Muito prazer, sou linguista
A situação é
recorrente. Basta que alguém saiba que sou professor de português para
demonstrar-se intimidado a falar. Tal atitude se baseia na crença, arraigada na
consciência coletiva, em nosso país, de que todo professor de português é,
necessariamente e ao mesmo tempo, um guardião da “pureza” da língua pátria e um
policial linguístico. Destarte, de acordo com essa crença muito disseminada em
nossa sociedade, ao professor de português compete o dever de zelar pela língua
de prestigio (conhecida vulgarmente como a “língua correta”) e patrulhar o uso
linguístico, de modo a detectar os recorrentes “desvios” ou “erros” cometidos
pelos usuários da língua, relativamente a uma norma idealizada e balizada por
um conjunto de práticas, valores e ideologias recoberto pelo termo gramática tradicional.
É
comuníssimo o recorrer-se ao professor de português a fim de saber se uma
palavra grafa-se com “s” ou “z”, ou se o correto é dizer “para mim fazer” ou
“para eu fazer”. Em qualquer caso, o falante que busca esclarecimento deseja
obter uma resposta que acene para o comportamento linguístico “correto”. Trata-se da obsessão pela correção idiomática. No
imaginário dos falantes, o professor de português é o falante que mais bem
conhece a língua nacional; e, portanto, socialmente, é esperado dele que assuma
uma postura pedagógico-normativista em face da língua. É bem verdade que muitos
professores de português se reconhecem nesse papel e o assumem sem maiores
preocupações. Para citar dois exemplos, professores celebrados na mídia
televisiva tais como Pasquale Cipro Neto e Sérgio Nogueira costumam prestar
serviços como consultores da língua portuguesa. Ambos possuem colunas em
jornais de grande circulação no país, nas quais escrevem a fim de esclarecer os
leitores sobre suas dúvidas em matéria de língua portuguesa.
Há, no
entanto, muitos professores de português, em sua maioria atuantes como pesquisadores
(com doutorado) nos mais diversos centros de pesquisa em linguagem nas grandes
universidades estaduais e federais de nosso país, que, sendo linguistas (ou
seja, cientistas da linguagem) não
assumem uma postura normativista no tratamento dos fenômenos linguísticos.
Não estão eles preocupados em ditar o que é “certo” ou “errado” no uso que os
falantes nativos de português fazem de sua língua. Sendo pesquisadores,
estudiosos da linguagem, especialmente da língua portuguesa, especialistas
cujos estudos se desenvolvem na esteira da Linguística moderna, eles estão
interessados em descrever e explicar a estrutura e o funcionamento da língua
portuguesa. Dizer que eles são cientistas na área dos estudos linguísticos
significa dizer que são pessoas cujas pesquisas se valem de métodos e técnicas
variados, muito embora regidos pelo princípio positivo comum a todo empreendimento
científico, a saber, o mostrar o que é uma coisa na base de uma observação
sistemática.
Não
posso ignorar o fato de que a Linguística, em virtude da própria natureza de
seu objeto observacional (a língua(gem)) tem de lidar com algumas dificuldades,
que não parecem encontrar repercussão em outras ciências. De qualquer forma,
etapas como observação, descrição,
comparação, análise e síntese, contempladas no método científico,
constituem tarefa do linguista quando se debruça sobre um dado fenômeno
linguístico. Não vou me deter na problemática em que repousa a determinação de
um fenômeno linguístico a ser estudado.
O que
espero fique claro é que a Linguística é um ciência, com uma metodologia e
objeto próprios. Essa ciência abriga uma gama variada de teorias ou
perspectivas teóricas, em virtude da própria heterogeneidade de seu objeto de
estudo - a língua(gem). Dependendo do ponto de vista com que definimos uma
língua, haverá diferentes perspectivas teóricas (estruturalismo, gerativismo,
funcionalismo, as teorias do texto e discurso, sociolinguística, linguística
cognitiva, etc.). Não obstante a diversidade de abordagens, uma e outra podem
ser reunidas num mesmo grupo, por guardarem entre si pressupostos em comum.
Assim, o estruturalismo e o gerativismo são recobertos pelo rótulo formalismo,
pois que se trata de abordagens que se preocupam em estudar a forma (estrutura)
da língua desvinculada do uso ou do contexto sócio-cultural em que é usada.
Como
toda minha formação até o presente momento tem sido orientada pelos postulados
da visão científica de língua(gem), minha postura sobre a língua portuguesa e
seu uso não é normativista. Sou um estudioso da língua, alguém que se
preocupa em observar e entender os diferentes usos da língua portuguesa feitos pelos
seus falantes nativos, independentemente de sua classe socioeconômica, faixa
etária, origem geográfica, grau de escolarização e gênero. Sou também um
professor combatente de toda forma de discriminação social pelo uso da
linguagem; sou, portanto, avesso ao preconceito linguístico tão arraigado na
consciência social dos brasileiros.
Vejamos,
para finalizar, um exemplo de como procede um linguista no trabalho de descrição e explicação de um dado fenômeno linguístico. Tendo observado
ocorrências como as listadas abaixo,
(1)
Comprei os livros didáticos
(2)
A gente pesca em outras escama #
(3)
Ele tem três barco #
(o #
indica o cancelamento da marca –S de plural)
buscará
o linguista descrevê-las e explicá-las à luz de determinados pressupostos
teóricos e na base de um conjunto de hipóteses.
