sábado, 12 de novembro de 2011

A bíblia é uma obra humana

                       


                            O que você precisa saber
                          A Bíblia é obra humana

Ah! Quão deleitoso é o esclarecimento! Inestimável é o valor do conhecimento. Gostaria de que meus leitores pudessem experimentar o sentimento de euforia intelectual, o regozijo, a doçura decorrente do saber! Quero compartilhar com vocês o meu contentamento e entusiasmo.
Eu vou procurar ser breve, prometo-lhes. No entanto, é necessário contar-lhes sobre algumas circunstâncias que ajudam a explicar meu entusiasmo.
Quando ainda lecionava numa escola para turmas do ensino médio, um aluno, muito aplicado e um dos poucos quietos e estudiosos que ali havia, presenteou-me com um livro pequeno, cujo título (O Homem em busca de Deus), a princípio, levou-me a acreditar que se tratava desses livros destinados a fiéis de sua igreja, cheio de doutrinação. No entanto, para a minha grata surpresa, o livro reúne estudos sobre as diversas formas de religiões no mundo, incluindo mitologia, magias, espiritismo, além do cristianismo, budismo, judaísmo, islamismo, entre outras. Mais interessado fiquei, quando me dei conta de que no limiar encontravam-se informações sobre as origens da religião, embora as teorias que buscavam explicar como surgiram as religiões sejam muito variadas e pouco críveis.
Pode parecer que, muitas vezes, eu me concentre em certos temas e os revisito, como sucede com os temas sobre religião e Deus. Todavia, a impressão não revela o fato de que minhas leituras e interesses intelectuais são bem variados e o acervo de livros que tenho em minha casa abriga estudos relativos à Linguística, à filosofia, à teologia, à sociologia, à psicanálise, à psicologia, à antropologia e à literatura.
Se me perguntarem quantos livros leio por ano, eu responderei não poder precisar o número. Leio muitos, porque eu não leio um de cada vez; leio vários, embora, é claro, não os leia completamente; porque leio capítulos de um, capítulos de outro. A maioria dos livros que tenho eu já li, parcialmente.
No ano passado, me tornei um consumidor compulsivo de livros. Comprava-os em penca. Ultimamente, porém, tenho cessado de comprá-los em grande quantidade, simplesmente porque não há mais espaço onde colocar tantos livros.
Um dos últimos livros que comprei é de Bart D. Ehrman, o mesmo autor de O problema com Deus, livro já referido em outro texto postado aqui. O livro intitula-se Evangelhos perdidos – as batalhas pela escritura e os cristianismos que não chegamos a conhecer (2008). É um pouco sobre este livro que quero lhes contar. Comecei a lê-lo hoje, e só terminei de ler a introdução, que já nos permite situar-nos nas reflexões do autor. Sugiro a leitura que, como se verá, interessará a todo aquele que não faz calar o entendimento, que não se resigna à ignorância imposta e que se vale dessa ignorância como o fez Sócrates: reconheceu-a para conhecer.
Leiamos com atenção. Imagine que tudo o que você sabe sobre a Bíblia, ou seja, todos os livros que a compõem, particularmente, os 27 livros do Novo Testamento, estivessem ali em virtude de uma série de disputas e falsificações e que outros tantos evangelhos foram rejeitados, excluídos, perdidos. Imagine que o que sabemos sobre o Cristianismo hoje poderia ser diferente e que, na verdade, há e houve muitos Cristianismos. Não há prova mais cabal de que a Bíblia é um produto humano, foi escrita por homens e seus textos exprimem apenas uma visão vitoriosa do Cristianismo “certo”.
Doravante, eu vou referir trechos que elucidam os objetivos do autor, bem como as questões com as quais ele se defrontará em sua discussão. No limiar da Introdução, escreve-nos:

