domingo, 18 de novembro de 2012

O olhar gnóstico



O desafio gnóstico nos primórdios do cristianismo




Tenho de concordar com o filósofo Luiz Felipe Pondé, que não é ateu, mas também não demonstra ser religioso em algum sentido forte, ao objetar aos que supõem que as pessoas que acreditam em Deus são ignorantes. A experiência é suficiente para lançar por terra a validade dessa crença. Também não é verdade que ateus seriam, em algum sentido, mais “inteligentes”, crença também repudiada por Pondé, em cuja posição estou de acordo. Também, nesse tocante, a experiência é suficiente para dispensar demonstrações em favor da invalidade dessa crença. Para ele tanto quanto para mim, isso é uma bobagem, infelizmente, muitas vezes, largamente reproduzida.
Tendo estabelecido minha posição sobre a correlação entre ignorância e teísmo, de um lado; e esclarecimento e ateísmo, de outro, reelaboro-a de outro modo. Desde já, fique claro que me situo na tradição dos três grandes monoteísmos (judaísmo, cristianismo, islamismo), embora me concentre na tradição judaico-cristã. A imersão nas vivências religiosas, a adesão às práticas doutrinárias, à receptividade à ideologia teológica por meio da oratória de padres ou pastores, durante cultos ou missas, moldam a consciência de uma coletividade, de modo a desenvolver atitudes, ideias e hábitos que acabam por inibir cada um de seus membros de buscar instruir-se sobre as bases históricas de sua fé. O poder da doutrinação é de tal modo tão penetrante, que as pessoas mais suscetíveis a ele preferem, talvez por receio de deparar-se com a fragilidade das fundações de sua fé, manter-se distante dos discursos polêmicos. Polemizar a doutrina é chocar-se contra a própria doutrina. Por definição, uma doutrina não admite polêmica.
No tempo em que ainda frequentava a igreja e em que conservava minha crença na existência de Deus, me contentava com o sentimento de abstração de Deus de toda retórica da comunidade eclesiástica que falava por detrás da voz do padre, para cultuá-lo na intimidade de minha imaginação (tratava-se de uma fé intimista). Conquanto tivesse crescido numa tradição católica e tivesse freqüentado missas católicas, recusava-me a me definir como católico, preferindo considerar-me como cristão ou como alguém que cria em Deus.
Era uma crença, certamente, egoísta, como o é, em muitos casos, o culto a Deus. Era egoísta, porque, acreditando ter Deus atendido a um pedido e tendo-lhe manifestado minha gratidão, sequer cogitava da possibilidade do insucesso alheio ao solicitar a Deus algum benefício. Na prática, me interessava o fato de eu, por exemplo, ter sobrevivido a um sério problema de saúde tão-logo eu nascera, sem levar em conta a possibilidade de outras crianças em condição semelhante não ter sido da mesma forma agraciada. O problema do mal ou do sofrimento no mundo, naquela época, raramente visitava a minha consciência. Digo “o problema”, porque é claro que estamos expostos ao mal e ao sofrimento cotidianamente, quer diretamente, quer indiretamente, quando assistimos aos noticiários pela televisão. Lamentava o fato de um furacão arrasar uma cidade e matar um grande número de pessoas, mas, como para todos os que creem na existência de um Deus que é bom, que é todo-poderoso, justo e providente, não via naquela ocorrência um problema sério para a minha convicção de fé. Não me ocorria fazer uma conexão lógica entre ‘o fato do sofrimento, da dor, da morte provocado pela passagem do furacão’ e a ‘crença na existência de tal Deus’.
Pondé diz ser o ateísmo uma hipótese fácil a que qualquer criança, com um pouco mais de discernimento, pode chegar. Estou agora a cogitar dessa visão... O que terá querido dizer o filósofo ao considerar o ateísmo uma ‘hipótese fácil’? Penso que a razão esteja em demandar pouca ou nenhuma teorização filosófica. Se é assim, pode-se concluir que, para Pondé, a teologia cristã ou o teísmo é mais intelectualmente desafiador. Em outras palavras, a hipótese da existência de Deus seria mais estimulante ao desenvolvimento do pensamento reflexivo do que a hipótese ateísta - mais fácil e menos fértil para o pensamento.
Não posso acompanhar o filósofo nesse tocante. A se considerar o fato de que a aceitação dos postulados ateístas pelo teísta mais ferrenho é extremamente difícil, dado o poder de penetração doutrinário a que me referi, claro me parece que a empresa ateísta constitui um desafio nada desprezível para o pensamento humano. Se, por um lado, num sentido epistemológico, o ateísmo parece ser uma ‘hipótese fácil’, por outro lado, Deus não deixa de sê-lo também. Deus é uma hipótese simples para explicar a origem da vida e do universo; é uma hipótese simples com que se mascaram as razões verdadeiras por que certas coisas acontecem (por exemplo, por que nos curamos de um câncer). Trata-se de se valer do conceito de Deus como um mecanismo ad hoc, ou como uma hipótese explicativa para as lacunas de nossa ignorância sobre o mundo.
Se a hipótese do ateísmo é fácil ou óbvia, por que bilhões de pessoas no mundo são incapazes de aceitá-la, de chegar a ela? Parece ser razoável dizer que uma criança não acreditará em Deus se não for exposta a uma tradição discursiva que tenha Deus como centro de suas preocupações. Para um religioso, no entanto, que viveu grande parte de sua vida acreditando em Deus, assumir a hipótese ateísta não constituirá tarefa fácil. Pode ser que, uma vez introduzida no universo de reflexões ateístas, uma vez tendo acesso aos discursos da filosofia ateísta, uma pessoa, disposta a abandonar sua fé, comece a sentir facilidade para chegar às conclusões apontadas pelo ateísmo; mas até que isso ocorra, ela terá de “desvendar essa hipótese”, que não lhe é, ao contrário do que sugere Pondé, imediatamente acessível. Quando a criança é, por força da sua formação familiar, em primeiro lugar, exposta às crenças religiosas de seus pais, e não lhe sendo oferecidas oportunidades para questioná-las, a hipótese ateísta lhe ficará, por muito tempo (senão para a vida toda), inacessível. Quando a doutrinação já tiver feito seu trabalho lapidar, dificilmente terá ela oportunidades de, pelo pensamento crítico, chegar àquela hipótese. Por isso, a filosofia. O leitor pode assistir ao final da palestra de Pondé, quando responde a um espectador, acessando 



