Em cena: a pressuposição
Sobre moluscos e
homens
Piaget, antes de se
dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os
moluscos dos lagos da Suiça. Os
moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos
deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas e há
muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência
extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não
se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e lindas! - que os
protegem da fome dos predadores. Ignoro
detalhes da biografia de Piaget e não
sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar
para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de
interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de
molusco chamado “homem”. Se é que
você não sabe, digo-lhe que muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos
animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores.
Comparados com os outros animais nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais. Eles
dispõem apenas do seu corpo para
viver. E o seu corpo lhes basta.
Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se,
saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam, disfarçam-se, comem,
reproduzem-se. Nós, se abandonados na natureza apenas com o nosso corpo,
teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como
herança, um corpo molengão e inadequado que, sozinho, não é capaz de resolver
os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, “é a
necessidade que faz o sapo pular”. E
digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa
força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos
moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de
sobreviver. O desenvolvimento do pensamento, mais que um simples processo
lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como
ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu.
O corpo aprende para viver. É isso
que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas,
possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por
aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não
têm uso. Somente os idiotas
armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso. É o desafio
vital que excita o pensamento. E
nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos
bíblicos dão ao ato sexual o nome de “conhecimento”... Sem excitação a
inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há
que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de “burrinho”...
Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência
se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é
vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a
inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos “programas” escolares se baseiam no pressuposto de que os
conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só
acontece em resposta aos desafios vitais que estão acontecendo no momento
(insisto nessa expressão “no momento” – a vida só acontece “no momento”) da
vida do estudante. Isso explicaria o
fracasso das nossas escolas. Explicaria
também o sofrimento dos alunos. Explicaria a sua justa recusa em aprender. Explicaria
sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Recordo a
denúncia de Bruno Bettelheim contra
a escola: “Fui forçado (!) a estudar o
que os professores haviam decidido o que eu deveria aprender – e aprender à sua
maneira...” Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um
conhecimento morto. Somente os
necrófilos se excitam diante de cadáveres.
Acontece, então, o
esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca.
Esquecido porque a memória é
inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e
não podem ser usados. Ela funciona
como um escorredor de macarrão. Um
escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil
e prazeroso. Se foi esquecido é porque
não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais (
inclusive os vestibulares ) que se fazem para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por
serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a
verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito
o seu trabalho. O aprendido é aquilo
que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à
inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de
transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o
que você teve de aprender? Duvido
que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor de português se saia bem em matemática,
física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares.
Eu não passaria. Então, por que essa
violência que se faz sobre os estudantes?
Ah! Piaget! Que fizeram com o seu
saber? Que fizeram com a
sua sabedoria? É preciso que os
educadores voltem a aprender com os moluscos...
Nesta oportunidade, vamos
estudar os mecanismos de construção da teia textual, ou seja, da estrutura do
texto. Avaliarei o modo como o autor, se valendo dos recursos que a língua lhe
disponibiliza, produziu seu texto a fim de satisfazer os propósitos previstos
por seu projeto de dizer. Cabe, porém, veicular os seguintes pressupostos em
que assenta a análise cuja realização eu me proponho:
1º pressuposto – Toda atividade
linguística envolve textos que são produzidos
com uma dada intenção, em dadas circunstâncias, para o atingimento de
determinados objetivos;
2º pressuposto – Todo texto é produto de uma atividade
social – a linguagem – e, como tal, orquestra ações linguísticas que servem à
produção de um determinado efeito sobre o interlocutor;
3º pressuposto – O processamento textual deve ser pensado
a partir de duas perspectivas: a do produtor e a do interpretante. Do ponto de
vista do produtor, o processamento textual consiste num tipo de atividade, num
só tempo, linguística e socio-cognitiva, durante a qual o produtor, valendo-se
de um vasto repertório de formas de conhecimentos armazenados em sua memória,
de uma série de estratégias sociocognitivas (p.ex. a mobilização dos mecanismos de
referenciação) e elaborando hipóteses sobre os conhecimentos supostamente
compartilhados com o sujeito interpretante, vai construindo seu texto segundo
um projeto de dizer. Do ponto de vista do interpretante, o processamento
textual também é um tipo de atividade, mediante a qual quem interpreta atua
cognitivamente sobre o material linguístico, também se valendo de estratégias
cognitivas (ex. produzindo inferências ancoradas na relação entre informações
textualmente dadas e informações pressupostas como parte dos seus conhecimentos
prévios), para, assim, reconstruir a intenção do produtor e produzir um sentido, uma leitura.