“Deve ser difícil imaginar um fenômeno religioso mais diversificado do que o Cristianismo moderno. Há missionários católicos romanos em países em desenvolvimento que se devotam à pobreza voluntária pelo bem dos outros, e televangelistas que dirigem programas de doze passos para assegurar sucesso financeiro.Há presbiterianos na Nova Inglaterra e manipuladores de serpentes Apalaches. Há sacerdotes gregos ortodoxos comprometidos com o serviço litúrgico de Deus, repleto de orações, encantamentos e incenso, e pregadores fundamentalistas que vêem a liturgia da Alta Igreja anglicana como uma invenção demoníaca. (...)”
(p. 17)

O autor se pergunta se deveremos, tendo em conta essa diversidade do cristianismo moderno, falar de um ou vários cristianismos. O fato é que houve outras formas de cristianismo que não chegaram ao nosso conhecimento, conforme se pode ler abaixo:

“A maioria dessas antigas formas de Cristianismo é desconhecida no mundo atual, uma vez que acabaram sendo reformadas ou extintas. Como resultado, os textos sagrados que alguns cristãos antigos usavam para apoiar suas perspectivas religiosas vieram a ser proscritos, destruídos ou esquecidos – perdidos, de uma forma ou de outra. Muitos desses textos diziam-se escritos pelos seguidores mais próximos de Jesus. Seus opositores declaravam que eles haviam sido falsificados”.
(p. 18)

No fim da página 18, o autor iniciará a subseção intitulada de As variedades do Cristianismo antigo, com vistas a nos mostrar a variedade de crenças que existia entre os cristãos dos séculos II e III. Leiamos o trecho em que ele nos conta sobre esse fato:

“Nos séculos II e III, havia cristãos que acreditavam que Deus criara o mundo. Entretanto, outros acreditavam que esse mundo tinha sido criado por uma divindade subordinada, ignorante (Por que outro motivo seria o mundo tão cheio de miséria e dificuldade?) E ainda outros cristãos pensavam que era pior do que isso, que este mundo era um erro cósmico criado por uma divindade má como um lugar de prisão, para capturar humanos e submetê-los à dor e ao sofrimento”
(grifo meu)

Na página 19, o autor prossegue, contando-nos:

“Nos séculos II e III, havia cristãos que acreditavam que a Escritura Judaica (o “Velho Testamento” cristão) fora inspirada pelo único e verdadeiro Deus. Outros acreditavam que fora inspirada pelo Deus dos judeus, que não era o Deus único e verdadeiro. Outros acreditaram que fora inspirada por uma deidade maligna. Outros, ainda, acreditavam que não fora inspirada”.

Ehrman continuará seu relato, mostrando-nos que as crenças relativas à natureza de Jesus também variavam. Houve aqueles que acreditavam que Jesus era humano e divino; houve, por outro lado, os que acreditavam que ele era apenas divino e não humano; houve ainda aqueles que acreditavam que Jesus era um homem tal como qualquer outro, mas que teria sido escolhido por Deus para filho. Segundo essa crença, Jesus não era divino por si mesmo.
Naqueles séculos, também houve cristãos que acreditaram que a morte de Jesus trouxe a salvação do mundo; outros, porém, acreditaram que sua morte não tinha nada que ver com salvação. Finalmente, houve alguns mais que acreditavam que Jesus nunca morrera.
Agora, com a palavra, o autor:

“Como poderiam algumas dessas visões até mesmo ser consideradas cristãs? Ou, colocando a questão de forma diferente, como as pessoas que se consideravam cristãs poderiam defender tais crenças? Por que não consultavam suas Escrituras para ver que não eram 365 deuses, ou que o verdadeiro Deus havia criado o mundo, ou que Jesus havia morrido? Por que elas simplesmente não liam o Novo Testamento?”
(p. 19)

É necessário um esclarecimento. Naquela época, houve pessoas que acreditavam que o número de deuses era de 365. Também houve outros que declaravam haver dois; e outros tantos, que havia trinta.
O autor responderá à questão com que encerra sua exposição acima referida, conforme se pode ler em:

