quinta-feira, 25 de outubro de 2012

“O homem quer ser um deus com o equipamento de apenas um animal, e por isso vive de fantasias” (Ernest Becker)


  
                                O engano contra o desespero
  textos que nos ensinam e textos que, nos ensinando, nos impressionam. Um exemplo desta espécie de texto é o capítulo O caráter humano como mentira vital, que se topa no livro A negação da morte – uma abordagem psicológica sobre a finitude humana (2012), de Ernest Becker. Ao cabo da leitura deste capítulo, apressei-me em anotar os tópicos que me pareceram mais relevantes à produção deste texto, cujo propósito é despertar reflexões no leitor sobre a condição humana a partir da compreensão do caráter como uma “mentira vital” forjada por cada um de nós para suportar a realidade da vida. O núcleo da discussão empreendida pelo autor é justamente a natureza e a função do caráter. É, portanto, na base da consideração dessa ficção psicológica que começarei a apresentar as teses defendidas pelo autor.
Além de fomentar reflexões, espero também conseguir despertar no leitor o interesse por ler o livro de Becker, cujo tema diz respeito ao absurdo da existência humana que abriga o saber sobre sua própria finitude. Não escapamos ao fato da morte; mas também não deveríamos continuar a nos furtar a meditar seriamente sobre ele.
É necessário, antes de levar a efeito meu empreendimento, explicitar algumas noções de psicologia que são caras ao entendimento satisfatório da abordagem da condição humana feita pelo autor. A primeira noção é a de Mecanismos de defesa. Os mecanismos de defesa são recursos utilizados pela mente neurótica (todos somos neuróticos em alguma medida) com o objetivo de lidar com a realidade, evitando, assim, a dor e a ansiedade. Há uma série de mecanismos de defesa. Escusar-me-ei de citá-los. Importa ter em conta, no entanto, a ideia de que esses mecanismos nos capacitam a nos furtar ao conhecimento consciente da natureza mesma da realidade. Eles nos “protegem” contra a visão aterradora da verdade da realidade.
A segunda noção importante é a do Princípio de realidade, cunhada por Freud. O princípio da realidade diz respeito à difícil tarefa do eu na busca por adaptar-se à realidade, atendendo aos imperativos do superego, sem, contudo, desagradar ao id (instância da energia dos desejos). O princípio de realidade permite ao indivíduo a distinção entre o mundo interior à psique e o mundo exterior. Ele repousa sobre a percepção sensorial e sobre a motricidade.
Outras duas noções importantes são a do eu (ego) e a de caráter. O eu é um gestor, pois que lhe cabe regular as relações entre a pessoa e o meio social em que vive (mas não é o senhor de sua “casa” (mente), pois que muitos pensamentos que se formam no espírito escapam ao seu controle). Ele é o centro de referência para todas as atividades psicológicas. Ele enfeixa uma individualidade. Sua construção se dá nas relações necessárias com o outro – relações, é preciso frisar, significativas -, o que significa dizer que o outro nos inculca significados. O que somos é resultado de uma construção simbólica na interação (pela linguagem) com os outros. Por isso, o “eu” se constrói na relação com o outro. Na verdade, a construção do eu e do eu-outro se dá numa relação simbólica mútua, de tal modo que um eu se constrói constituindo o eu do outro e por esse eu-outro é constituído. Creio ser conveniente aqui referir um trecho em que Becker justifica sua crença em que nós somos naturalmente covardes, por razões que ficarão claras no decorrer desta exposição. O trecho ajuda-nos, como se lerá, a entender como o “eu”, que experienciamos como uma realidade concreta, se constrói:

“Certa vez, escrevi que achava que a razão pela qual o homem era tão naturalmente covarde era que ele sentia não ter autoridade, e a razão de ele não ter autoridade estava na própria maneira pela qual o animal humano é formado: todos os nossos significados nos são inculcados pelo lado de fora, pelas nossas relações com os outros. É isso que nos dá um “eu” e um superego. Todo nosso mundo de certo e errado, bom e mau, nosso nome, exatamente quem somos, tudo isso é enxertado em nós”.
(...)