4º pressuposto - ler ou produzir um sentido são sinônimos.
Ler não é decodificar sinais linguísticos organizados numa cadeia sintagmática.
A leitura pressupõe a interação entre autor-texto-leitor. É uma atividade
durante a qual o leitor está, a todo momento, atuando por meio de atividades de
inferenciação , as quais envolvem a
utilização de seu conhecimento de mundo e o estabelecimento de uma relação
não-explícita entre dois segmentos textuais ou entre segmentos textuais e os
conhecimentos indispensáveis à produção da leitura.
5º pressuposto – a argumentatividade
é uma qualidade inerente à linguagem. Toda atividade linguística é, de
algum modo, argumentativa, na medida em que visa a produzir uma reação ou
efeito no interlocutor.
Baseando-me nesses cinco pressupostos, vou empreender a
análise de algumas das estratégias de que se valeu o autor de Sobre moluscos e homens para produzir um
sentido (o produtor também produz um sentido, já que ele elabora um projeto de
sentido, através de seu texto, e espera que o leitor o reconheça e o
aceite). Essas estratégias podem ser
divididas em cognitivas, textuais e sociointeracionais. Todos os tipos de estratégias estão,
evidentemente, presentes quando da produção/ interpretação do texto. No
entanto, não vou me preocupar aqui em pormenorizá-las. Basta-me notar que as
estratégias textuais estão relacionadas à organização da informação, à
formulação do próprio texto, aos mecanismos de referenciação e ao “balanceamento”
entre informações explícitas e informações implícitas (Koch, 2003).
Os fenômenos discursivos que considerarei são os seguintes
(na ordem de análise):
1.
pressuposição;
2.
referenciação;
3.
sequenciação
textual;
4.
modalização;
5.
intertextualidade
e polifonia.
Nesta oportunidade, no entanto, só me ocuparei com o
fenômeno da pressuposição:
Uma maneira clara e simples de começar a abordar um tema
tão complexo como este é dizer que, em toda atividade linguística, comunicamos
mais do que aquilo que efetivamente dizemos. Todo texto (vale reiterar essa
imagem e insistir nesta lição) assemelhasse a um iceberg, na medida em que deixa à superfície uma parte pequena de
informações, matendo submersa uma grande parte informações. Portanto, todo
texto encerra explícitos e uma gama diversa de implícitos.
Se tivéssemos de codificar na língua todos conteúdos de
consciência ou todas as informações que pretendemos comunicar, a língua,
enquanto atividade social, perderia muito em eficiência, já que produziríamos
textos densos em informações desnecessárias, porque redundantes. E redundantes
porque já previstas pelo conhecimento de mundo do interlocutor. Assim, em
qualquer evento sociointeracional realizado pelo uso da língua, produzimos
nossos textos na base de um conjunto de saberes que supomos partilhar com
nossos interlocutores. Por exemplo, se digo
(1) Hoje, fui a uma churrascaria e comi muito.
Esse enunciado foi produzido na base de uma série de
pressupostos sobre os saberes compartilhados entre o locutor e o interlocutor.
Assim, o locutor enuncia (1) partindo da hipótese de que o seu interlocutor já
sabe:
a) o que é uma churrascaria;
b) que se trata de
um lugar especializado em servir churrasco;
c) que lá há mesas e cadeiras onde nos sentamos para
almoçar ou jantar;
d) que lá há garçons que nos servem;
e) que, normalmente, se come bastante nesse lugar.
Podemos imaginar quão despropositada seria a versão (1a)
do referido enunciado.
