segunda-feira, 7 de novembro de 2011

"O eu é tanto a certeza de ser o que se é quanto a ignorância do que se é". (J. D. Nasio)

                           O escondido

Hoje, ocupei-me com a leitura, concentrado nas páginas de vários livros e abstraído de tudo ao meu redor. Assim permaneci por um tempo cuja passagem escapou-me à consciência. Apenas me deixei estar, acomodado na cama, rodeado de livros. A certa altura, um trecho me acalentou alguns pensamentos, que os exponho abaixo na forma de poesia:

Você quer uma palavra
Que justifique sua vida
Esta palavra mesma
Que escorre de sua boca
Engasgada em sua goela
Você está faminta de palavras
Tem-nas em abundância
Mas não se cansa de procurá-las
De devorá-las
De experimentá-las
Você está desejoso de palavras
Que lhe acarinhem
A alma
Expulsa-as da sua boca
Em vão
E delas colhe a eternidade impenetrável
Você tem sede de palavras
E as tem em abundância
Mas vive na secura
Na estiagem
Do vocabulário
Como elas lhe escapam!
Na carência da sua existência
Tão empobrecida
De palavras

(BAR)


Não encontrei um título para este poema (aceito sugestões). Noutro momento, lendo sobre a contribuição filosófica de Aristóteles para a compreensão da linguagem, formaram-se-me os seguintes pensamentos:

Desembrulhe uma palavra
Digamos:
Casa
E o que encontrará?
Um conceito
E
Uma estrutura fônica
Mas esse conceito
Só é apreendido
Traduzível
Com palavras
Conclusão:
A palavra desembrulhada
É ainda palavras

Continuarei a escrever, sem esperar que o leitor se esforce por construir uma coerência para o que está lendo. De passagem, deparou-se-me este excerto do livro Meu corpo e suas imagens, do psicanalista francês Juan David Nasio. À página 55, escreve:

“(...) o que é o eu? O eu é um sentimento, o sentimento de existir, o sentimento de ser você. Um sentimento eminentemente subjetivo porque fundado sobre o vivido igualmente subjetivo de nossas imagens corporais. Considero, pois, o eu uma entidade essencialmente imaginária cunhada por nossas ignorâncias, erros e miragens que confundem a percepção que fazemos de nós mesmos. Logo, Lacan qualificava o eu como “lugar do desconhecimento”. Sentir e viver meu corpo e vê-lo em movimento proporciona-me a certeza imediata de ser eu mesmo, certeza que, não obstante, esconde minha ignorância do que sou e de onde venho. O eu é tanto a certeza de ser o que se é quanto a ignorância do que se é. Agitado pela profusão de minhas sensações internas e pela visão de meu corpo, sei que existo mas não sei que sou. Decididamente, as imagens mentais que forjamos de nosso corpo, substrato de nossa identidade, são imagens subjetivas e deformadas que falseiam a percepção de nós mesmos”
(...) Na verdade, nosso eu é um conjunto de imagens de si mutantes e frequentemente contraditórias”.
(...)

Esse trecho aturdiu-me. Por isso, precisei estampá-lo aqui para nele me deter um pouco. Para tanto, elenco abaixo as ideias que me chamaram atenção:

1ª o eu é um sentimento; sentimento de existir;

2ª uma entidade imaginária, produzida por nossa própria ignorância em relação ao que somos;

3ª o eu é contraditório e conflituoso, já que é formado (na base de imagens de si) pela certeza de ser o que é e, ao mesmo tempo, pela ignorância do que se é;

4ª finalmente, o eu é produto do falseamento das percepções que fazemos de nós mesmos.

Para mim, isso é bastante claro. Essas quatro ideias explicam de modo satisfatório a sensação de que nós nunca (ou quase nunca) conseguimos alcançar as profundezas de nosso ser mesmo. O eu é o escondido para nós; ele nos escapa, porque não resulta senão de interpretações distorcidas que fazemos de nós mesmos.
O texto destaca o caráter subjetivo da produção imaginária do eu. O sentimento do eu é subjetivo. Mas não se considera o papel do outro na construção desse eu. O outro também constrói, na base de imagens, o eu do outro. Existem imagens recíprocas, que se constroem na interação pela linguagem. A imagem que o outro faz de mim (imagem no sentido de julgamentos a respeito de meu modo de ser, de me comportar, atribuição de valores a minha pessoa) é também parte dessa construção imaginária do eu.
Também as quatro ideias sustentam a tese da eterna contradição humana, que Machado já havia anunciado em um de seus contos. Pergunto-me qual o caminho para alcançarmos (no sentido de apreender) alguma parcela desse iceberg que é o eu. Talvez, nunca cheguemos a conhecer verdadeiramente esse eu que nos escapa, que nos está oculto, porque o que sentimos dele, o que apreendemos dele não é senão sua sombra, suas imagens. Para além das imagens, há o ser (eu) inacessível. O eu é o lugar da ignorância de si, do desconhecido.
Isso explica o conflito, as crises emocionais, a ruína da alma, o desespero, o sentimento de vazio do ser, de abandono, o medo da solidão, o medo de não ser amado, de ser discriminado, de ser sobrepujado. O eu que se esconde em mim vem-me à tona, ainda que sob a penumbra, sempre que busco nas palavras algumas luzes. Experienciar-me verbalmente é um caminho que encontro para não me perder por completo. Entendam: quando me experiencio verbalmente, consigo situar-me no mundo, consigo confrontar-me com um outro (ainda que imaginário) que assumo como interlocutor. O sentimento do eu não é possível sem o sentimento do outro. Parece-me que a construção imaginária do eu é, na verdade, uma construção intersubjetiva, da qual participam dois eus que interagem.
A palavra faz-me saltar este eu que muitos só conseguem alcançar a superfície. O meu espanto diante da vida é reconhecer-me tão claramente no espelho das palavras, que nada têm de transparentes, já que são opacas. Este eu impenetrável é um núcleo duro em torno do qual giramos continuamente, até ficarmos tontos e dormir, para no dia seguinte continuar nosso giro incansável à procura de nós mesmos e de nossa situação no mundo.
O eu, que não existe em si mesmo, que é dependente, porque sua existência é social, precisa buscar aproximações com outros eus que girem em torno de si sem se desviarem desse centro; a estes, que se desviam, chamamos de desvairados, atormentados, melancólicos, ou deprimidos, dependendo da natureza e gravidade desse desvio.
A loucura parece consistir na ruptura dessa procura incessante pelo o eu que nos escapa; desse eu que participa de um mesmo quadro social, convencional, consensual do real; giremos em torno desse eu, a fim de nunca nos perder no emaranhado das imagens que fazemos de nós mesmos.

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