
O desafio gnóstico nos primórdios do cristianismo
Tenho
de concordar com o filósofo Luiz Felipe Pondé, que não é ateu, mas também não
demonstra ser religioso em algum sentido forte, ao objetar aos que supõem que
as pessoas que acreditam em Deus são ignorantes. A experiência é suficiente
para lançar por terra a validade dessa crença. Também não é verdade que ateus
seriam, em algum sentido, mais “inteligentes”, crença também repudiada por
Pondé, em cuja posição estou de acordo. Também, nesse tocante, a experiência é
suficiente para dispensar demonstrações em favor da invalidade dessa crença.
Para ele tanto quanto para mim, isso é uma bobagem, infelizmente, muitas vezes,
largamente reproduzida.
Tendo
estabelecido minha posição sobre a correlação entre ignorância e teísmo, de um
lado; e esclarecimento e ateísmo, de outro, reelaboro-a de outro modo. Desde já,
fique claro que me situo na tradição dos três grandes monoteísmos (judaísmo,
cristianismo, islamismo), embora me concentre na tradição judaico-cristã. A
imersão nas vivências religiosas, a adesão às práticas doutrinárias, à
receptividade à ideologia teológica por meio da oratória de padres ou pastores,
durante cultos ou missas, moldam a consciência de uma coletividade, de modo a desenvolver
atitudes, ideias e hábitos que acabam por inibir cada um de seus membros de
buscar instruir-se sobre as bases históricas de sua fé. O poder da doutrinação
é de tal modo tão penetrante, que as pessoas mais suscetíveis a ele preferem,
talvez por receio de deparar-se com a fragilidade das fundações de sua fé,
manter-se distante dos discursos polêmicos. Polemizar a doutrina é chocar-se
contra a própria doutrina. Por definição, uma doutrina não admite polêmica.
No
tempo em que ainda frequentava a igreja e em que conservava minha crença na
existência de Deus, me contentava com o sentimento de abstração de Deus de toda
retórica da comunidade eclesiástica que falava por detrás da voz do padre, para
cultuá-lo na intimidade de minha imaginação (tratava-se de uma fé intimista).
Conquanto tivesse crescido numa tradição católica e tivesse freqüentado missas
católicas, recusava-me a me definir como católico, preferindo considerar-me
como cristão ou como alguém que cria em Deus.
Era uma
crença, certamente, egoísta, como o é, em muitos casos, o culto a Deus. Era
egoísta, porque, acreditando ter Deus atendido a um pedido e tendo-lhe
manifestado minha gratidão, sequer cogitava da possibilidade do insucesso
alheio ao solicitar a Deus algum benefício. Na prática, me interessava o fato
de eu, por exemplo, ter sobrevivido a um sério problema de saúde tão-logo eu
nascera, sem levar em conta a possibilidade de outras crianças em condição
semelhante não ter sido da mesma forma agraciada. O problema do mal ou do
sofrimento no mundo, naquela época, raramente visitava a minha consciência.
Digo “o problema”, porque é claro que estamos expostos ao mal e ao sofrimento
cotidianamente, quer diretamente, quer indiretamente, quando assistimos aos
noticiários pela televisão. Lamentava o fato de um furacão arrasar uma cidade e
matar um grande número de pessoas, mas, como para todos os que creem na
existência de um Deus que é bom, que é todo-poderoso, justo e providente, não
via naquela ocorrência um problema sério para a minha convicção de fé. Não me
ocorria fazer uma conexão lógica entre ‘o fato do sofrimento, da dor, da morte
provocado pela passagem do furacão’ e a ‘crença na existência de tal Deus’.
Pondé
diz ser o ateísmo uma hipótese fácil a que qualquer criança, com um pouco mais
de discernimento, pode chegar. Estou agora a cogitar dessa visão... O que terá
querido dizer o filósofo ao considerar o ateísmo uma ‘hipótese fácil’? Penso
que a razão esteja em demandar pouca ou nenhuma teorização filosófica. Se é
assim, pode-se concluir que, para Pondé, a teologia cristã ou o teísmo é mais
intelectualmente desafiador. Em outras palavras, a hipótese da existência de
Deus seria mais estimulante ao desenvolvimento do pensamento reflexivo do que a
hipótese ateísta - mais fácil e menos fértil para o pensamento.
Não
posso acompanhar o filósofo nesse tocante. A se considerar o fato de que a
aceitação dos postulados ateístas pelo teísta mais ferrenho é extremamente
difícil, dado o poder de penetração doutrinário a que me referi, claro me
parece que a empresa ateísta constitui um desafio nada desprezível para o
pensamento humano. Se, por um lado, num sentido epistemológico, o ateísmo
parece ser uma ‘hipótese fácil’, por outro lado, Deus não deixa de sê-lo também. Deus
é uma hipótese simples para explicar a origem da vida e do universo; é uma
hipótese simples com que se mascaram as razões verdadeiras por que certas
coisas acontecem (por exemplo, por que nos curamos de um câncer). Trata-se de
se valer do conceito de Deus como um mecanismo ad hoc, ou como uma hipótese explicativa para as lacunas de nossa
ignorância sobre o mundo.
