quarta-feira, 9 de novembro de 2011

"A religião é comparável com uma neurose da infância." (Sigmund Freud)

                                            
                                                Ser um ateu livre

Qual não foi minha satisfação quando minha mãe revelou-me estar ciente de que sou ateu! E a reação dela não me surpreendeu: disse-me que respeitava e que devemos seguir o que nos parece melhor, muito embora ela precise acreditar em Deus. Meu irmão lhe participou o fato, depois que eu, quando indagado por ele, lhe confirmei que sou ateu.
Antes de descer a pormenores deste acontecimento comum da vida, gostaria de dizer um pouco acerca do relacionamento entre pais e filhos, e, particularmente, entre o meu relacionamento com meus pais.
Devemos retificar o primeiro mandamento: não é amar a Deus sobre todas as coisas; mas amar e honrar nossos pais sobre todas as coisas. É lugar-comum dizer que os filhos são espelho dos pais, o que significa dizer que eles são resultado de uma herança educacional recebida dos pais. De fato, sua personalidade será formada, decisivamente, na convivência com os pais desde que nascem. Todavia, também a personalidade deverá uma boa parte à atuação de outros significativos (amigos, professores, etc.).
A formação da personalidade e do caráter numa criança se dá no confronto entre a herança recebida dos pais e os outros padrões educacionais a que a criança está exposta ao longo de sua socialização secundária.
Viver em sociedade implica participar da dialética social, ou seja, um indivíduo, em sociedade, exterioriza seu próprio ser nesse meio social e interioriza esse meio como realidade objetiva. Nenhum indivíduo nasce membro de uma sociedade, mas nasce com a predisposição à sociabilidade. O início do longo e ininterrupto processo de socialização se dá na interiorização. Pela interiorização, um indivíduo interpreta um dado acontecimento como dotado de sentido. Esse acontecimento é a manifestação da subjetividade do outro, a qual se torna significativa para esse indivíduo. O indivíduo, portanto, assume o mundo no qual o outro vive e dele participa também. É só depois de ter passado pelo processo de interiorização que o indivíduo torna-se membro de sua sociedade. A socialização primária é, portanto, aquela que ocorre na infância e em virtude da qual se torna um membro de sua sociedade.
A socialização secundária, a seu turno, é o processo pelo qual um indivíduo é incessantemente introduzido nos mais variados setores da realidade objetiva de sua sociedade. Quanto mais diversa e, culturalmente, rica for essa socialização mais atuante será esse indivíduo; além disso, seu desenvolvimento cognitivo e emocional se tornará mais complexo.
É claro que a socialização primária terá um valor mais importante e constituirá a base na qual se desenvolverá a socialização secundária. Durante todo esse processo, a criança identifica-se com os outros significativos, ou seja, absorve suas atitudes e papéis, interioriza-os, tornando-os as suas atitudes e papéis. Donde se segue o lugar-comum de que somos o reflexo do meio em que vivemos, porque, ao assumirmos as atitudes e os papéis dos outros, assumimos o mundo deles. É interessante notar aqui que a criança, ao identificar-se com as manifestações subjetivas do outro,  também se identifica a si mesma. O “eu” se constrói na relação com o “eu” do outro e esse “eu-outro” é nessa relação também constituído. Evidentemente, entra aí, como função preponderante, a linguagem. É pela palavra que se dá a mediação dessa relação. Não descerei a pormenores nesse tocante.
Em A construção Social da Realidade (2007), Berger& Luckmann ensinam-nos sobre a personalidade:

“(...) a personalidade é uma entidade reflexa, que retrata as atitudes tomadas pela primeira vez pelos outros significativos com relação ao indivíduo, que se torna o que é pela ação dos outros para ele significativos. Esse processo não é unilateral nem mecanicista. Implica uma dialética entre a identificação pelos outros e a auto-identificação, entre a identidade objetivamente atribuída e a auto-identidade subjetivamente apropriada”.
(p. 177)

