Kierkegaard e o filistenismo
Soren Kierkegaard (1813-1855), considerado o fundador do
existencialismo, foi tão influente no pensamento moderno quanto Nietzsche. Fora
filósofo e teólogo; apaixonadamente cristão, mas averso à religião organizada e
a qualquer forma de doutrina que embota a consciência. Sua filosofia,
banhando-se na caldeira humanista-racional à época, opunha-se ao pensamento de
Hegel. Kierkegaard rejeitava as abstrações e os conceitos do filósofo idealista
alemão, por ter eles mais valor, no interior de sua filosofia, do que o próprio
real.
A
condição humana e a angústia estavam no centro de suas preocupações
filosóficas, o que parece justificar o fato de Ernest Becker, em seu livro A negação da morte (2012), ter-lhe
conferido o título de psicanalista. Nas palavras deste autor,
“A estrutura de compreensão que
Kierkegaard tem do homem é quase que
exatamente uma recapitulação do moderno retrato clínico do homem que esboçamos
nos quatro primeiros capítulos deste livro.”
(p. 94)
(ênfase no original)
As
contribuições de Kierkegaard ao estudo da psicologia humana foram tão
importantes, que Becker não hesitou em equiparar o trabalho do filósofo
dinamarquês ao de Freud.
Kierkegaard
propunha a inseparabilidade entre religião e psicanálise no que toca ao
tratamento da condição humana. Esses dois domínios discursivos, segundo ele,
têm muito a ensinar sobre nossa ambiguidade.
Veremos
de que natureza é essa ambiguidade; antes, porém, convém reter que Kierkegaard
concebia o homem como resultado da união entre uma autoconsciência e um corpo
físico. Tendo evoluído na base de uma ação instintivo-reflexa, à semelhança dos
outros animais, o ser humano passou a refletir sobre sua própria condição. O
homem se liberta das limitações da natureza e desenvolve uma autoconsciência.
Ele não só toma consciência de sua individualidade, mas passa a creditar que
participa da dimensão do divino pela criação.
O
desenvolvimento da autoconsciência no homem se acompanhou da formação da
consciência do terror do mundo e de sua própria morte. Eis aqui a ambiguidade
constitutiva do homem: um ser consciente da realidade do mundo e consciente da
inevitabilidade de sua morte. De acordo com Becker,
“A queda na autoconsciência, a saída
da confortável ignorância na natureza, acarretou uma grande penalidade para o
homem: pavor ou angústia”.
(p. 95)
A
angústia, que para Kierkegaard decorria da consciência da morte, é consequência
dessa ambiguidade, ou seja, do fato de o homem ser consciente do terror do
mundo e de sua própria morte, mas também do fato de não poder exercer domínio
sobre essa ambiguidade.
Kierkegaard
antecipou a compreensão do caráter como couraça de que se vale o homem contra a
visão da verdadeira realidade do mundo. O filósofo dinamarquês, no entanto,
usou o termo “confinamento”, com o qual “se referia ao fato de que a maioria
dos homens vive um estado (...) no qual bloqueia suas percepções da realidade”
(p. 97). Atualmente, utiliza-se, em psicanálise e em psicologia, o termo
repressão. A repressão é a causa da fragmentação interior da pessoa. Ela produz
uma descontinuidade de sua personalidade.
“(...) a verdadeira percepção da
realidade se encontra sob a superfície, bem à mão, pronta para irromper,
deixando a personalidade aparentemente intacta e funcionando como um todo, em
continuidade – mas essa continuidade é quebrada e assim a personalidade se
encontra realmente à mercê da descontinuidade expressa pela repressão”
(p. 99)
Como se
forma, pois, a mentira do caráter? Essa mentira forma-se na infância, quando a
criança precisa adequar-se ao mundo, aos pais e lidar com seus próprios
conflitos existenciais. Consoante nos ensina Becker,
“Ela se forma antes que a criança
tenha a oportunidade de aprender sobre si mesma de uma maneira aberta e livre,
e, por essa razão, as defesas do caráter são automáticas e inconscientes.”
(ib.id.)
Sucede,
contudo, que a criança se torna dependente dessas defesas e também incapaz de
reconhecê-las. A ignorância sobre elas leva-a a ficar mais encerrada em sua
couraça (caráter), impedindo-a de transcender a condição de prisioneira.