(1a) Hoje, fui a uma
churrascaria. Churrascaria é um restaurante onde se serve churrasco. Lá, nós
nos sentamos à mesa e, não tendo acesso ao cardápio imediatamente, esperamos
que um garçom o traga, para que escolhamos o que queremos comer. Na churrascaria, geralmente se come bastante.
Esse texto faria sentido, ou melhor, teria valor funcional,
caso nosso interlocutor, sendo um estrangeiro visitando o Brasil, quisesse
saber o que é uma churrascaria. Sendo brasileiro nosso interlocutor, as
informações que damos a respeito da churrascaria são desnecessárias, porque
parte do conhecimento sociocultural que compartilhamos com ele.
Sem mais delongas, começarei a tratar do fenômeno da
pressuposição, sem pretender fazer vasta incursão teórica, lançando mão da
definição apresentada por Rodolfo Ilari, em Introdução
à Semântica (2003). Escreve o linguista:
“Diz-se
que uma informação é pressuposta quando ela se mantém mesmo que neguemos a
sentença que a veicula”.
(p. 85)
Essa é uma definição operacional de pressuposição, já que
nos fornece informação sobre um expediente, tradicionalmente, usado para o
reconhecimento do pressuposto: a negação. Conforme ensina o autor, se nos
valermos da forma de negação “não”, aplicando-a num enunciado como (2), a
informação pressuposta será aquela que não se altera, a despeito do uso da
negação:
(2) O carro parou de trepidar.
O carro não parou de trepidar.
Tanto na forma afirmativa, quanto na forma negativa, o
conteúdo “o carro trepidava antes” não se altera. Portanto, é ele o conteúdo
pressuposto. Vale notar que esse pressuposto está ancorado numa expressão
linguística na base da qual nós o produzimos – a expressão parou de. Trata-se de um marcador de pressuposição. Certos verbos ou locuções verbais têm a
propriedade de permitir a inferência ou a ativação de conteúdos pressupostos,
tais como ‘continuar’ , ‘tornar-se’, ‘ficar’, “deixar de”.
Outro expediente, comumente, empregado para o
reconhecimento de conteúdos pressupostos é a interrogação. O conteúdo
pressuposto se mantém sempre que aplicamos o procedimento de interrogação num
enunciado. Assim, se o enunciado (2) fosse produzido com uma força
ilocucionário de pergunta,
(2a) O carro parou de trepidar?
o conteúdo pressuposto ‘o carro trepidava antes’ não se
altera. Escusa dizer que este ‘antes’ remete a um momento anterior ao momento
da enunciação (ao aqui-agora do discurso).
Embora os dois expedientes sejam, decerto, úteis para o
reconhecimento de pressupostos, seu emprego tem limitações. Não podemos nos
servir deles em todos os casos, como em (3):
(3) Eu sei que você não foi à escola.
Essa frase compõe-se de dois segmentos, que chamamos de
oração. O primeiro segmento, tradicionalmente, é classificado como oração
principal (Eu sei); o segundo, como oração subordinada ((que) você não foi à
escola). Na primeira oração (a principal), figura o verbo “saber”, que é
considerado um verbo factivo, ou seja, um verbo cujo uso implica a
pressuposição de que a proposição seguinte (você não foi à escola) é um fato.
Portanto, com o verbo “saber”, o falante pressupõe como fato o conteúdo
proposicional da oração subordinada. Nesse caso, qualquer tentativa de aplicar
aqueles expedientes se demonstra inapropriada. Como a oração subordinada já
encerra a partícula “não”, que modifica todo o predicado “foi à escola”, não
cabe aí inserir outra forma negativa. Por outro lado, a transformação da frase
para a versão interrogativa é assaz sensível ao contexto.. Pode-se, é verdade, atribuir uma força
ilocucionária de pergunta a (3), a fim de buscar, retoricamente, invalidar o
pressuposto do interlocutor. Assim, numa situação em que uma adolescente, que
quisesse fazer com que o pai acreditasse que ela foi à escola, dissesse (3a)
(3a) Minha mãe sabe que eu fui.
a mãe da menina poderia replicar produzindo (3b)
(3b) Eu sei que você foi (à escola)?