A possibilidade mesma de assumir o mundo social como uma realidade dotada de sentido depende da linguagem, a qual nos permite construir um universo simbólico básico na base do qual se inscrevem e se estabelecem os significados socialmente objetivados e subjetivados.
Dizer que todo indivíduo é determinado pela sociedade, é absorvido pelas estruturas de sua sociedade é reconhecer que seu desenvolvimento está relacionado com uma ordem social específica, da qual participam como mediadores os outros significativos. O desenvolvimento orgânico do ser humano será direcionado e sofrerá influências socialmente determinadas. O homem se desenvolve na correlação entre um ambiente natural e um humano (social).
Essas considerações, que vêm a propósito justamente para explicar como se dá o desenvolvimento sociocognitivo e subjetivo de um indivíduo, processo este no qual a atuação dos pais é fundamental, contribui para ratificar a ideia de que nossa maturidade e autonomia dependem de que participemos de experiências ricas e significativas ao longo da vida, experiências que nos exponham a outros “mundos significativos”, para com eles nos identificar e para neles marcarmos nossa diferenciação ou identidade.
Quando pensamos em liberdade (e não livre-arbítrio, porque este, na verdade, não temos), devemos pensá-la em termos de negociação. Negociação é um conceito-chave para entender a dialética social. Quando usamos a linguagem, negociamos significados (já que é preciso haver um acordo tácito quanto ao sentido que damos às nossas palavras). Nesse sentido, a liberdade é negociada, porque, por um lado, ela nunca é total, porquanto constrangida pelos dispositivos legais e pelos padrões morais de uma sociedade; por outro lado, o domínio para a realização de minha liberdade está intimamente ligado ao domínio em que se realiza a liberdade do outro.
Nesse sentido, sou livre para escolher tornar-me ateu e minha mãe reconheceu o domínio de minha liberdade, bem como eu reconheci o seu domínio de liberdade. Ela me perguntou sobre as razões de eu assumir o ateísmo e, embora, imediatamente, tenha eu pensado quão custoso seria explicar-lhe, disse algumas palavras, sem me aprofundar. Ela, por algum momento, replicou-me baseando-se na sua herança católica (e aqui ficou claro como o modelo de interpretação/ compreensão legado pela doutrina católica é determinante na contra-argumentação). Somos incapazes de ir além desse modelo interpretativo cristalizado em nossa consciência e nos guiamos por ele.
E aqui reside o grande problema da religião: o adestramento da consciência, o condicionamento do pensamento, ou mesmo a sua suspensão, quando reconhecemos não haver mais possibilidade de diálogo e dizemos: religião não se discute. E por que não se discute? O que tem ela de especial que a torna imune ao debate, à reflexão? Que ela busca nos confortar e aliviar o nosso sentimento de angústia  (e entendo “angústia” no sentido que lhe deu Heidegger, ou seja, sentimento de insegurança em face da consciência do nada) pode parecer ingenuamente evidente, se esquecermos que ela também é responsável por uma grande dose de angústia, na medida em que nos incute o sentimento de pecado, de culpa. Há angústia maior, ou seja, inquietação maior do que o sentimento de que estamos, desde a origem dos tempos, condenados ao pecado? Somos transgressores, desobedientes, indisciplinados e nos resta apenas viver pedindo perdão a Deus incessantemente, na esperança de que nos seja dada a paz eterna, após a morte.
Não é verdade que a religião seja uma panacéia para a nossa angústia, para as nossas aflições e enfermidades. Religião atende aos conformados; o problema é que eu não me con-formo. Entenda o sentido original: ‘dar forma’. Percebi, com o tempo, que a crença em Deus me inquietava, ao invés de me apaziguar. E nos momentos mais tenebrosos de minha depressão, eu rezava com minha mãe o terço, e isso se tornou hábito durante algumas semanas. Todos os dias, copiosamente, proferia as orações do pai-nosso e da ave-maria. 