(p. 72)

O social constitui-nos no âmago do ser. A questão do ego envolve a problemática em torno da distinção, válida para alguns autores, entre o ego ideal, que totaliza as qualidades boas e positivas que introjetamos de nossos pais e da sociedade, e o superego que introjetaria os elementos punitivos e severos, e se limitaria a controlar os impulsos. Tal distinção não nos interessará aqui. Importa-nos, no entanto, reconhecer que cada um de nós é um estranho em relação a si mesmo. A realidade mesma de próprio eu é inacessível e seu conhecimento depende de uma profunda interiorização e autoconhecimento, para o qual o indivíduo não se demonstra normalmente inclinado.
Finalmente, a noção de caráter é, em psicologia, entendida como um sinal que permite identificar a natureza de uma coisa. É empregado como sinônimo de personalidade, mas de um modo mais restrito. Ao contrário da personalidade, que abriga uma totalidade que se constitui de impulsos, ideias, afetos, defesas, aptidões, talentos, comportamento social e reações, o caráter diz respeito apenas àqueles aspectos da personalidade que individualizam as pessoas umas em relação às outras. (v. Dicionário Técnico de Psicologia, 2006).
Creio estamos em condição para começar a acompanhar o desenvolvimento do texto de Becker, segundo a proposta de leitura de que este texto que ora escrevo é expressão.
“O caráter é uma mentira vital” (p. 76). É uma mentira que forjamos para conseguir suportar a nossa própria condição humana e a realidade do mundo. Segundo o autor, vivemos mentindo para nós mesmos e mentindo sobre o mundo. Ignoramos quem somos, porque nos esquivamos ao autoconhecimento, e ignoramos a verdade do mundo. Leia-se a concepção de caráter do autor, explicitada abaixo:

“(...) o caráter de uma pessoa é uma defesa contra o desespero, uma tentativa de evitar a loucura, devida à verdadeira natureza do mundo”.

(p. 89)
(ênfase no original).

De que verdade sobre o mundo se trata? O autor nos é claro em vários momentos e trarei à cena as palavras dele. Podemos, contudo, hipotetizar a respeito dessa verdade. A mais evidente é a verdade de sua própria contingência (um mundo criado do nada, que poderia nunca ter existido). A segunda verdade é a sua clara hostilidade. Deixemos, por ora, a questão da verdadeira natureza do mundo, a fim de acompanharmos com atenção o modo como as questões são apresentadas e tratadas pelo autor.
Nós, seres humanos, ao contrário do que sucede com os animais, não dispomos de instintos que nos preparam para todos os atos de sobrevivência. O mundo do animal não lhe coloca desafios aos quais não pode reagir. A relação entre o animal e o meio é imediata, de tal sorte que seu corpo é uma extensão do próprio ambiente em que vive. Becker nos chama atenção para o seguinte fato:


“(...) olhem para o homem, a criatura impossível! Aqui, a natureza parece ter deixado de lado a cautela e os instintos programados. Criou um animal que não tem defesa alguma contra a percepção do mundo exterior, um animal inteiramente aberto à experiência. Não apenas diante de seu nariz (...). Pode relacionar-se não apenas como os animais de sua espécie, mas, de certa maneira, com todas as outras espécies. Ele pode contemplar não apenas o que é comestível para ele, mas tudo que floresce. Vive não apenas o momento presente, mas estende seu eu interior ao amanhã, a sua curiosidade a séculos passados, seus temores a daqui a cinco bilhões de anos. Pergunta-se quando o sol irá esfriar e quais são suas esperanças em relação a uma eternidade no futuro. Viver não apenas num minúsculo território, tampouco em um planeta inteiro, mas numa galáxia, num universo, e em dimensões além de universos visíveis. É estarrecedor o fardo que o homem suporta, o fardo experiencial. (...) o homem não pode nem mesmo ter seu corpo como ponto pacífico, como podem fazer os outros animais.”
(p. 75)
(ênfase no original)

Não só o corpo humano demanda explicações, mas o próprio eu, com suas recordações e seus sonhos. O homem é um animal que se indaga sobre o sentido da vida, mas “não sabe quem é, por que nasceu, o que está fazendo no planeta, o que deveria fazer, o que pode esperar” (id.ibid.). O autor chamará de “dádiva da repressão” a capacidade que nos permite viver “decisivamente em um mundo esmagadoramente miraculoso e incompreensível, mundo tão cheio de beleza, majestade e terror que, se os animais o percebessem, ficariam paralisados e sem ação” (p. 74).
O que, afinal, nós reprimimos? Becker esclarece que a repressão é global, pois que é necessário reprimir toda a diversidade de nossas experiências, para, desse modo, alcançar um sentimento de valor interior e de segurança. O homem supre, pela repressão, a carência de proteção legada pela natureza. Sartre ensinava que o homem é seu próprio projeto. O homem terá de operar uma série de repressões. Leiamos o que nos revela o autor sobre ela:

“[o homem] terá que reprimir sua pequenez no mundo adulto, seus fracassos na tentativa de viver de acordo com as ordens e os códigos adultos. Terá que reprimir seus sentimentos de inadequação física e moral, não apenas a inadequação de suas boas intenções, mas também sua culpa e suas más intenções: os desejos de morte e o ódio, que sente ao ser frustrado e bloqueado pelos adultos. Terá que reprimir a inadequação dos pais, as ansiedades e terrores destes, porque percebê-los termina por minar o sentimento de segurança e poder. Terá que reprimir sua própria analidade, suas comprometedoras funções corporais que significam sua mortalidade, sua indiscutível transitoriedade dentro do mundo natural. Com tudo isso e com muito mais que não mencionamos, terá que reprimir o assombro e o terror básicos diante do mundo externo”.