A intenção da mãe é claramente desmentir a menina. Mas o
pressuposto do enunciado (3) não se mantém.
Para fins de determinação do conteúdo pressuposto de (3),
claro está que os dois expedientes se demonstram ineficazes.
Precisamos avançar um pouco mais. Ducrot (1978),
consciente da diversidade de abordagens que se encontram na esteira dos estudos
sobre pressuposição, procura sumariar em dois grupos as conceituações
conflitantes. Segundo o linguista, o fenômeno da pressuposição foi considerado
e definido numa perspectiva lógica, com base no critério da negação e das
noções de verdade e falsidade da proposição; e numa perspectiva pragmática, que
associa o fenômeno de pressuposição às condições de emprego. Diversos são os
estudiosos que se ocuparam do tema, mas é, em Ducrot, que o fenômeno em pauta pôde
ser contemplado como constituinte do próprio sentido do discurso. Com Ducrot, a
pressuposição é enfocada à luz de uma teoria da argumentação. Passa a ter ela
um papel específico no discurso, tornando-se um dos fatores responsáveis pela
construção do sentido. O mecanismo de pressuposição é, portanto, entendido como
um recurso argumentativo. Segundo Fiorin (2004: 182):
“O uso
adequado dos pressupostos é muito importante, porque esse mecanismo linguístico
é um recurso argumentativo, uma vez que visa a levar o leitor ou ouvinte a
aceitar certas ideias. Com efeito, introduzir
no discurso um dado conteúdo sob a forma de pressuposto implica tornar o
interlocutor cúmplice de um dado ponto de vista, pois ele não é posto em
discussão, é apresentado como algo aceito (...)”.
(grifo meu)
O referido passo se acha no artigo A linguagem em uso, integrante da coletânea Introdução à Linguística – objetos teóricos (2004). Precisarei me
deter um pouco nele para tecer algumas considerações. Começarei a me situar,
doravante, na perspectiva de Ducrot (1972), à luz da qual a pressuposição é
considerada integrante do sentido dos enunciados.
A primeira lição importante a ser colhida deste trecho é
que os conteúdos pressupostos são na verdade, colocados à margem da
argumentação. Eles não são apresentados para orientar a argumentação. Os
conteúdos pressupostos são apresentados para serem inquestionáveis,
incontestáveis, de tal modo que a rejeição deles implica a impossibilidade de
levar adiante o próprio discurso. Portanto, a continuação do discurso depende
da aceitação dos pressupostos.
Tendo verificado que os testes de negação e interrogação,
que são, tradicionalmente, aplicados para o reconhecimento dos conteúdos
pressupostos, se demonstram inaplicáveis em muitas frases, Ducrot propõe outro
critério : o critério do encadeamento. Esclarece-nos
Ducrot:
“Se uma
frase pressupõe X, e um enunciado desta frase é utilizado num encadeamento
discursivo, por exemplo, quando se argumenta a partir dele, encadeia-se sobre
aquilo que é posto, e não sobre o que é pressuposto”.
(Ducrot,
1972. apud. Koch: 2004, 65)
Assim, o autor propõe um novo conceito de pressuposto. Vai
entendê-lo como informações que, embora inscritas no enunciado, não constituem
base sobre a qual o enunciador faz recair o encadeamento. Assim, encadeia-se
sobre o posto e não sobre o pressuposto.
Veja-se o exemplo abaixo:
(4) Luís parou de
fumar, mas não foi fácil.
O enunciado (4) compõe-se de duas orações, a segunda das
quais se articula à primeira por meio do articulador discursivo “mas”. É por
meio do “mas” que se opera o encadeamento de um segmento com o outro.
Em “Luís parou de fumar”, há um pressuposto: “Luís fumava”.
Assumir este pressuposto é condição para a própria existência de “Luís parou de
fumar”, já que só posso dizer “Luís parou de fumar” se sei que ele fumava (ou
seja, se disponho de um conhecimento pressuposto sobre o hábito de fumar de
Luís).