Houve um período em minha vida, em que ia quase todos os domingos à missa com minha mãe e uma amiga. E, quando decidi fazer a crisma, minha convivência com amigos da igreja, tendo, inclusive, participado de “grupos jovens”, cuja função era angariar jovens para participar de palestras, cantar e orar, tornou-se prática corriqueira. E lembro-me de que eu fui encarregado de produzir uma apostila com os conteúdos que seriam debatidos nos encontros e esses conteúdos foram escolhidos para propiciar uma reflexão crítica. E é claro que eu sabia que as palavras “reflexão” e “crítica” não podiam combinar-se no mesmo sintagma. Eram proibidas. O grupo acabou antes mesmo de começar suas atividades, por razões de organização e disponibilidade de horário de seus integrantes.
Há dois anos, ofereci-me para dar aulas de interpretação textual a jovens na igreja que eu então freqüentava. As aulas eram dadas aos sábados e ocorriam em duas horas antes da missa. Elas tiveram de cessar logo, porque os poucos alunos deixaram de vir. Uma senhora paroquiana lamentou: “pois é, professor, essa juventude não quer nada; não perca seu tempo”. Deixei a igreja um pouco frustrado e voltei para casa.
Certa vez, um menino não compareceu à aula e, quando perguntei sobre a razão de sua ausência, sua colega respondeu-me que ele não se sentia confortado na igreja, porque sua religião era outra. Dissera-me ela que ele era de centro (não sei se de seita kardecista ou umbandista).
Esse acontecimento é ilustrativo do impacto emocional que a religião que assumimos nos provoca. Adotar um sistema de dogmas, rituais e discursos religiosos é adotar uma forma particular de interpretar, compreender e de se relacionar com o mundo. O problema consiste em que a assunção desse modelo de interpretação/compreensão e relação acaba por nos embotar, por nos engessar a consciência reflexiva. O embotamento da consciência é um dos malefícios perpetrados pela religião, que, ao invés de abrir o indivíduo para a compreensão totalizante do mundo, o encarcera num universo estreito onde tudo deve ser explicado segundo um padrão de compreensão autoritariamente determinado.
Assim, padres das igrejas cristãs condenam o uso do preservativo pela pífia razão de que o sexo deve servir à procriação, donde se segue a prescrição de que tem de ser feito só no casamento. Mas eles ignoram dois fatos: um é que o preservativo serve, principalmente, para nos proteger de doenças venéreas, entre as quais a aids (e é o único meio eficaz de que dispomos para evitá-la, se bem que está sendo submetida a testes uma pílula, em cuja composição entram dois medicamentos tomados pelos portadores de hiv, que, tomada diariamente, poderá proteger homens e mulheres contra a aids – mais uma forma de prevenção, portanto); o outro é que o sexo é anterior ao casamento e este não é garantia de que estaremos protegidos de doenças venéreas. Ora, devemos sempre contar com a fidelidade e, principalmente, responsabilidade do parceiro que, mesmo cometendo adultério, deverá fazê-lo com segurança.
Quem não se lembra do caso de uma moça evangélica que adquiriu aids do próprio marido? O caso dela foi exibido em um dos quadros do Dr. Dráuzio Varella apresentados no Fantástico, em que nos informava sobre as condições sociais da aids após 30 anos de epidemia.
É claro que muitos católicos não seguem, felizmente, à risca os disparates do padre, como a recomendação de que se mantenham castos até o casamento e se abstenham do uso do preservativo. Aliás, se dependêssemos dos padres para educar sexualmente nossos jovens, advertindo-os da necessidade de se prevenirem, a epidemia da aids seria ainda maior; mas, felizmente, hoje, no Brasil, ela está controlada. Nesse tocante, devemos reconhecer o mérito de nossas políticas de saúde e o valor de nosso programa de combate à aids, modelo para todos os países do mundo.
Esses e outros casos patenteiam que a religião não contribui para o exercício de nossa liberdade e autonomia. E não nos enganemos com o argumento falacioso do livre-arbítrio, que não serve senão de um estratagema para desculpar a Deus de nossos erros.
O que é, afinal de contas, o livre-arbítrio? Ora, arbitrar é decidir por si mesmo, determinar com autoridade. O arbítrio que é livre é uma decisão isenta de qualquer forma de coerção. Pensemos bem: é possível viver em sociedade sem alguma forma de coerção? Podemos fazer o que nos der na telha?
Vamos ao Dicionário Básico de Filosofia, de Danilo Marcondes e Hilton Japiassú, e leiamos com atenção o verbete livre-arbítrio, transcrito abaixo:

livre-arbítrio – Faculdade que tem o indivíduo de determinar, com base em sua consciência apenas, a sua própria conduta; liberdade de escolha alternativa do indivíduo; liberdade de autodeterminação que consiste numa decisão, independentemente de qualquer constrangimento externo mas de acordo com os motivos e intenções do próprio indivíduo (...)”.
(p. 170)
(grifo meu)

Certa vez, ouvia uma conversa entre dois professores sentados, junto a mim, em que um deles dizia ter interesse em estudar filosofia. Esse professor é formado em Direito. A certa altura, dizia que os homens não podem viver sem lei; sem a lei, os homens se destruiriam uns aos outros. E com ele está a razão.
A vida social fornece-nos os códigos de conduta, pela moral e pela Lei instituída pelo Direito. Sem esses códigos, ou seja, sem um conjunto de prescrições e proibições nossa vida seria um caos completo e nosso instinto natural que tende ao prazer interdito e à destruição acabaria por prevalecer e causar nossa própria aniquilação. Disso se segue, com Freud, que a instituição da cultura é uma forma de coagir, de moldar, de controlar os impulsos humanos incompatíveis com a ordem imposta pela civilização. A vida civilizada instaura a repressão. O grau dessa repressão variará segundo a natureza autoritária das estruturas sociais.
Relendo a definição de livre-arbítrio, percebemos que não somos livres totalmente para agir segundo nossa vontade. E nossa consciência não goza de liberdade irrestrita. Não somos livres pela consciência, simplesmente porque é na consciência que incide as ações repressivas; nossa consciência, insisto, é produto sócio-ideológico. Ela é formada pela interiorização do código de preceitos de conduta, pela interiorização do sistema fornecido pelo que Althusser chama de aparelhos ideológicos do Estado, que se manifestam no domínio privado e são representados pela religião (Igreja), escola, família, sindicatos, política, direito, Belas Artes, Letras, esportes, etc.
Em suma, nossa consciência é atravessada e moldada por um complexo conjunto de dispositivos sociais orientados no sentido de maior integração do indivíduo à dialética de sua sociedade. Portanto, livre-arbítrio é um chamariz com que se busca fazer compreender o fiel que a inação de Deus em face, por exemplo, dos crimes cometidos pelos homens, decorre do livre-arbítrio concedido a eles. Se dependêssemos de Deus para nos fornecer algum parâmetro de conduta, estaríamos, em pouco tempo, aniquilados. Ora, cobiçar a mulher do próximo é o de menos perto de lançar dois aviões num prédio cheio de pessoas inocentes. Cometer adultério não é nada perto das mortes provocadas por homens bombas.
Pondo termo a esta exposição, vale dizer que nossos filhos, a despeito de terem sido educados segundo preceitos de alguma religião têm o direito de escolher abandoná-los. Antes de ministrar-lhes um conjunto de dogmas irracionais, melhor será propiciar-lhes o acesso ao conhecimento produzido pela ciência, pelas Artes, pela literatura, pela sociologia, pela filosofia, enfim, pelo que de melhor pôde produzir a inteligência humana até hoje.
Abrir os horizontes e não lançar sobre os olhos uma cortina de ferro – essa é a lição que aprendi com meus pais e que gostaria de transmitir aos meus filhos.




Um comentário:

  1. "A palavra Deus, para mim, é nada mais que a expressão e produto da fraqueza humana; a Bíblia, uma coleção de lendas honradas, mas ainda assim primitivas, que são bastante infantis."

    (Albert Einstein)

    Adoro e admiro sua autenticidade e coragem de mostrar à todos no que vc realmente acredita.
    Beijos, Bruninho!

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