sábado, 12 de novembro de 2011

"Ser romântico é estar grávido de um amor que o mundo quer ver abortado" (BAR)

                                 

                                        Da poesia ao ser romântico

 
Dos livros colho saberes que lançam luz sobre questões que me ocorrem na vida cotidiana, porque meu espírito não se contenta com a vida: a condição humana sempre será desconfortante a quem deseja ter o mínimo de entendimento sobre ela. Quando escrevo um poema, após lê-lo várias vezes e concluir que exprime bem a dimensão de meu sentir, cuido que fiz vir ao mundo um pedaço de mim capaz de transcender. Normalmente, o poema acaba por unir-me as duas pontas da existência: a solidão que me fecunda o espírito, desdobrando-o em versos (estado necessário à labuta do coração, pois que ele silencia o mundo, dando asas à voz do eu-lírico); e o mundo, ou a vida exterior ao “eu”, que é, a despeito de dissimulações do espírito lírico, o fim a que se destina o poema. Todavia, sempre que escrevo um poema, nego, em alguma medida, o mundo: trata-se de uma condição necessária para escrever liricamente. A poesia lírica e mundo não se toleram. Sucede diferente com a poesia de cunho social; mas mesmo aí é preciso certo grau de abstração do sujeito: o eu-lírico se distancia do mundo, para tomá-lo como objeto de reflexão poética. Assim também o eu-lírico, que pretende dar vazão a seus estados de alma, a seus sentimentos, que pretende invadir-se a si mesmo, precisa, a priori, distanciar-se, para contemplar a si mesmo. Fazer poesia é ter encontro íntimo consigo mesmo. É no movimento antonímico, a saber, de “abstrair-se” e “expandir-se”, que o eu-lírico consegue alcançar certo estado de expurgação psíquico-emocional.

Durante alguns anos – e ainda hoje, decerto, se bem que com menos intensidade -, preocupei-me com duas questões que estão inextricavelmente relacionadas, qual seja, os relacionamentos e o ser romântico. A pergunta que me fazia, no que toca a este último tema, era: O que é ser romântico na sociedade contemporânea hedonista e individualista? Vejamos. Basta que liguemos a televisão, para assistir, em algum programa de auditório, que visa a promover relacionamentos amorosos, ao apresentador perguntar a algum dos espectadores ou participantes de um quadro como Vai dar namoro, por exemplo, se ele é romântico. Em geral, a resposta é, indubitavelmente, “sim” – e não poderia deixar de sê-lo, sob pena de ele ser desprestigiado pelo público feminino (em geral, esta questão dirige-se a um homem e aqui há um aspecto interessante: a mulher é, tacitamente, tomada como um ser romântico por definição, por isso não cabe a pergunta em relação a ela; o homem (pelo menos, o da sociedade moderna), ao contrário, é estereotipado como um ser não dado a sensibilidade exacerbada; portanto, como um não-romântico). Entretanto, é uma forma ideológica de compreensão, visto que mascara o fato de, por um lado, nem todas as mulheres serem românticas; por outro lado, de haver ainda homens românticos (ou, pelo menos, que encarnem vestígios de um ser romântico).

Após o “sim” do rapaz, então, desejoso de “desencalhar” (como se costuma dizer, porque “estar “encalhado”” é motivo de vergonha, tanto para homens, quanto para mulheres, em nossa sociedade), segue um coro de interjeições e aplausos que são sinais de que os valores românticos são ainda desejados e acolhidos, em que pese ao fato de que se tenha diluído a consciência de tais valores. Aqueles sinais, de qualquer modo, representam a aprovação da platéia, mais propriamente, das mulheres, é claro. Escusando-me de fazer uma avaliação preconceituosa (no sentido de que posso fazer juízos prévios que entram em conflito com os fatos), acredito em que, apesar de toda retórica favorável ao romantismo, de que se sabe apenas nos livros de literatura (e ainda aqui é um conhecimento restrito a uma classe social privilegiada), e que aprendemos na escola, parece haver certo esvaecimento desses valores nas experiências afetivas em nossa sociedade. Refiro-me especificamente às relações entre homens e mulheres com finalidade sexual. Então, afirmo novamente: nesta esfera, o sentido de ser romântico ou foi totalmente esvaziado, ou está ralo, carece de uma profundidade. É certo que ser romântico não é assumir uma atitude; não é, definitivamente, um estado de alma. De uma pessoa não se pode dizer romântica, porque, em certas circunstâncias, dá buquês de rosas, ou registra em papéis os rabiscos de uma paixão ou de um amor. Em algum momento de nossa vida, escrevemos cartas de amor, até que a maturidade nos convença de que foi um esforço inútil do coração, decorrente de um estado primaveril de nossa existência. No entanto, agrado-me de saber que existem pessoas que, após longos anos de casamento, ainda dedicam cartas de amor ao seu cônjuge; sinal de que, pelo menos, entre aqueles que pertencem a gerações anteriores, os valores românticos ainda sobrevivem; atualmente, os casamentos sequer chegam a um mês.

