compreensão da verdade sobre a realidade e da verdade sobre sua própria condição humana.

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