        Até o momento, não introduzi a questão principal sobre a qual me debruçarei neste texto. Tratarei de expô-la agora. A incapacidade de traçar relações lógicas entre minhas experiências de mundo e minhas crenças de fé foi conservada até o momento em que eu passei a me interessar pelos estudos filosóficos e daí pelos estudos do ateísmo, primeiramente pela pena dos filósofos ateus, depois por outros autores ateus, não necessariamente filósofos. No entanto, durante o longo tempo em que minha consciência estava imersa ou aprisionada na crença em Deus (é disso mesmo que se tratava: era eu que estava imerso na crença), ignorava muitos fatos a respeito da história da religião e do Deus a que eu me inclinava. Pelo ateísmo, cheguei a conhecer melhor a natureza antropomórfica de Deus e, especialmente, a conhecer a história do cristianismo. À medida que avançava meus estudos sobre a história da formação do cristianismo, aprendi sobre fatos, por muitos cristãos ignorados, a respeito da fabricação da Bíblia. Na verdade, aprendi mais sobre a Bíblia.
Não estou sugerindo que só se pode conhecer a formação histórica do cristianismo e a fabricação da Bíblia pelo caminho do ateísmo. Quero dizer que as descobertas dos historiadores sobre o cristianismo e sobre a Bíblia dificilmente serão acessíveis aos religiosos leigos, caso pretendam buscar tais conhecimentos nos ensinamentos dos ministros de sua fé. Não estão eles na boca do padre, do bispo ou do pastor. Não se encontram nos cursos de catequese ou nos encontros para estudos bíblicos. Nessas ocasiões, fazem-se leituras devocionais dos textos bíblicos, que não contribuem para estimular uma reflexão crítica (e nem podem!).
Nos primórdios do cristianismo, os pais da Igreja tiveram de lidar com vários obstáculos ao fortalecimento da nova fé. Entre esses obstáculos, estavam as práticas de certas comunidades cristãs constituídas de pessoas que questionavam a hierarquia eclesiástica e a crença num Deus criador e único. Surgiam os gnósticos, que acreditavam haver outro Deus além do Deus criador.
Marcião, um cristão e teólogo da Ásia Menor (séc. II), perguntava-se sobre a razão de existir um Deus que, sendo todo-poderoso, criaria um mundo repleto de sofrimento, dor e doença. Com base nas visões conflitantes de Deus no Antigo e no Novo Testamento, não tardou para concluir que devia haver dois deuses diferentes. Para ele, o Deus do Antigo Testamento não era o mesmo Deus de Jesus. A Lei dizia respeito ao judeus; e o Evangelho, aos cristãos.
Seu nome inspirou a formação de um grupo de cristãos conhecidos como marcionitas. Na visão dos marcionitas, o Deus do Antigo Testamento não se identificava com o Deus do Novo Testamento. O primeiro era um Deus vingativo, assassino e ciumento; já o segundo, que era o Deus verdadeiro, era amoroso e misericordioso. Portanto, o Deus de Jesus nada tinha que ver com o Deus dos judeus.
Evidentemente, sustentar a crença na existência de outro Deus diferente do Deus criador, representado no pensamento ortodoxo que buscava se estabelecer, era intolerável. Irineu, fundador da teologia cristã, dedicou-se a combater, com virulência, as heresias gnósticas, entre as quais as do marcionitas. Havia além destes os valentinos, inspirados nas posições de Valentim - teólogo gnóstico do cristianismo primitivo. Esses gnósticos assumiam publicamente a crença em um Deus único (muitos ainda estavam ligados à cúpula da igreja), mas, em seus encontros furtivos, insistiam em discriminar entre a imagem de um Deus, que é criador, senhor e justo, e a imagem de um Deus que é fonte de todo o ser.
Havia, evidentemente, além das razões filosóficas e teológicas, razões políticas para que cristãos ortodoxos, como Irineu, se insurgissem contra as visões gnósticas. A crença em um só Deus justifica a instituição de um poder inquestionável de um só bispo como monarca da igreja. Em Os Evangelhos Gnósticos (2006), Pagels argumenta:

“(...) quando investigamos a forma como realmente funciona a doutrina de Deus nos escritos ortodoxos e gnósticos, podemos constatar como esta questão religiosa envolve também questões sociais e políticas. Especificamente, pela segunda metade do século segundo, quando os ortodoxos insistiram em “um Deus”, eles validaram simultaneamente o sistema de governo no qual a igreja é regida por “um bispo”. A modificação gnóstica do monoteísmo foi tomada – talvez, intencionalmente – como um ataque contra esse sistema. Pois quando os cristãos gnósticos e ortodoxos discutiam a natureza de Deus, eles debatiam ao mesmo tempo a questão da autoridade espiritual”.
(p. 99)
(grifo meu)

Os seguidores de Valentim acreditavam numa tradição secreta em que se inspiravam os escritos atribuídos a Paulo. Essa tradição revelaria que o Deus em que a maioria cristã acreditava como sendo o criador e Pai é tão-só uma imagem do Deus verdadeiro. Adotando o termo demiurgo (artesão) de Platão, Valentim assumia que o Deus de Clemente e outros pais da igreja é um Deus menor. Apresentando-nos a crença de Valentim, esclarece Pagels:

“Não é Deus, explica [Valentim], mas sim o demiurgo quem reina como rei e senhor, quem age como comandante militar, quem promulga a lei e julga aqueles que a violam – em resumo, ele é o Deus de Israel”.

(p. 62)

O gnóstico reconhece tanto no demiurgo quanto no bispo uma autoridade legitimada que exerce influência sobre os cristãos leigos. A pessoa iniciada na gnosis (conhecimento, entendimento) passa a estabelecer uma relação nova com Deus. Ela se reveste de uma autoridade espiritual em suas práticas cristãs. É digno de nota que nas cerimônias gnósticas todos podiam exercer, por sorteio, as funções de padre, bispo e profeta, inclusive as mulheres, fato que desagradava aos proto-cristãos ortodoxos. No entanto, os gnósticos não deixavam de crer na providência e onisciência de Deus, de tal sorte que, para eles, o resultado dos sorteios expressava a escolha de Deus.
Creio bastantes essas reflexões para aquilo a que me proponho aqui. Elas conduzem-nos à seguinte questão: Qual a importância, para o leitor cristão, do conhecimento de fatos como os que apresentei aqui? Não espero, evidentemente, com a exposição deles, com base na literatura especializada, sugerir que abandone sua fé. O conhecimento sobre a história do cristianismo e sobre a história da constituição do cânone das Escrituras não leva, necessariamente, ao ateísmo, muito embora contribua para colocar em xeque algumas crenças arraigadas, tais como a de que Deus inspirou a escrita das Escrituras (quando o leitor, pelo estudo, é forçado a reconhecer que a Bíblia é um trabalho de muitas mãos humanas e que nos textos e entre eles há muitas inconsistências); a de que a Bíblia é infalível (porque, segundo a primeira crença, é a Palavra de Deus); a de que foi Jesus quem realmente proferiu as palavras a ele imputadas nos Evangelhos (os Evangelhos são produtos de falsificações e os autores dos textos não são as pessoas que alegavam ser), etc.
Se somos capazes de aceitar a verdade desses fatos, igualmente capazes somos de reconhecer a materialidade histórica do Deus judaico-cristão. Deus e religião, assim, deixam de ser, em nossa consciência, um ser transcendente e um caminho elevado de acesso a ele, respectivamente, para tornarem-se fatos da cultura, portanto, fatos humanos.

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