Note-se que o encadeamento com “mas” não incide sobre o
conteúdo pressuposto, que é colocado à margem da argumentação. Eu poderia
argumentar no sentido de levar meu interlocutor à conclusão de que parar de
fumar exige força de vontade. Enunciando (4), comunico que Luís parou de fumar,
não sem algum obstáculo (não foi fácil, ele teve dificuldades). O argumento
introduzido pelo “mas” se prende ao que é posto no segmento anterior, não afeta
o conteúdo pressuposto “Luís fumava”. É a aceitação desse pressuposto que
permite a continuação do discurso.
Evidentemente, alguém poderia se demonstrar surpreso com o
fato de Luís ter sido fumante. Nesse caso, o pressuposto não é compartilhado
com o interlocutor. Uma das condições para que haja interação entre as pessoas,
através do uso da língua, é que elas estejam de acordo quanto aos pressupostos
implicados por seus enunciados.
Convém, contudo, atentar para a advertência que nos faz
Fiorin (2004), na obra já citada aqui:
“Quando
se diz que o pressuposto não é sensível á negação, à interrogação e ao
encadeamento do posto, não se está dizendo que não se possa negar o
pressuposto, interrogar sobre ele ou fazer encadeamento com ele, mas apenas
que, quando a negação, a interrogação
atingem o posto, não alcançam necessariamente o pressuposto”.
(p. 182)
(grifo
meu)
Segundo Fiorin, a
introdução de um pressuposto faz com que o interlocutor aceite um dado ponto de
vista, já que o pressuposto é aduzido como fora de discussão.
A língua
disponibiliza uma série de recursos que marcam a pressuposição. A essas
unidades chama-se marcadores de
pressuposição. Entre eles estão:
adjetivos,
verbos que indicam
permanência ou mudança de estado (continuar, ficar,
tornar-se, ganhar, etc.),
verbos modalizadores (pretender, saber, alegar, supor, presumir, etc.),
certos advérbios (p. ex. o advérbio
“mais” em “Ele não é mais bobo”, em que “mais” implícita a ideia de que antes
alguém era bobo),
orações relativas restritivas,
certas conjunções (mas, antes que, depois que, se, etc.).
Retomemos o texto, a
fim de analisar os pressupostos que nos deixa entrever.
Começo notando, de
início, a ocorrência da conjunção “antes que”, que é um marcador de
pressuposição.
Piaget,
antes de se dedicar aos estudos da
psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da
Suíça.
Como marcador de pressuposição, a conjunção “antes que”
permite-nos inferir que a oração que introduz descreve um estado-de-coisas (um
recorte representacional de mundo) tomado como fato. A verdade da proposição “Piaget dedicou-se
aos estudos da psicologia da aprendizagem” é pressuposta. Decerto, um
pressuposto incontestável, já que sabemos que Piaget se dedicou a estudar os
processos de aprendizagem nas crianças. Vale notar que o autor conta com o
conhecimento prévio do leitor sobre quem foi Piaget e sobre seu interesse pelos
estudos de psicologia da aprendizagem.
Vejam-se, agora, as ocorrências abaixo:
(...) não
sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar
para a psicologia da aprendizagem dos humanos.
Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver.
Somente os idiotas
armazenam na sua memória ferramentas para as quais não têm uso
Se foi
esquecido é porque não fazia sentido.
Vimos que verbos de valor epistêmico, de que é um exemplo
o verbo “saber” no primeiro fragmento, permite pressupor a factualidade do
estado-de-coisas descrito na oração completiva. Ou seja, “o que levou a
abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da
aprendizagem dos humanos” é tomado como um fato. Embora o autor desconheça,
ignore, houve uma razão para o abandono dos estudos sobre moluscos e o
interesse pela aprendizagem dos homens.
O uso de “apenas” põe que ‘o corpo dos animais é o único
instrumento para a sobrevivência de que eles dispõem’; mas permite-nos
pressupor “eles dispõem do corpo”. Vejamos outro exemplo com “apenas”:
(5) Apenas eu fui premiado.