Se a
hipótese do ateísmo é fácil ou óbvia, por que bilhões de pessoas no mundo são
incapazes de aceitá-la, de chegar a ela? Parece ser razoável dizer que uma criança
não acreditará em Deus se não for exposta a uma tradição discursiva que tenha
Deus como centro de suas preocupações. Para um religioso, no entanto, que viveu
grande parte de sua vida acreditando em Deus, assumir a hipótese ateísta não
constituirá tarefa fácil. Pode ser que, uma vez introduzida no universo de
reflexões ateístas, uma vez tendo acesso aos discursos da filosofia ateísta,
uma pessoa, disposta a abandonar sua fé, comece a sentir facilidade para chegar
às conclusões apontadas pelo ateísmo; mas até que isso ocorra, ela terá de
“desvendar essa hipótese”, que não lhe é, ao contrário do que sugere Pondé,
imediatamente acessível. Quando a criança é, por força da sua formação
familiar, em primeiro lugar, exposta às crenças religiosas de seus pais, e não
lhe sendo oferecidas oportunidades para questioná-las, a hipótese ateísta lhe
ficará, por muito tempo (senão para a vida toda), inacessível. Quando a
doutrinação já tiver feito seu trabalho lapidar, dificilmente terá ela
oportunidades de, pelo pensamento crítico, chegar àquela hipótese. Por isso, a
filosofia. O leitor pode assistir ao final da palestra de Pondé, quando
responde a um espectador, acessando
Até o momento, não introduzi a questão principal sobre a qual me debruçarei neste texto. Tratarei de expô-la agora. A incapacidade de traçar relações lógicas entre minhas experiências de mundo e minhas crenças de fé foi conservada até o momento em que eu passei a me interessar pelos estudos filosóficos e daí pelos estudos do ateísmo, primeiramente pela pena dos filósofos ateus, depois por outros autores ateus, não necessariamente filósofos. No entanto, durante o longo tempo em que minha consciência estava imersa ou aprisionada na crença em Deus (é disso mesmo que se tratava: era eu que estava imerso na crença), ignorava muitos fatos a respeito da história da religião e do Deus a que eu me inclinava. Pelo ateísmo, cheguei a conhecer melhor a natureza antropomórfica de Deus e, especialmente, a conhecer a história do cristianismo. À medida que avançava meus estudos sobre a história da formação do cristianismo, aprendi sobre fatos, por muitos cristãos ignorados, a respeito da fabricação da Bíblia. Na verdade, aprendi mais sobre a Bíblia.
Não
estou sugerindo que só se pode conhecer a formação histórica do cristianismo e
a fabricação da Bíblia pelo caminho do ateísmo. Quero dizer que as descobertas dos historiadores sobre o cristianismo e sobre a Bíblia dificilmente serão acessíveis aos religiosos leigos, caso pretendam buscar tais conhecimentos nos
ensinamentos dos ministros de sua fé. Não estão eles na boca do padre, do bispo
ou do pastor. Não se encontram nos cursos de catequese ou nos encontros para
estudos bíblicos. Nessas ocasiões, fazem-se leituras devocionais dos textos
bíblicos, que não contribuem para estimular uma reflexão crítica (e nem
podem!).
Nos
primórdios do cristianismo, os pais da Igreja tiveram de lidar com vários
obstáculos ao fortalecimento da nova fé. Entre esses obstáculos, estavam as
práticas de certas comunidades cristãs constituídas de pessoas que questionavam
a hierarquia eclesiástica e a crença num Deus criador e único. Surgiam os
gnósticos, que acreditavam haver outro Deus além do Deus criador.
Marcião,
um cristão e teólogo da Ásia Menor (séc. II), perguntava-se sobre a razão de
existir um Deus que, sendo todo-poderoso, criaria um mundo repleto de
sofrimento, dor e doença. Com base nas visões conflitantes de Deus no Antigo e
no Novo Testamento, não tardou para concluir que devia haver dois deuses
diferentes. Para ele, o Deus do Antigo Testamento não era o mesmo Deus de
Jesus. A Lei dizia respeito ao judeus; e o Evangelho, aos cristãos.
Seu
nome inspirou a formação de um grupo de cristãos conhecidos como marcionitas. Na
visão dos marcionitas, o Deus do Antigo Testamento não se identificava com o
Deus do Novo Testamento. O primeiro era um Deus vingativo, assassino e
ciumento; já o segundo, que era o Deus verdadeiro, era amoroso e
misericordioso. Portanto, o Deus de Jesus nada tinha que ver com o Deus dos
judeus.