É porque não havia Novo Testamento. Com certeza, os livros que foram finalmente reunidos no Novo Testamento haviam sido escritos em torno do século II, mas eles não tinham sido ainda agrupados em um cânone autorizado e amplamente reconhecido de Escritura. E havia também outros livros tidos como autorias igualmente impressionantes – escritos pelos apóstolos terrenos de Jesus”.
(p. 19)
(grifo meu)

A subseção seguinte será destinada à apresentação dos chamados Evangelhos apócrifos, ou seja, os Evangelhos que não passaram pelo crivo da igreja. Muitos se perderam. Leiamos o que o autor – uma autoridade nos estudos sobre o Cristianismo e a Igreja primitiva – tem a nos ensinar:

“Os Evangelhos que vieram a ser incluídos no Novo Testamento foram todos escritos anonimamente; somente algum tempo depois é que foram chamados pelos nomes de seus reputados autores, Mateus, Marcos, Lucas e João. Mas na época em que esses nomes estavam sendo associados aos Evangelhos, outros livros da mesma espécie tornavam-se disponíveis, textos sagrados que eram lidos e reverenciados por diferentes grupos cristãos em todo o mundo: um Evangelho, por exemplo, que declarava ter sido escrito pelo discípulo mais próximo de Jesus, Simão Pedro; um outro de seu apóstolo Filipe; um Evangelho supostamente escrito pela discípula de Jesus, Maria Madalena; um outro do próprio irmão gêmeo de Jesus, Dídimo Judas Tomé”
(p. 20)

O que se vê é que o Novo Testamento não é senão produto de escolhas, exclusões, falsificações deliberadamente feitas por escribas da época. Leiamos mais um trecho sobre a “montagem da Bíblia”:

“Quando o Novo Testamento foi finalmente reunido, incluía Atos, um relato das atividades dos discípulos após a morte de Jesus. Entretanto, havia outros Atos escritos nos primeiros anos da igreja: os Atos de Pedro e de João, os Atos de Paulo, os Atos da companheira de Paulo, Teda, e outros. Por que estes não foram incluídos como parte da Escritura?
(ibi.id.)
(grifo meu)

Não há certeza de que fora realmente Paulo que escreveu as epístolas que lhe são atribuídas. Os estudiosos ainda discutem a autenticidade da autoria. Interessa-nos saber também que houve outras cartas enviadas por “Paulo” (ou quem quer que as tenha enviado) ao filósofo Sêneca e que não foram incluídas nas Escrituras.
Também o livro do Apocalipse inclui apenas os textos escritos por alguém chamado João, mas não inclui os supostamente escritos por Simão Pedro (p. 21).  Por que as autoridades eclesiásticas não incluíram os de Pedro no cânone? Conclui o autor, no tocante à constituição do que hoje sabemos ser a Bíblia:

“Hoje sabemos que em alguma época, em algum lugar, todos esses livros não-canônicos, assim como muitos outros, foram reverenciados como sagrados, inspirados e escriturais. Alguns deles nós temos hoje; outros, conhecemos apenas pelo nome. Somente 27 livros cristãos primitivos foram enfim incluídos no cânone, copiados por escribas através dos tempos, finalmente traduzidos para o inglês [e português], e agora estão nas estantes de praticamente todos os lares dos Estados Unidos [e do Brasil]. Outros livros vieram a ser rejeitados, escarnecidos, amaldiçoados, atacados, queimados, completamente esquecidos – perdidos”.
(p. 21)
(grifo meu)

A subseção que se seguirá encerra uma breve avaliação sobre as consequências de todo esse processo histórico de exclusão, reescritura e incorporação de textos sagrados. O autor observa que houve uma perda: a grande diversidade do Cristianismo dos primeiros séculos. O ganho diz respeito à confiança no Cristianismo “certo”. O que aprendemos é que o Cristianismo e a Bíblia, que o encerra como doutrina, foram produtos de conflitos, disputas entre grupos. Leiamos o que se segue:

“E então como um golpe de misericórdia, esse grupo vitorioso reescreveu a história da controvérsia, fazendo parecer que não tinha havido qualquer conflito, declarando que suas próprias visões sempre tinham sido aquelas da maioria dos cristãos em todos os tempos, desde a época de Jesus e seus apóstolos, e que sua perspectiva, de fato, sempre tinha sido “ortodoxa” (isto é, a “crença correta”), com seus oponentes no conflito, utilizando os outros textos escriturais, sempre representando pequenos grupos dissidentes, engajados em iludir pessoas com “heresias” (cujo significado é, literalmente, “escolha”; um herege é alguém que deliberadamente escolhe não acreditar nas coisas certas”).
(p. 22)

Eu sou, então, um herege. Ainda hoje os homens disputam, pelejam para saber quem está mais iludido, se os cristãos ortodoxos, os católicos, os protestantes, etc.
Finalmente, o autor nos lança a pergunta:

“E se tivesse sido diferente? E se outra forma de Cristianismo tivesse se tornado a dominante, em vez da que venceu?”
(p. 23)

E prosseguirá, na página seguinte:

“Antecipando essas discussões, posso destacar que, se alguma outra forma do Cristianismo tivesse vencido as primeiras batalhas pelo domínio, as conhecidas doutrinas do Cristianismo talvez jamais tivessem tornado a crença “padrão” de milhões de pessoas, inclusive a crença de que há um Deus, de que ele é criador, de que Cristo, seu filho é tanto humano quanto divino. A doutrina da Trindade poderia jamais ter se desenvolvido. Os credos ainda professados nas igrejas de hoje poderiam jamais ter sido inventados. O Novo Testamento, como uma coleção de livros sagrados, talvez jamais tivesse chegado a existir. Ou poderia ter chegado a existir com um conjunto totalmente diferente de livros, inclusive a Epístola de Barnabé em vez da Epístola de Tiago, ou o Apocalipse de Pedro em vez do Apocalipse de João. Se algum outro grupo tivesse vencido; se um grupo diferente tivesse saído vencedor, os cristãos poderiam ter tido apenas o Velho Testamento (o qual não teria sido chamado de “Velho” Testamento, uma vez que não teria havido o “Novo”)
(p. 24)

Acrescenta que os primeiros conflitos cristãos foram determinantes não só da constituição interna da religião, como também trouxe efeitos vitais para a própria história da civilização ocidental. Não custa lembrar que a cultura ocidental formou-se a partir da confluência de duas outras culturas: a greco-latina e a judaico-cristã.

“É possível imaginar que, se a forma do Cristianismo que se estabeleceu como dominante não o tivesse feito, o Cristianismo nunca teria se tornado a principal religião do mundo dentro do Império Romano. Se isso tivesse acontecido, o império talvez jamais adotasse o Cristianismo como sua crença oficial, e ele nunca teria se tornado a religião dominante na Idade Média européia, chegando até o Renascimento, a Reforma e os dias de hoje”
(p. 24)

Fico tentado a lançar uma observação impregnada de uma ironia ateísta. No entanto, meu propósito foi trazer à consciência dos meus leitores o fato incontestável de que a Bíblia é obra dos homens. Além disso, deve-se ter em conta que os relatos dos evangelhos foram produzidos muitos anos depois da morte de Jesus. Desconfiemos, portanto, de sua veracidade e fidelidade aos acontecimentos relatados; além disso, não há acordo entre os evangelistas sobre vários acontecimentos da vida de Jesus, como, por exemplo, o lugar onde teria nascido. Insisto: religiões são produtos culturais, portanto, obras humanas e não de deuses; esses são entidades imaginárias, produzidas pelos homens.
Quem poderá garantir que o que está na Bíblia é realmente testemunho dos prodígios de Deus, que se revelava através de Jesus? Ficções, mitos, crendices... Tudo isso está na Bíblia.
Mas ainda me inquieto com a ideia de que Deus bem que poderia pôr fim às disputas, não? Poderia ter ele bradado quem estava, afinal de contas, com a razão. Estranhamente se manteve em silencio durante todos esses séculos!

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