Ser romântico é um movimento do espírito para a negação do mundo. É um sentir e perceber a realidade segundo os ideais sublimados na alma. É interiorizar-se e descobrir na intimidade da alma o desejo pela fuga. É sentir que o mundo incomoda e que se é estranho em si mesmo. É sublimar a beleza da alma e do corpo. É prostrar-se ao ideal de fusão, de unidade e desejá-lo ardorosamente. É nutrir um amor dirigido, primariamente, para a alma, pois que a relação sexual, para o amor romântico, significa o arrefecimento do desejo. Porque o amor romântico é, necessariamente, o amor da carência, da impossibilidade; amor que, ao desejar, preenche seu vazio e nutre, e sustenta sua fragilidade. Ser romântico é ser enamorado da solidão anímica e fazer disso uma graça sobrenatural e inefável. É buscar nos ideais sublimados o único meio de se vincular a um mundo que veio antes e ao qual, pelo nascimento, se é condenado, porque, afinal, não se nasce membro de uma sociedade, nasce-se com a predisposição à sociabilidade. O romântico autêntico é ser sociável, embora inconformado; mas é, acima de tudo, um eleitor: pois seu coração elege, no meio da multidão, a alma cuja beleza e significância preencherão o vazio, ou antes, o sopro doloroso de sua existência.

Não vou elencar, como se poderia supor, as características famigeradas do romantismo, enquanto movimento estético-literário. Não me refiro ao romantismo como escola literária particular. Refiro-me à condição de existência do romântico típico ou autêntico. Não se trata, definitivamente, como se poderia concluir, tendo em conta uma visão utilitarista, de um estilo. Ser romântico não é um estilo de vida, porque os estilos podem ser escolhidos e duram enquanto durarem certas tendências valorizadas; e, como tudo na sociedade líquida, é efêmero, líquido, muda numa velocidade espantosa, também os estilos serão tão descartáveis quanto os celulares ou qualquer outra mercadoria de consumo. Talvez, venham-me acusar de conservador, já que pareço assumir uma visão antiga do romântico, que remonta à segunda metade do século XVIII. É provável que se possa falar em “românticos modernos”, que não precisam viver e sentir como Álvares de Azevedo, Byron, por exemplo; mas devem conservar, em sua alma, pelo menos três características: idealização-sublimação, escapismo (negação do mundo) e exagero (cantado e vivido por Cazuza). Portanto, um indivíduo não é propriamente um romântico se não se define por esses três aspectos; poderá ser até cortês, galanteador e educado; mas, para ser romântico, ele terá de haver-se consigo mesmo. Se, nesse confronto, admite ser o mundo aprazível, então não é romântico; se supervaloriza os obstáculos que turvam os anseios do coração, então não é romântico; se não bebe dos aromas que há na alma da pessoa a que seu coração se inclina e se não se embriaga na beleza dela; e se ama tão só carnalmente, se é escravo da tentação do corpo; se tão-só a ele destina seu desejo, se o prazer carnal é a finalidade última de sua astúcia, então não é romântico. Se o mundo lhe é bastante, se a vida é o limite de suas potencialidades, o ventre de seus desejos, então não é romântico; porque, para o romântico, o mundo não é o bastante e a vida é apenas o berço de seus ideais de amor sublime, que se torna, não raro, o cárcere (e há que transcendê-la, de algum modo). Se suas paixões não namoram a demência, a loucura; se seus amores não lhe provocam um terremoto de emoções e sensações imperiosas; se não impregna sua alma de impetuosidade lírica; se não se arremessa ao outro, desejando a unidade sobre-humana; se não busca com o outro a unidade transcendente; se a ideia de morte não lhe acarinha a alma; se não sofre com lágrimas que afogam todo seu sentir excelso, que lhe fincam no coração caminhos de tristeza abismal; se não se deleita com a beleza que se aninha sob a complexidade da matéria lasciva; se não “enxerga numa gotícula de água toda a complexidade do oceano” (BAR), então não é romântico. Se não é uma voz sufocada num tropel, um grito ofegante num mundo que lhe é tão estranho quanto medonho, se não sucumbe a lágrimas pesadas e lancinantes derramadas por amores esmeradamente nutridos pelo coração endoidecido, não é romântico. Pois o romântico, em síntese, se define pela busca máxima e apaixonada pela unidade transcendente através da negação da imanência de sua mundaneidade (imanência no sentido de ‘situação dada e não escolhida’).

O nascimento de um romântico é sempre um sopro sofrível, já que, ao descobrir-se vivo, iniciará sua busca insana e desenfreada pelo deleite amoroso que justifique sua vida e que torne afável a morte inevitável. Como a vida lhe seja um acidente que lhe obsta a fruição dos prazeres de seus ideais sublimados, a morte, ao termo do movimento impetuoso e funesto da alma sonhadora, se lhe torna a condição mais desejada graças à qual não só poderá livrar-se das dores que lhe pungiam a alma, quando esta estava imersa na corporeidade, como também graças à qual retornará a uma essência, que está predestinada a ser obscurecida pela luz da vida.

Para o romântico, que ama com a alma e para a alma encerrada no corpo, viver neste mundo é, deveras, uma condição de angústia. Não se é romântico, em suma, se não se vê às voltas com a angústia da existência.

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