A informação explícita é “fui a única pessoa a ser
premiada”. O uso de “apenas é que marca o pressuposto:
Pp. Eu fui premiado.
O caso de “somente” é análogo ao de “apenas”. Introduzindo
“somente” o autor permite-nos inferir o pressuposto segundo o qual “os idiotas
armazenam ferramentas (conhecimentos) inúteis”. O conteúdo explícitamente
comunicado é “um único tipo de pessoas (os idiotas) armazena conhecimentos
inúteis”.
O “se” permite o pressuposto de que, naquelas
circunstâncias, o esquecimento é comum, ou é um fato frequentemente constatado.
Doravante, vou tecer alguns comentários sobre como os
pressupostos inferidos desses fragmentos se integram no projeto argumentativo
do autor. Para tanto, transcrevo abaixo as partes maiores do texto em que se
acham aqueles fragmentos.
1. Sua inteligência se revela no artifício que
inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras – e
lindas! - que os protegem da fome dos predadores. Ignoro detalhes da biografia
de Piaget e não sei o que o levou a
abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da
aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar.
2. Vejam os animais. Eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu
corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam,
correm, orientam-se, saltam, cortam, mordem, rasgam, tecem, constroem, nadam,
disfarçam-se, comem, reproduzem-se.
3. O corpo não aprende por aprender. Aprender por
aprender é estupidez. Somente os
idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. Somente os idiotas armazenam na sua memória ferramentas para as
quais não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento.
4. Acontece, então, o esquecimento: o supostamente
aprendido é esquecido. Não por memória fraca. Esquecido porque a memória é
inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não
podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de
macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil e prazeroso. Se foi esquecido é porque não fazia
sentido.
Em 1, o autor assume
sua ignorância sobre as razões pelas quais Piaget desistiu de estudar os
moluscos para ocupar-se com os estudos sobre o comportamento humano. Essa
ignorância reconhecida tem pouca importância na orientação argumentativa que
toma o discurso àquela altura. Assumindo-se o pressuposto de que há razões para
que Piaget passasse a estudar a psicologia da aprendizagem dos seres humanos,
importa, para efeito de argumentação, levar o leitor a perceber uma relação
analógica entre os moluscos e os humanos. O autor lança mão de um artifício a
fim de solucionar o problema de sua ignorância sobre a motivação de Piaget: o
da imaginação. Daí em diante desenvolve um raciocínio calcado sobre analogia.
Em suma, basta que
autor e leitores estejam de acordo no tocante ao pressuposto de que houve
razões para que Piaget mudasse seu foco de interesse; o desconhecimento dessas
razões, contudo, não constitui dificuldade nenhuma para a argumentação, já que
o que importa é causar a adesão do leitor à analogia proposta. Se o leitor
aceita as semelhanças apontadas pelo autor entre moluscos e homens, a questão
das razões por que Piaget passou a se interessar pelos estudos dos humanos não
têm relevância.
Em 2 e 3, as
expressões “apenas” e “somente” permitem-nos inferir o pressuposto ‘eles
dispõem de seu corpo’ e ‘os idiotas aprendem ou armazenam coisas (ou
ferramentas) para as quais não têm uso’, respectivamente. Em 2, o autor procura
criar um consenso sobre a suficiência do corpo do animal, como meio de
sobrevivência. E o justifica enunciando uma série de habilidades de que os
animais dispõem pelo uso do corpo (cavam, voam, correm...). Elencando as
atividades que os animais desempenham com o corpo, o autor opõe seres incapazes
de pensar, mas dotados de um corpo que satisfaz às suas necessidades de
sobrevivência, a seres dotados da capacidade de pensar, mas com um corpo
inapropriado para todos os atos de sobrevivência. Em 3, o pressuposto torna-se
mais discutível, em função do uso de
“idiotas” na expressão descritiva “os idiotas”. Descreve-se um tipo humano. O
uso de ‘idiota’ tem efeito pejorativo. Quem seriam os idiotas? O autor não se
referiria – creio eu – a uma pessoa que manifesta retardamento mental profundo.
