quarta-feira, 9 de novembro de 2011

"A religião é vista pelas pessoas comuns como verdadeira, pelos inteligentes como falsa, e pelos governantes como útil" (Sêneca)


                                              O último badalar da razão
                                                   Fantasia e religião


 
A crítica à religião pode ser desenvolvida sob perspectivas diversas: pode-se valer de uma perspectiva sócio-histórica, enfatizando sua realidade cultural, sua influência no desenvolvimento da civilização, nos processos sociais, sua aliança com o poder em vários períodos da história, sua natureza ideológica, etc.; pode-se valer de uma perspectiva psicanalítica, considerando-a, como a entendeu Freud, consequência de uma neurose infantil, ou seja, como fruto do desamparo infantil no homem; pode-se também assumir uma perspectiva pela qual se critica seu próprio fundamento teológico, ou seja, pode-se empreender uma crítica à própria construção de seu discurso, avaliando as contradições internas, os disparates, os abusos da razão, os sofismas que entram a fazer parte do emaranhado do próprio sistema de noções e conceitos que lhe são caros.
Dentre os muitos argumentos apresentados para demonstrar a inexistência de Deus, ou, em outras palavras, a impossibilidade de ele existir, creio em que o argumento de ordem empírica acaba por ficar em segundo plano. Em sua forma, trata-se de um argumento simples, que se apóia na experiência: Deus não existe porque, afinal, não temos experiência sensível dele. Não podemos tocá-lo, vê-lo, ouvi-lo, cheirá-lo. A pretensa onipresença de Deus é uma farsa, um conceito sem fundamento, sem realidade, uma ideia que só faz sentido no universo da fantasia, da ficção.
Por que não acreditamos na existência de Papai Noel, lobisomem, vampiro, fadas, gnomos? Resposta óbvia: porque eles não existem. E o que significa dizer não existem? Resposta: significa dizer que não temos qualquer tipo de experiência desses seres, não há evidência de que são reais. Todos esses seres podem ser, no entanto, representados, muito embora isso não lhes garanta o atributo da existência. Alguém pode se vestir de Papai Noel (como, aliás, sucede no Natal), alguém pode se vestir de lobisomem ou de vampiro no Halloween. Mas nós, em sã consciência, não vamos dizer que existem lobisomem e vampiro.
Vou interromper neste ponto a argumentação, enfatizando apenas a ideia de que a experiência é e continuará sendo um critério decisivo para demonstrar a inexistência de Deus. Por quê? Porque ela nos permite situar esse “ser” no âmbito da imaginação ou, como procurarei mostrar, da fantasia.
Meu objetivo principal aqui é patentear a pertinência e o poder das críticas feitas pelo padre Jean Meslier, em sua sétima prova a favor da inexistência de Deus. No entanto, gostaria de fundamentar minha exposição na contribuição de Feuerbach, em sua crítica à religião, particularmente ao cristianismo.
Em termos gerais, a tese de Feuerbach consiste em mostrar que Deus não é senão resultado da projeção da essência do homem para fora de si. Ele identifica a essência de Deus com a essência do homem. E observa que Deus é resultado de um antropomorfismo. O que é isso? Consiste o antropomorfismo na aplicação de predicados humanos a Deus. É o que se exprime no dogma teológico, segundo o qual o homem é feito à imagem e semelhança de Deus. O padre Meslier, como veremos, mostrará como essa ideia entra em conflito com outras ideias associadas ao conceito de Deus.
Ora, o antropomorfismo nos revela que todas as qualidades atribuídas a Deus são qualidades inerentes ao homem; entretanto, uma vez projetadas para fora do ser do homem, elas são superlativizadas, sublimadas. Os homens amam; Deus ama infinitamente; os homens são bons; Deus é boníssimo, etc. Ocorre aqui a projeção das qualidades dos homens em um ser transcendente. Portanto, o homem se aliena, na medida em que instaura uma cisão em si mesmo. A alienação religiosa, em Feuerbach, consiste em tomar como Deus a própria essência humana, que é então separada e projetada para o exterior, tornando-a objeto de adoração, uma ilusão, um ídolo. Dá-se, então, um estranhamento de si pelo próprio homem. Disso decorre a crença disseminada segundo a qual nós homens fomos criados por Deus: o homem aparece à sua consciência como a criatura, e Deus seu criador. Essa “inversão” entre a representação e o real,, entre a ideia e o real, é, o que chamamos, com Marx, de ideologia. Essa inversão acarreta o obscurecimento da consciência dos homens. E Deus passa a ser, então, um “Ser” independente da essência do homem, capaz de “atuar” justamente na consciência, então, obscurecida. É claro que essa “atuação” não é do próprio Deus, que não é senão um produto da alienação, mas dos homens investidos de autoridade para inculcar e “ministrar” essa ideia de modo a controlar a consciências de outros homens.
A despeito da simplicidade com que expus um pouco do pensamento de Feuerbach, creio que as observações feitas até aqui são suficientes para mostrar que devemos ter em conta, para o que se seguirá, a importância do rebaixamento ontológico de Deus: Deus não é mais um ser apartado do homem e elevado, mas a própria essência humana projetada para fora de si. Deus é, com Feuerbach, objeto da razão.
Em Ateísmo e Revolta, Piva afirma, na seção Sétima Prova, que o padre ateu Meslier se esforçará por mostrar