(p. 77)

Quão árdua é a tarefa psicológica dos seres humanos na busca por suportar a verdade da realidade! O autor reconhece dois grandes temores do homem: o medo da vida e o medo da morte. Evocando o pensamento de Heidegger, observa:

“(...) a ansiedade básica do homem é a ansiedade por estar no mundo, bem como a ansiedade de estar no mundo. Isto é, temor da morte e temor da vida, da experiência e da individuação. O homem reluta em enfrentar o peso esmagador de seu mundo, os verdadeiros perigos desse mundo. Ele retrai-se para não se perder nos devastadores apetites dos outros, para não rodopiar sem controle nas garras e presas de homens, animais e máquinas”.
(p. 78)
(ênfase no original)


O caráter funciona como uma couraça contra o desespero e o abandono. É uma “defesa neurótica” contra a percepção da verdadeira condição humana, que é tecida pelo sofrimento. Realidade tão bem expressa no ensinamento budista e que constitui a primeira verdade proclamada pela doutrina:

“A primeira nobre verdade determina que tudo no mundo é sofrimento. “Nascer é sofrer; envelhecer é sofrer, morrer é sofrer, estar unido com aquilo de que não gostamos é sofrer, separarmo-nos daquilo que amamos é sofrer, não conseguir o que queremos é sofrer”. Em termos budistas o sofrimento implica algo mais do que mero desconforto físico e psicológico. Pode-se dizer que a existência como um todo é manchada pelo sofrimento, pois tudo é passageiro. A pessoa que não consegue perceber que o mundo, do ponto de vista do ser humano, é inadequado, é uma pessoa cega”.

                                             (O livro das religiões, 2008: p. 62)


É preciso esclarecer que a neurose é, para autores como Frederick Perls (lembrado por Becker), uma espécie de “couraça” para evitar lidar com uma realidade insuportável. Para Teles (2004), por exemplo, a neurose instaura uma discrepância entre o “eu real” e o “eu ideal”. Lutamos para ser o que não somos e isso nos acarreta problemas.
É deveras esclarecedora a estrutura neurótica concebida por Perls, apresentada por Becker, nos seguintes termos:

“Gosto da maneira pela qual Perls concebeu a estrutura neurótica, como um edifício compacto formado por quatro camadas. As duas primeiras são as do cotidiano. Nelas estão táticas que a criança aprende para viver bem na sociedade através do uso fácil de palavras que buscam pronta aprovação e calma, para que os outros possam segui-la. São as camadas da conversa loquaz e vazia, dos chavões e do comportamento estereotipado. Muita gente passa a vida sem nunca chegar abaixo dessas camadas. A terceira é dura, difícil de ser penetrada: é o “impasse que cobre a nossa sensação de sermos vazios e estarmos perdidos, a mesma sensação que tentamos banir ao construir defesas do nosso caráter. Por baixo dessa camada está a quarta e mais desconcertante: a camada da “morte”, ou do medo da morte. (...) essa é a camada de nossas verdadeiras e básicas angústias animais, e terror que carregamos conosco no segredo de nosso coração. Só quando explodimos essa quarta camada, diz Perls, chegamos àquela camada que poderíamos chamar de nosso “eu autêntico”; aquilo que realmente somos sem hipocrisia, sem disfarce, sem defesas contra o medo”.

(p. 83)


Convém reter que o “eu” que julgamos ser e que se exterioriza é tão-só uma imagem ou uma máscara sob a qual se disfarça nosso “eu autêntico”. Esse “eu verdadeiro” está soterrado em cada um de nós. Essa visão de um eu desprovido de realidade imediata e aparente, afina-se com a concepção de “eu” do psiquiatra J. D. Nasio, em seu livro Meu corpo e suas imagens (2009):

“Considero, pois, o eu uma entidade essencialmente imaginária cunhada por todas as nossas ignorâncias, erros, miragens que confundem a percepção que fazemos de nós mesmos”.