Evidentemente,
sustentar a crença na existência de outro Deus diferente do Deus criador,
representado no pensamento ortodoxo que buscava se estabelecer, era
intolerável. Irineu, fundador da teologia cristã, dedicou-se a combater, com
virulência, as heresias gnósticas, entre as quais as do marcionitas. Havia além
destes os valentinos, inspirados nas posições de Valentim - teólogo gnóstico do
cristianismo primitivo. Esses gnósticos assumiam publicamente a crença em um
Deus único (muitos ainda estavam ligados à cúpula da igreja), mas, em seus
encontros furtivos, insistiam em discriminar entre a imagem de um Deus, que é
criador, senhor e justo, e a imagem de um Deus que é fonte de todo o ser.
Havia,
evidentemente, além das razões filosóficas e teológicas, razões políticas para
que cristãos ortodoxos, como Irineu, se insurgissem contra as visões gnósticas. A
crença em um só Deus justifica a instituição de um poder inquestionável de um
só bispo como monarca da igreja. Em Os
Evangelhos Gnósticos (2006), Pagels argumenta:
“(...) quando investigamos a forma
como realmente funciona a doutrina de Deus nos escritos ortodoxos e gnósticos,
podemos constatar como esta questão religiosa envolve também questões sociais e
políticas. Especificamente, pela segunda metade do século segundo, quando os
ortodoxos insistiram em “um Deus”, eles validaram simultaneamente o sistema de
governo no qual a igreja é regida por “um bispo”. A modificação gnóstica do
monoteísmo foi tomada – talvez, intencionalmente – como um ataque contra esse
sistema. Pois quando os cristãos
gnósticos e ortodoxos discutiam a natureza de Deus, eles debatiam ao mesmo
tempo a questão da autoridade espiritual”.
(p. 99)
(grifo meu)
Os
seguidores de Valentim acreditavam numa tradição secreta em que se inspiravam
os escritos atribuídos a Paulo. Essa tradição revelaria que o Deus em que a
maioria cristã acreditava como sendo o criador e Pai é tão-só uma imagem do
Deus verdadeiro. Adotando o termo demiurgo (artesão) de Platão, Valentim
assumia que o Deus de Clemente e outros pais da igreja é um Deus menor.
Apresentando-nos a crença de Valentim, esclarece Pagels:
“Não é Deus, explica [Valentim], mas
sim o demiurgo quem reina como rei e senhor, quem age como comandante militar,
quem promulga a lei e julga aqueles que a violam – em resumo, ele é o Deus de
Israel”.
(p. 62)
O
gnóstico reconhece tanto no demiurgo quanto no bispo uma autoridade legitimada
que exerce influência sobre os cristãos leigos. A pessoa iniciada na gnosis (conhecimento, entendimento)
passa a estabelecer uma relação nova com Deus. Ela se reveste de uma autoridade
espiritual em suas práticas cristãs. É digno de nota que nas cerimônias
gnósticas todos podiam exercer, por sorteio, as funções de padre, bispo e
profeta, inclusive as mulheres, fato que desagradava aos proto-cristãos
ortodoxos. No entanto, os gnósticos não deixavam de crer na providência e
onisciência de Deus, de tal sorte que, para eles, o resultado dos sorteios
expressava a escolha de Deus.
Creio
bastantes essas reflexões para aquilo a que me proponho aqui. Elas conduzem-nos
à seguinte questão: Qual a importância, para o leitor cristão, do conhecimento
de fatos como os que apresentei aqui? Não espero, evidentemente, com a
exposição deles, com base na literatura especializada, sugerir que abandone sua
fé. O conhecimento sobre a história do cristianismo e sobre a história da
constituição do cânone das Escrituras não leva, necessariamente, ao ateísmo,
muito embora contribua para colocar em xeque algumas crenças arraigadas, tais
como a de que Deus inspirou a escrita das Escrituras (quando o leitor, pelo
estudo, é forçado a reconhecer que a Bíblia é um trabalho de muitas mãos
humanas e que nos textos e entre eles há muitas inconsistências); a de que a
Bíblia é infalível (porque, segundo a primeira crença, é a Palavra de Deus); a
de que foi Jesus quem realmente proferiu as palavras a ele imputadas nos
Evangelhos (os Evangelhos são produtos de falsificações e os autores dos textos não são as pessoas que alegavam ser), etc.
Se
somos capazes de aceitar a verdade desses fatos, igualmente capazes somos de
reconhecer a materialidade histórica do Deus judaico-cristão. Deus e religião,
assim, deixam de ser, em nossa consciência, um ser transcendente e um caminho elevado de acesso a ele, respectivamente,
para tornarem-se fatos da cultura,
portanto, fatos humanos.
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