A
tentativa de rejeição da mentira do caráter produz o tipo de homem denominado
de “homem inautêntico” (para Kierkegaard, o “filisteu” ou homem imediato). O
homem inautêntico não consegue desenvolver sua singularidade. Ele apresenta as
seguintes características:
a) Segue
modelos de vida irrefletidamente;
b) Não
questiona tais modelos a que foi condicionado desde a infância;
c) Não
desenvolve autonomia e originalidade;
d) Não
constrói uma visão de mundo independente de ideologias que se cristalizaram em
sua consciência por ocasião dos processos formativos a que foi submetido;
e) É
sensivelmente condicionado por sua cultura, chegando a tornar-se uma espécie de
escravo dela (embora a ideia de escravidão aqui seja discutível).
Kierkegaard
chamava “filistenismo” ao estilo de vida trivial do homem inautêntico, por ele
considerado um filisteu (filisteus formavam um povo da Antiguidade que chegaram
a dominar Israel; mas, em Kierkegaard, o significado parece ser o de ‘pessoa
vulgar de mentalidade estreita’). Filisteu, na visão do filósofo dinamarquês, é
o homem que se satisfaz tão somente com as ofertas de entretenimento de sua
sociedade. É o homem imerso e idiotamente feliz em suas rotinas diárias. É o
homem que ergue uma cerca ao seu redor e contenta-se em atuar e em perceber a
realidade nos limites estreitos fixados pela cerca. Becker levanta a questão
sobre o porquê de o homem preferir uma vida trivial, à qual responde como se
segue:
“Devido ao perigo que um amplo
horizonte de experiências representa, é claro. Esta é a mais profunda motivação
do filistinismo, o fato de ele celebrar o triunfo sobre a possibilidade e a
liberdade. O filistinismo conhece o seu verdadeiro inimigo: a liberdade é
perigosa. Se você a segue com excesso de disposição, ela ameaça arrastá-lo para
o ar; se abre mão dela em demasia, você se torna um prisioneiro da necessidade”.
(p. 101)
Não é
difícil encontrar esse tipo de homem em nossas sociedades. Por quantas vezes não
nos deparamos com pessoas incapazes de pensar por si próprias? Além de ocupar
empresas e os domínios da burocracia no Ocidente e no Oriente, o filisteu ou
homem inautêntico também habita as tribos limitadas a sua tradição. Estando os
homens inautênticos quase totalmente condicionados por sua cultura, não é difícil
determinar quais as principais instituições responsáveis pela formação deles (a
família, a escola, a mídia (especialmente a televisão), a religião, etc.). Becker
observa que eles são “unidimensionais totalmente imersos nos jogos imaginários
de sua sociedade, incapazes de transcenderem seu condicionamento social” (p. 100).
Mas é
Kierkegaard quem nos oferece a melhor descrição da cotidianidade e estilo de
vida desse tipo de homem, completamente fechado em seu caráter:
“homem imediato (...) o seu eu ou ele próprio é algo incluído juntamente
com “o outro” no âmbito temporal e do mundano. (...) Assim, o eu combina
imediatamente com “o outro”, querendo, desejando, desfrutando etc., mas de
forma passiva; (...) ele consegue imitar os outros homens, observando como eles
conseguem viver, e assim ele também vive, de certa forma. Na cristandade, ele
também é cristão, vai à igreja todo domingo, ouve e compreende o vigário; é,
eles se entendem; ele morre; o vigário o conduz à eternidade pelo preço de dez
dólares – mas um eu ele não foi, e um eu não se tornou. (...) Porque o homem
imediato não reconhece o seu eu, só se reconhece pelos seus trajes, (...) reconhece
que tem um eu só pelas aparências”.
(p. 100. Kierkegaard. In. Becker)
É provável
que Sartre visse na situação do homem imediato ou homem inautêntico a expressão
da má-fé, conceito com que definia a situação do homem que busca defender-se
contra a angústia e o desespero, evitando assumir sua condição de ser livre. Platão
talvez também visse a situação do homem inautêntico à luz da sua teoria do
conhecimento, ilustrada na sua alegoria da caverna. Para Platão, os homens
inautênticos não seriam senão os prisioneiros da caverna, para quem a realidade
se identificava às sombras projetadas na parede. A mentira do caráter
compreende esse conjunto de sombras que lhes impedem de atingir a compreensão
da verdade sobre a realidade e da verdade sobre sua própria condição humana.
Nenhum comentário:
Postar um comentário