quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Espaço do ateísmo - ""É possível atrever-se a considerar a neurose obsessiva como o correlato patológico da formação de uma religião, descrevendo a neurose como uma forma de religiosidade individual, e a religião como uma neurose obsessiva cultural." (Freud)

                

                            Um cenário aterrorizante
                               As histórias bíblicas

O livro O que é religião, de Rubem Alves dá-nos uma contribuição fundamental para o entendimento da religião, especialmente, se entre nós, estão aqueles que professam alguma crença religiosa. À página 30, o autor - psicanalista, teólogo e filósofo - declara, com honestidade:

(...) as entidades religiosas são entidades imaginárias”.

Influenciado por sua formação em teologia, Rubem Alves, ao longo de suas colocações, procurará atenuar a identificação entre religião e imaginação. Para tanto, recorrerá a um espírito lírico para manter a relação entre religião e fantasia (palavra que o autor também usa para se referir à religião), sem que agrida o sentimento dos religiosos, que, evidentemente, jamais consentiriam nisso. Para eles, religião não se identifica com imaginação, tampouco com fantasia.
De qualquer modo, a contribuição do autor consiste em transpor os santos, os deuses (ou o deus), os anjos, demônios do plano da realidade para o plano da imaginação. Todos são figuras criadas, produzidas pela imaginação humana.
Ocorre que, para a consciência religiosa, dá-se a inversão entre o real e o imaginário, de sorte que este último passa a ser o padrão de orientação da própria consciência dos adeptos. Em outras palavras, o imaginário passa a ser real.
Será necessário distinguir realidade e imaginação? Ou nos bastará o senso-comum, nesse tocante?
Há tempo, tenho cogitado da ideia de escrever um texto em que eu pudesse trazer à cena algumas reflexões sobre a origem das religiões e a importância dos deuses (como entidades imaginárias) na vida dos homens. Mas esse empreendimento intelectual deverá ser protelado, em função de meu interesse, aqui, em trazer à consciência do leitor uma das histórias horripilantes que figuram na Bíblia.
Certa vez, confessei suspeitar da cumplicidade entre deus e o diabo. Essa cumplicidade já se verificava no mito do Gênesis, em que a serpente, muito astuta, persuade Eva a comer do fruto proibido. Na verdade, Eva, uma mulher, provou do fruto da árvore do conhecimento; nesse sentido, devemos a ela a libertação da espécie humana da ignorância.
Essa cumplicidade, todavia, se verifica também no livro de Jó. Em primeiro lugar, é Deus que causa o sofrimento de Jó, a fim de testar a sua fé. Deus lhe tira tudo: seus filhos, os bens conquistados com seu esforço e suor. Deus o atormentou e o submeteu à dor, à agonia, às piores aflições. O leitor poderá se perguntar: como pode um ser infinitamente bondoso causar sofrimento a um homem tão justo e inocente como Jó? O Deus do Antigo Testamento é uma personagem terrível, se bem que não menos que no Novo Testamento, já que ele reserva aos ímpios um inferno de tormentos e dores. Está lá nas palavras atribuídas a Jesus. Leia.
Interessa aqui ver que Satanás não é, na história de Jô, um adversário de Deus. É seu aliado. Satanás faz uma aposta com Deus. Diz Satanás a Deus que, a pesar de Jô ser um homem fiel a ele, deixará de sê-lo, caso se veja em grandes dificuldades. Deus, vaidoso, consente em medir a fé de Jó. Trata-se de um Deus imoral.
Em O Problema com Deus (2008), Ehrman escreve:

“O próprio Deus tinha provocado a infelicidade, a dor, a agonia e a perda que Jó experimentara. Não é possível culpar apenas o Adversário. E é importante lembrar que o que essa perda implica: não apenas perda de propriedade, o que já seria bastante ruim, mas uma devastação do corpo e o selvagem assassinato dos dez filhos de Jó. E para quê? “Por nada” – a não ser provar a Satanás que Jô não iria amaldiçoar Deus mesmo que tivesse todo o direito de fazê-lo (...) Esse obviamente é um Deus acima, além e em nada submetido aos padrões humanos”
(p. 130)

Que concluir daí? Ora, em primeiro lugar, que Deus é perverso; em segundo lugar, que ele está mancomunado com Satanás para testar a obediência daqueles que dizem ter fé nele. Claro, um Deus inseguro, que precisa certificar-se de que ainda é estimado e temido.
Segundo Ehrman, a história de Jó é mais uma dentre as que buscam justificar a existência do sofrimento no mundo, sem embargo da crença na existência de um ser infinitamente benevolente e todo-poderoso. Nessa história, a causa do sofrimento consiste num teste de Deus, com vistas a se assegurar de que um de seus fiéis, talvez o homem mais devotado, que era Jó, realmente manteria firme sua fé. O ensinamento aqui é que os seguidores de Deus devem-se manter firmes em face do mais pungente sofrimento, mesmo que esse sofrimento seja provocado pelo próprio Deus, por mero capricho. Resignação, em suma, é a “virtude” hebraica então ensinada; aliás, não deixará de ser uma “virtude” cristã.
Se, em Jó, o diabo ou satanás era um aliado de Deus, ensina-nos Ehrman que foram os “apocaliptistas” (aqueles que professavam ou escreveram sobre o apocalipse) os responsáveis por atribuir ao diabo o papel de adversário de Deus.