(p. 55)
(ênfase no original)

Em que período da vida inicia-se nosso desacerto em relação ao mundo? Para Becker, a plena humanidade “é um desajuste primário em relação ao mundo” (p. 84). Convém retroceder à nossa infância, para encontrar as raízes de nossas angústias, do descompasso em relação ao mundo. Chegamos a um mundo sem desejar estar nele, sem saber as razões por que passamos a ocupá-lo. Fomos arremessados a uma existência que se nos apresenta desafiadora e ameaçadora. Precisamos do amparo, dos cuidados de outros. O autor considera a criança um “covarde natural” e isso é compreensível, quando nos descreve a angustiante situação infantil:

“O mundo tal como é, criado do nada, as coisas como são, as coisas como não são, tudo isso é demais para que possamos suportar. Ou, melhor: seria demais para suportarmos sem desmaiar, tremendo como vara verde, imobilizados em transe em resposta ao movimento, às cores e aos odores do mundo. Eu digo – “seria” – porque a maioria de nós – ao deixarmos a infância – já reprimiu a nossa visão do milagre do mundo tal como ele aparece na experiência desarmada”.

(p. 74)

Quando não somos bem-sucedidos, em algum momento da vida, nesse trabalho de repressão da percepção da verdadeira natureza da realidade, rompe-nos o fracasso que se caracteriza como esquizofrenia. O esquizofrênico é aquele indivíduo, comumente, considerado, devido à ignorância geral, demente ou louco, por parecer viver “fora da realidade consensual”. De fato, o esquizofrênico se desliga da realidade assumida por um consenso socio-cultural. Mas convém dirimir alguns equívocos, atentando para a definição rigorosa desse tipo de psicose. No Dicionário técnico de psicologia (2006), lemos:

“A esquizofrenia caracteriza-se por acentuada perda de contato com a realidade (dissociação), grave divisão ou fragmentação da personalidade, formação de um mundo conceptual excessivamente determinado pelo sentimento (autismo) e ocorrência de sintomas que assimilam uma deterioração progressiva”.

(p. 112)
(grifo meu)


A esquizofrenia ensina-nos muito sobre nossa relação com a realidade. Ensina-nos que a realidade não é algo dado, que se põe diante de nós a priori, mas que é construída numa relação complexa entre percepção-cognição, linguagem e cultura, dimensões estas que perpassam e definem o humano. O esquizofrênico é aquele que não domina mais os códigos comuns com os quais constituímos a realidade e a estruturamos.
A questão da esquizofrenia figura no texto de Becker, para que o autor nos mostre que não consiste ela num fracasso dos pais na formação de uma criança bem adaptada à sociedade ou à realidade. A visão segundo a qual os pais seriam culpados pelas repressões da criança, pela produção de defesas de seu caráter e pelo gênero de pessoa que se tornaria foi duramente criticada. A criança, vinda a um mundo absurdo, em condições não escolhidas, precisa criar defesas contra ele. Ela passa a ser vista como um ser que tem de lidar com o mundo, produzindo suas próprias defesas.
A esquizofrenia passa a ser vista como uma condição extra-humana. Quem dela sofre é incapaz de se valer de mecanismos de defesas contra a realidade. O esquizofrênico está desarmado contra a tragédia da vida, segundo Perls. A tragédia a que se refere encerra ‘a finitude humana’, ‘o medo da morte’ e ‘a natureza ameaçadora da vida’. Destarte, para alcançarmos uma compreensão satisfatória da condição do esquizofrênico e entender a condição de todos nós que nos consideramos “normais”, convém atentar para o que se segue:


“O esquizofrênico sente essas coisas [a finitude humana, o medo da morte e a dureza da vida] mais do que ninguém, porque não conseguiu armar as defesas confiáveis que uma pessoa normalmente usa para negá-las. A desdita do esquizofrênico está em que ele ficou sobrecarregado com quantidades extras de angústias, culpa e desamparo, em um meio ambiente ainda mais imprevisível e que não lhe dá apoio. Ele não está instalado em segurança em seu corpo, não tem uma base segura que lhe dê condições para vencer um desafio e obter uma negação da verdadeira natureza do mundo. (...) O esquizofrênico é sumamente criativo num sentido quase extra-humano porque está mais longe do animal: falta-lhe a segura programação instintiva dos seres inferiores. E lhe falta a segura programação cultural dos homens. Não admira que ao homem comum ele pareça “louco”: ele não faz parte do mundo habitual.”

(pp. 88-89)


A conclusão a que chegamos, após a leitura integral do texto, é que aos seres humanos a compreensão e a aceitação da totalidade de sua condição são intoleráveis. Para suportar sua condição, eles precisam forjar traços psicóticos disfarçados, ocultos que virão a constituir o caráter – sua couraça, afinal, contra o absurdo da vida e da morte. Preferem se enganar a respeito de quem realmente são, a respeito de sua própria condição e da natureza da realidade. Por isso, Sartre tão bem notou que o homem é “uma paixão inútil”. Ao que Becker acrescenta, ratificando a posição do eminente filósofo: “O homem quer ser um deus com o equipamento de apenas um animal, e por isso vive de fantasias” (p. 85).

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