“(...) a presunção e a falsidade das religiões com base nas contradições e nos erros acerca da existência da divindade”.
(p. 174)

Meslier insiste que o erro fundamental das religiões é assumir a existência de uma ou várias divindades às quais atribuem o papel de criar tudo que existe. Também insiste em que os clérigos e os tiranos se beneficiaram dessa convicção e dela se serviram para alcançar privilégios e poderes.
Sua crítica se orienta por três perspectivas: uma é de ordem metafísica; a outra, de ordem física; e a terceira, de ordem moral.
Depois de observar que grandes personalidades do pensamento, ao longo da História, negaram a existência de deuses, como Sócrates, Aristóteles, Pitágoras e o próprio Espinosa, Meslier questiona a própria sustentabilidade da fé dos homens religiosos. Segundo ele, o homem comum mantém sua fé por mero constrangimento e por temor à punição do inferno.

“Uma verdadeira fé, entende Meslier, nasceria de uma persuasão sem constrangimentos e de um consentimento espontâneo por parte do fiel. Uma fé obtida pelo constrangimento só prova a incerteza da existência de Deus. Se este de fato existisse, fosse onipotente e quisesse ser mesmo crível, não haveria a necessidade de persuasão mediante pregações ou de constrangimentos por meio de fábulas, bastando para isso apenas fazer-se indubitável a todos”
(p. 175)

Devemos ter em conta que Meslier escreve num contexto histórico específico, numa época em que a igreja católica exercia um poder ditatorial sobre a vida dos indivíduos; exercia, pois, um controle indiscutível sobre a consciência deles. Naquela época, a ideia de inferno era tomada como verdadeira, crível. Creio, porém, que, atualmente, a grande maioria das pessoas que seguem a religião cristã não devem ser facilmente “controláveis” e enganadas mediante a inspiração do temor ao inferno. Talvez, o fundamento da fé, hoje, seja a ignorância. Quero dizer que grande parte das pessoas que aderem a uma religião não são esclarecidas sobre os desvios, os erros, as trapaças do discurso da doutrinação. Muitas sequer leem a Bíblia, e, se leem-na, o fazem não sem a orientação de alguma autoridade eclesiástica. Quero dizer mais: assumir um ponto de vista crítico é proibido. Pensar, nessas condições, é terminantemente, proibido. Por isso, a religião se fundamenta no aviltamento da razão humana, na subordinação da razão à adoração cega, à confiança sem justificativas, sem explicações que satisfaçam o bom-senso. O próprio Jesus afiança isso, quando diz, advertindo a Tomé: “bem-aventurados os que não viram e creram” (João, 21- 29). Crer sem ver, crer sem pensar, sem refletir, sem questionar, sem entender. Apenas crer e ponto.
A fé se conserva pela ignorância e pelo sentimento de desamparo. Mesmo ao homem comum, que não se preocupa em refletir sobre isto, o absurdo é insuportável e lhe pesa na alma. A simples ideia de que sua vida não tem um propósito metafísico lhe é insuportável. Ademais, com Freud, a religião se mantém no sentimento de proteção que é comum aos homens, no limiar da infância. A religião conserva a infatilidade no homem adulto.
Meslier também questiona o fato de Deus nunca se revelar aos homens, de não lhes expor os seus propósitos e a sua verdade, de modo a acabar de uma vez por todas com suas rivalidades, guerras, conflitos. Argumenta Meslier que, se Deus se revelasse realmente, os problemas angustiantes da humanidade cessariam e a paz e a alegria, finalmente, poderiam ser alcançadas.
A passagem seguinte é ilustrativa da crítica feita por Meslier ao antropomorfismo realizado pelos homens:

“É curioso notar que o deus judaico-cristão aparece nos textos bíblicos falando a linguagem dos homens, e que estes teriam sidos criados à sua imagem e semelhança. Tal antropomorfismo aos olhos de Meslier, nada mais seria do que um artifício de má-fé utilizado por determinados homens para se estabelecerem como chefes religiosos, por conseguinte, como diretores da consciências. É o caso de Moisés, o qual atribui ao deus com quem ele jura ter conversado e dele ter recebido ensinamentos, várias características humanas”.
(p. 175)

Meslier, ironicamente, argumentará que, se os homens fossem criados à imagem e à semelhança de Deus, este deveria ser dotado das mesmas paixões humanas, ou seja, deveria reunir em si maldade e bondade. Além disso, deveria ter “um rosto humano, um traseiro e nádegas” (ibid.id.). Assim, Meslier insiste na ideia de que as divindades procedem da imaginação humana.
Outros argumentos apresentados para tentar “provar” a existência de Deus são postos em xeque por Meslier, como o da beleza e perfeição da Natureza. Por um lado, a perfeição da natureza é um ideal, já que a natureza está repleta de imperfeições; e a beleza em si não prova a existência de Deus. Para Meslier, um materialista, a natureza é auto-suficiente, capaz de por si mesma compor-se e se recompor.
O argumento da causalidade, inspirado em Aristóteles, e consagrado em São Tomás de Aquino, também é submetido à crítica por Meslier. Esse argumento parte da premissa de que: para todo efeito há uma causa. O mundo é um efeito que tem de ter uma causa. Essa causa é, para os religiosos, Deus. No entanto, ainda caberia a pergunta: quem causou Deus? Assim, se seguirmos a premissa, devemos estender a sucessão de causas até o infinito. E, se admitirmos que Deus é incriado, não tendo uma causa que o produz, então o argumento torna-se inválido, porque inválida estará sua premissa. Além disso, como mostra Meslier, por que não se poderia admitir que a causa de si mesma não poderia estar na Natureza?
Meslier insiste, como materialista, na necessidade de recorrermos à experiência, a realidade inquestionável, indubitável da matéria. Ensina Meslier

“(...) não parece ser sensato atribuir existência a uma entidade que nunca se manifesta nitidamente ou que jamais se fez palpável na nossa experiência cotidiana. Um ser assim seria absolutamente imaginário, mítico, visto que nunca foi irrefutavelmente provado. O mesmo não ocorre com a natureza e com o mundo melhor dizendo com a matéria, a qual é real, palpável, onipresente e se impõe aos nossos sentidos e consequentemente, à nossa razão, de um modo irrecusável”
(pp. 176-177)

Meslier se dedicará também a desenvolver sua filosofia materialista sempre orientada para a crítica à teologia em que se fundamenta o catolicismo. Todavia, vou-me limitar a apresentar outro argumento cujo peso é inegável. Diz respeito ao fato de que Deus nunca se manifestou de forma visível aos homens. Escreve o filósofo:

“É ridículo e absurdo dizer que um ser que seria todo-poderoso e infinitamente perfeito não teria entretanto nenhuma perfeição visível e sensível”.
(p. 179)

A ideia de que as nossas misérias, os nossos conflitos, as nossas disputas poderiam ser solucionadas pela simples aparição de Deus e revelação de seus propósitos é cara a Meslier.
O Problema do Mal, que é o problema fundamental e, até hoje indissolúvel, tanto para teólogos, quanto para filósofos, é revisitado pelo padre ateu. Meslier se vale desse problema como um forte e decisivo argumento para demonstrar a inexistência de Deus:

“Os males, as misérias, os vícios e as maldades dos homens fazem evidentemente ver que não há Ser todo-poderoso, infinitamente bom e infinitamente sábio que possa impedi-los ou isso remediar. (...) se existisse um deus infinitamente bom, ele amaria o bem, logo, protegeria e recompensaria os bons ao mesmo tempo que castigaria os maus, pois é próprio da natureza da bondade e da sabedoria realizar o bem e impedir o mal. Como o mal impera imbatível no mundo, esta é uma prova certa e evidente de que no universo não há nenhuma divindade infinitamente bondosa e sábia”
(p. 181)

O problema do Mal, que se exprime na dificuldade de sustentar a crença num ser infinitamente benevolente, chamado, no cristianismo, de Pai, e a existência inegável do mal (quer perpetrado pelos próprios homens, quer na forma do sofrimento decorrente de catástrofes naturais e doenças), traz à cena, novamente, o peso da experiência. Ora, quem tiver o mínimo de consciência histórica verá que todo o desenvolvimento da vida humana, da civilização se deu à custa de muitas vidas, em guerras e em conflitos.
Recentemente, um terremoto ocorrido na Espanha destruiu uma cidade e derrubou o campanário de uma igreja. Deus não poderia ser, ao menos, cuidadoso com o patrimônio a ele erigido? Parece que ele ignora o valor de uma edificação como a igreja, que é destinada à devoção a ele. Estranho, não acham?
Também a experiência nos mostra que, se existisse um Deus, que dele se diz justo, era esperado que a justiça fosse extensiva a todos. Mas o que sabemos é que a injustiça grassa na vida dos homens. O que vale aqui é a lei do mais forte.

“Se Deus fosse de fato perfeito, teria dado ao mundo uma ordem mais justa e também mais vigorosa, uma ordem que nenhuma maldade humana fosse capaz de alterar. De onde se segue que esse Deus não seria um bom pai, nem um pastor zeloso, tampouco um juiz judicioso. Em última análise, trata-se da retomada por Meslier do célebre raciocínio de Epicuro (...)”.
(p. 182)

O raciocínio de Epicuro parece manter-se inabalável até hoje. Ele se expressa assim:

Deus o quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode. Se Deus quer impedir e não pode, então ele é impotente; se Deus pode e não quer, então ele é mal; se não pode e não quer, ele sequer é Deus; se quer e pode, então por que a existência do mal no mundo?

Freud ensinava que a fantasia é único modo da atividade mental livre do domínio do princípio de realidade, ao qual o princípio de prazer está subordinado. No entanto, parece que a religião se apodera da fantasia e a institui como modelo de percepção, compreensão e orientação da vida. Torna os homens seres imersos nesse mundo fantasioso que, a despeito de seu domínio, não nega, por completo, o mundo real. Mas insisto: as religiões precisam, para conservar seu controle sobre a consciência, manter os homens indiferentes a toda forma de pensamento reflexivo que pusesse a nu os mecanismos de logro, as contradições, os disparates, as fábulas, e os dogmas contrários ao bom-senso.

3 comentários:

  1. As críticas à religião são pertinentes. Porém todos seus argumentos sobre a inexistência de Deus são refutáveis.
    Se você fecha uma análise como única válida(inexistência de Deus) você cria um novo dogma, uma nova fé baseada na razão. Entretanto, esta razão é produzida mediante argumentos e não em experiência empírica, pois não podem ser medidos ou comprovados. Portanto, persistem as duas hipóteses: a existência ou a inexistência de Deus.
    adriano.

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  2. Adriano, agradeço-lhe o comentário lúcido. Preciso ponderar sobre sua apreciação. E é bom que meus argumentos sejam refutáveis, pois assim deixam de revestir-se de algum sentido dogmático. Creio, e neste tocante estou de acordo com Richard Dawkins, que Deus pode ser uma hipótese científica, mas se há duas hipóteses válidas, como você apontara, a hipótese da inexistência tem mais peso quando da observação não de Deus (que é pura ideia), não tem materialidade, objetividade, mas dos fatos que entram em choque com a ideia de Deus. Observando o mundo e o seu funcionamento podemos concluir pela inexistência de Deus.

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