“(...) os apocaliptistas judeus tinham princípios básicos.
(1) dualismo. Os apocaliptistas judeus sustentavam que havia dois componentes fundamentais da realidade em nosso mundo, as forças do bem e as forças do mal. Controlando as do bem, claro, estava o próprio Deus. Mas Deus tinha um adversário pessoal, um poder maligno que controlava as forças do mal – Satanás, o Demônio. Antes vimos que no livro de Jó Satanás não era o arquiinimigo de Deus, mas um membro de seu conselho divino, que se reportava a Deus como os outros “filhos de Deus”. É com os apocaliptistas judeus que Satanás assume novo caráter e se torna o arquiinimigo de Deus, um poderoso anjo caído expulso do céu e que produz destruição aqui na terra, opondo-se a Deus e a tudo que ele representa. Foram os antigos apocaliptistas judeus que inventaram o Diabo judaico-cristão”
(pp. 188-189)
(grifo meu)

Na visão apocalíptica, o mundo está repleto de forças demoníacas. O mundo é, pois, o reino do mal. Na verdade, o mundo é um cenário onde se dá um aterrorizante combate cósmico entre o Bem (que provém de Deus, embora o próprio Deus transite entre o bem e o mal) e o mal (provindo do Demônio). Os homens sucumbem ao poder do Mal. E, estranhamente, Deus delegou o governo do mundo às forças do mal. Vejamos o que nos ensina Ehrman a esse respeito. Devo lembrar que o autor se baseia no texto das Escrituras.

“O mundo está cheio de forças demoníacas aliadas contra Deus e seu povo; é um palco de um contínuo conflito cósmico. O sofrimento humano é criado durante a batalha, à medida que as forças do mal no mundo abrem caminho para seres humanos relativamente impotentes, que, como consequência, sofrem horrivelmente. Por alguma razão desconhecida, Deus entregou o controle deste mundo às forças do mal – por enquanto. Dor, infelicidade, angústia, sofrimento e morte são o resultado”.
(p. 189)

Para quem conhece o mínimo do pensamento de Marx, é lugar-comum dizer que a religião é uma forma de alienação; na verdade, para ele, o efeito de uma alienação mais fundamental, ou seja, a alienação do proletariado. Convém entender essa realidade no próprio discurso apocalíptico. Ora, dizer que o sofrimento é resultado da ação de forças maléficas sobre as quais os homens não têm controle e às quais não podem se opor, ou contra as quais não podem lutar, é fazê-los esquecer que o seu sofrimento é resultado das condições reais de existência em que vivem. Ou seja, o sofrimento não é provocado por forças sobrenaturais maléficas – isso é engodo, logro – o sofrimento é resultado das condições de opressão, exploração em que os homens daquele tempo viviam. Há uma estratégia ideologicamente orientada, maquinada discursivamente, com vistas a ludibriar, enganar, pelo controle da consciência, de modo a fazer com que os homens crédulos ignorem o fato de que seu sofrimento decorre das próprias condições injustas e desumanas de sua existência. São seus opressores que causam sofrimento, e não forças malignas.
A título de curiosidade, o próprio Jesus, ao declarar que o povo deveria continuar a pagar os impostos cobrados pelo governo romano (na famigerada frase “Dê a César o que é de César; e a Deus, o que é de Deus”), não ensina senão a resignação, o conformismo, a aceitação da exploração, da opressão, do jugo. Na verdade, ele diz: mantenham-se firme na ilusão e resignem-se às condições de opressão.
Terremotos, catástrofes, doenças, pestes e toda sorte de fenômenos que causam sofrimento nos homens são justificados pela ideia de que seus causadores são as forças malignas. Mas, acalmem-se: não é para sempre, é claro. Deus haverá de intervir e, como um super-herói, derrotará as forças do mal; afinal, o bem sempre vence o mal!
Quando penso na quantidade de sofrimento que recai sobre os homens, quando penso na concretude do mal no mundo, não posso aceitar a implicação da crença na existência de Deus: crer em Deus implica crer no demônio. Pelo menos, é esse dualismo que a doutrina judaico-cristã nos ensina. Já nos basta o mal de todos os dias, quer causado pelo próprio homem, quer acarretado pelos fenômenos naturais. Para que acreditar na existência de alguma entidade maléfica responsável pela maldade e sofrimento existentes?
Ademais, se Deus é todo-poderoso e infinitamente benevolente, por que ele não acaba com o demônio e, é claro, extingue de uma vez por todas o inferno?
A história de Deus e demônios é uma história horripilante. Uma história aterrorizante da fértil e (não raro, perniciosa) imaginação religiosa humana. Mas, é claro, interessa aos doutos da religião que seus fiéis a ignorem e, se por acaso, se dispuserem a ler a Bíblia, o façam de acordo com a interpretação consagrada pela igreja.
Qualquer pessoa, minimamente esclarecida, reconhecerá, naquelas histórias e em outras tantas ficções bíblicas, as imposturas, as contradições, o contra-senso e uma dose de terror, que faz qualquer criança ter pesadelos.






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