Estamos
diante do fenômeno conhecido por concordância
nominal, isto é, a que ocorre, no interior de um grupo nominal, entre um
substantivo-núcleo e um determinante (artigo, numeral, pronome, adjetivo). A
ocorrência (1) é típica da variedade linguística de prestígio, que ilustra o
comportamento linguístico dos indivíduos mais escolarizados de nossa sociedade.
Em (1), marca-se o plural em todos os elementos do grupo nominal (chamado
“sintagma nominal”). Trata-se de uma forma de marcação redundante do plural, já
que a marca -S se repete em cada uma das unidades componentes do grupo.
Nas
demais ocorrências, notamos a ausência da marca de plural sistematicamente no
segundo elemento do grupo nominal. Essa é uma observação importante a ser
registrada: nos grupos nominais
constituídos de apenas dois elementos, o cancelamento da marca de plural –S
ocorre tão-só no segundo elemento do grupo. Ocorrências como “o meninos”
são agramaticais; não se verificam.
A complexidade
aumenta quando se observam casos em que o grupo nominal apresenta mais de dois
elementos. No entanto, vou-me limitar a contemplar as ocorrências acima
referidas.
Estudos
mostram que é grande o índice de cancelamento da marca –S no núcleo do sintagma
nominal formado por dois elementos, como ilustrado nas ocorrências acima.
Como
princípio geral que rege a concordância nominal, nesses casos, postula-se que é
suficiente marcar o plural apenas no primeiro elemento do sintagma, geralmente
um artigo ou pronome adjetivo (algum, este, esse...), para indicar que todo o
grupo nominal deve ser interpretado como pluralizado. Essa é a regra seguida
nas variedades da língua de menor prestígio.
O caso
(3) demonstra-se, particularmente, interessante, em virtude da presença do
numeral. Estudos apontam para a sistematicidade com que a marca –S é cancelada
no núcleo quando na posição pré-nuclear se acha um numeral. Ou seja, havendo um
numeral o cancelamento é a norma.
Três barco aportaram.
pré-núcleo núcleo
Linguistas
há que constataram maior frequência de cancelamento nas formas cujo plural se
faz tão-só pela anexação da marca –S, como nos casos avaliados, se comparados
com os casos em que a marcação do plural com –S se acompanha de uma alteração fônica
(cf. coração / corações). Assim, em (4), a marcação do plural seria mais
frequente:
(4)
Desenhou uns corações no papel.
Para
explicar por que nos casos em que a marcação do plural que se acompanha de uma
alteração fonológica no interior da palavra a concordância nominal se verifica
no grupo, propõe-se o princípio da saliência
fônica. Consiste este princípio na ideia de que as formas em que a
diferença entre singular e plural é marcada apenas pelo acréscimo de –S seriam
mais suscetíveis a não exibir a marca quando usadas no plural. Quanto maior a
saliência fônica (quando há alteração fônica) mais frequente será o uso da
marca –S.
Do
exposto não se segue que não possamos encontrar uma ocorrência como a de (5a),
para a qual vale a regra geral, anteriormente anunciada:
(4a)
Desenhou uns coração # no papel.
Vale
notar que (1) pode apresentar a forma variante (1a):
(1a)
Comprei os livro # didático #.
Nesse
caso, cancelou-se a marca de plural tanto no núcleo quanto no determinante
pós-núcleo. O princípio geral que já anunciei continua valendo, mas se pode
propor outra explicação igualmente válida, a partir do princípio do paralelismo sintático. Reza esse
princípio que a presença de marca num dado elemento do sintagma leva à presença
de marca nos demais; correspondentemente, a ausência de marca em um elemento do
sintagma acarreta a ausência de marca no elemento seguinte. É o que sucede em
(1a), em que a ausência de marca no núcleo do sintagma (livro) leva ao
cancelamento da marca no determinante (didático).
Claro
está que, em nenhum momento, fiz qualquer juízo de valor sobre as ocorrências
aqui analisadas. Em nenhum momento, rotulei de “correta” ou “incorreta”
qualquer variante. Essa é, portanto, a postura de todo linguista. Ele se nega a
discriminar qualquer variante linguística, segundo critérios estéticos ou
valorativos, porquanto reconhece que qualquer discriminação dessa ordem não só
carece de fundamento científico, como também reproduz uma visão elitista sobre
a língua. Está preocupado, como vimos, em descrever (analisar) e explicar como
a língua funciona e se estrutura. Está preocupado em revelar as regras
subjacentes ao uso que os falantes fazem de sua língua, nas suas diferentes
variedades.
Que
continuem solicitando-me para que eu esclareça as famigeradas dúvidas não
resolvidas pela gramatiquice escolar, fartamente oferecida na mídia ou nos
manuais paradidáticos! Mas não sem o reconhecimento de que, por um lado, o
estudo da linguagem pode ser muito mais interessante do que saber o que se deve
ou não se deve falar, do que saber a forma correta da grafia de palavras ou a
conjugação do verbo “apropinquar”; por outro lado, eu não estou interessado em
policiar o comportamento linguístico de ninguém, apontando os supostos “erros”
(com aspas) que as pessoas acreditam cometer. Antes de ser professor de português, sou um
pesquisador, um estudioso; enfim, um linguista.
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