Nesse caso, tendo a pessoa muita dificuldade para aprender, não está em questão
a utilidade ou inutilidade do que ela aprenderia. Descartamos essa hipótese e
ficamos com a hipótese, mais plausível, segundo a qual “idiota” significa,
simplesmente, ‘indivíduo estúpido ou ao qual falta bom-senso’. Todavia, ainda
não sabemos a identidade desses indivíduos. Eruditos são pessoas que exibem profundo
conhecimento em uma ou em várias áreas do saber. A menos que todos os
conhecimentos acumulados tenham uma utilidade imediata, seriam eles idiotas? Se
rejeitamos esta hipótese (provavelmente, porque eruditos acumularam
conhecimentos úteis, ao menos, para que alcançassem status em sua vida
profissional), não encontro meios para identificar os idiotas a que se refere o
autor.
Talvez ‘idiotas’ não
tenha um referente determinável e funcione como mero rótulo que sinaliza para a
impropriedade do raciocínio segundo o qual podemos armazenar conhecimentos
inúteis à vida.
De qualquer forma, o
que é preciso ficar clara é a capacidade de o leitor interagir com o autor e
com o texto, por meio da formulação de hipóteses sobre os sentidos possíveis. O
que eu fiz aqui, ao tentar descobrir o referente de ‘os idiotas’ e ao tentar
questionar a possibilidade de armazenar conhecimentos inúteis foi uma atividade
cognitivo-interacional que teve por base o texto. Eu interagi com o texto. Por
isso, o leitor nunca é passivo, mas um sujeito ativo que produz um sentido
(dentre os muitos possíveis), valendo-se, para tanto, de várias estratégias
sociocognitivas. O leitor, ao ler um texto, está, a todo momento, produzindo
hipóteses, fazendo inferências.
Finalmente, em 4,
pressupõe-se o esquecimento (foi esquecido) do conhecimento ensinado, mas não
aprendido. O aprendido é aquilo que foi retido na memória. Se a memória “deixa
passar” algum conhecimento, é porque ele não foi, verdadeiramente, aprendido.
Uma vez assumindo a possibilidade de esquecer aquilo que, um dia, foi ensinado
(esse é o pressuposto), então podemos aceitar o argumento do autor segundo o
qual a memória só retém o que foi, realmente, aprendido. Para tanto, o autor
recorreu à imagem do escorregador de macarrão.
De tudo que foi
exposto, pôde-se depreender a importância de recuperar, durante a atividade de
leitura, os conteúdos implícitos, que são indispensáveis à produção de sentido.
O uso adequado dos pressupostos é fundamental para a eficácia da atividade
argumentativa. A pressuposição é um mecanismo argumentativo. Lembro as palavras
de Fiorin (2004), novamente, das quais colhemos uma lição que não pode ser
esquecida:
“A
pressuposição aprisiona o leitor ou o ouvinte numa lógica criada pelo produtor
do texto, porque, enquanto o posto é proposto como verdadeiro, o pressuposto é,
de certa forma, imposto como verdadeiro. Ele
é apresentado como algo evidente, indiscutível”.
(p. 182)
(grifo
meu).
No momento, estou sendo obrigada a engolir uma montanha de leitura pra um concurso público, o que vai ficar armazenado, “sobrar no escorredor de macarrão” é conteúdo aprendido, o resto é supérfluo que vai ser esquecido... As nossas instituições cometem essas atrocidades com nossos alunos, diria que quase que a totalidade do conhecimento é esquecido. Enfim.... Mais um texto primoroso professor Bruno! Conforme ia lendo, ia observando os grifos e imaginando a análise textual que viria por aí! Como sempre brilhante análise!
ResponderExcluirPartindo do pressuposto de tudo que li aqui, da força argumentativa que desenvolvestes esse texto, eu só posso dizer: Ah se todos os professores fossem igual a você! rsrsrs.
Parabéns pelo seu dia!!!!
Bjusss