domingo, 21 de outubro de 2012

Parte 1 - Voltarei ao tema





Muito prazer, sou linguista

A situação é recorrente. Basta que alguém saiba que sou professor de português para demonstrar-se intimidado a falar. Tal atitude se baseia na crença, arraigada na consciência coletiva, em nosso país, de que todo professor de português é, necessariamente e ao mesmo tempo, um guardião da “pureza” da língua pátria e um policial linguístico. Destarte, de acordo com essa crença muito disseminada em nossa sociedade, ao professor de português compete o dever de zelar pela língua de prestigio (conhecida vulgarmente como a “língua correta”) e patrulhar o uso linguístico, de modo a detectar os recorrentes “desvios” ou “erros” cometidos pelos usuários da língua, relativamente a uma norma idealizada e balizada por um conjunto de práticas, valores e ideologias recoberto pelo termo gramática tradicional.
É comuníssimo o recorrer-se ao professor de português a fim de saber se uma palavra grafa-se com “s” ou “z”, ou se o correto é dizer “para mim fazer” ou “para eu fazer”. Em qualquer caso, o falante que busca esclarecimento deseja obter uma resposta que acene para o comportamento linguístico “correto”. Trata-se da obsessão pela correção idiomática. No imaginário dos falantes, o professor de português é o falante que mais bem conhece a língua nacional; e, portanto, socialmente, é esperado dele que assuma uma postura pedagógico-normativista em face da língua. É bem verdade que muitos professores de português se reconhecem nesse papel e o assumem sem maiores preocupações. Para citar dois exemplos, professores celebrados na mídia televisiva tais como Pasquale Cipro Neto e Sérgio Nogueira costumam prestar serviços como consultores da língua portuguesa. Ambos possuem colunas em jornais de grande circulação no país, nas quais escrevem a fim de esclarecer os leitores sobre suas dúvidas em matéria de língua portuguesa.
Há, no entanto, muitos professores de português, em sua maioria atuantes como pesquisadores (com doutorado) nos mais diversos centros de pesquisa em linguagem nas grandes universidades estaduais e federais de nosso país, que, sendo linguistas (ou seja, cientistas da linguagem) não assumem uma postura normativista no tratamento dos fenômenos linguísticos. Não estão eles preocupados em ditar o que é “certo” ou “errado” no uso que os falantes nativos de português fazem de sua língua. Sendo pesquisadores, estudiosos da linguagem, especialmente da língua portuguesa, especialistas cujos estudos se desenvolvem na esteira da Linguística moderna, eles estão interessados em descrever e explicar a estrutura e o funcionamento da língua portuguesa. Dizer que eles são cientistas na área dos estudos linguísticos significa dizer que são pessoas cujas pesquisas se valem de métodos e técnicas variados, muito embora regidos pelo princípio positivo comum a todo empreendimento científico, a saber, o mostrar o que é uma coisa na base de uma observação sistemática.
Não posso ignorar o fato de que a Linguística, em virtude da própria natureza de seu objeto observacional (a língua(gem)) tem de lidar com algumas dificuldades, que não parecem encontrar repercussão em outras ciências. De qualquer forma, etapas como observação, descrição, comparação, análise e síntese, contempladas no método científico, constituem tarefa do linguista quando se debruça sobre um dado fenômeno linguístico. Não vou me deter na problemática em que repousa a determinação de um fenômeno linguístico a ser estudado.
O que espero fique claro é que a Linguística é um ciência, com uma metodologia e objeto próprios. Essa ciência abriga uma gama variada de teorias ou perspectivas teóricas, em virtude da própria heterogeneidade de seu objeto de estudo - a língua(gem). Dependendo do ponto de vista com que definimos uma língua, haverá diferentes perspectivas teóricas (estruturalismo, gerativismo, funcionalismo, as teorias do texto e discurso, sociolinguística, linguística cognitiva, etc.). Não obstante a diversidade de abordagens, uma e outra podem ser reunidas num mesmo grupo, por guardarem entre si pressupostos em comum. Assim, o estruturalismo e o gerativismo são recobertos pelo rótulo formalismo, pois que se trata de abordagens que se preocupam em estudar a forma (estrutura) da língua desvinculada do uso ou do contexto sócio-cultural em que é usada.
Como toda minha formação até o presente momento tem sido orientada pelos postulados da visão científica de língua(gem), minha postura sobre a língua portuguesa e seu uso não é normativista.  Sou um estudioso da língua, alguém que se preocupa em observar e entender os diferentes usos da língua portuguesa feitos pelos seus falantes nativos, independentemente de sua classe socioeconômica, faixa etária, origem geográfica, grau de escolarização e gênero. Sou também um professor combatente de toda forma de discriminação social pelo uso da linguagem; sou, portanto, avesso ao preconceito linguístico tão arraigado na consciência social dos brasileiros.
Vejamos, para finalizar, um exemplo de como procede um linguista no trabalho de descrição e explicação de um dado fenômeno linguístico. Tendo observado ocorrências como as listadas abaixo,

(1)     Comprei os livros didáticos
(2)     A gente pesca em outras escama #
(3)     Ele tem três barco #

(o # indica o cancelamento da marca –S de plural)

buscará o linguista descrevê-las e explicá-las à luz de determinados pressupostos teóricos e na base de um conjunto de hipóteses.
Estamos diante do fenômeno conhecido por concordância nominal, isto é, a que ocorre, no interior de um grupo nominal, entre um substantivo-núcleo e um determinante (artigo, numeral, pronome, adjetivo). A ocorrência (1) é típica da variedade linguística de prestígio, que ilustra o comportamento linguístico dos indivíduos mais escolarizados de nossa sociedade. Em (1), marca-se o plural em todos os elementos do grupo nominal (chamado “sintagma nominal”). Trata-se de uma forma de marcação redundante do plural, já que a marca -S se repete em cada uma das unidades componentes do grupo.
Nas demais ocorrências, notamos a ausência da marca de plural sistematicamente no segundo elemento do grupo nominal. Essa é uma observação importante a ser registrada: nos grupos nominais constituídos de apenas dois elementos, o cancelamento da marca de plural –S ocorre tão-só no segundo elemento do grupo. Ocorrências como “o meninos” são agramaticais; não se verificam.
 A complexidade aumenta quando se observam casos em que o grupo nominal apresenta mais de dois elementos. No entanto, vou-me limitar a contemplar as ocorrências acima referidas.
Estudos mostram que é grande o índice de cancelamento da marca –S no núcleo do sintagma nominal formado por dois elementos, como ilustrado nas ocorrências acima.
Como princípio geral que rege a concordância nominal, nesses casos, postula-se que é suficiente marcar o plural apenas no primeiro elemento do sintagma, geralmente um artigo ou pronome adjetivo (algum, este, esse...), para indicar que todo o grupo nominal deve ser interpretado como pluralizado. Essa é a regra seguida nas variedades da língua de menor prestígio.
O caso (3) demonstra-se, particularmente, interessante, em virtude da presença do numeral. Estudos apontam para a sistematicidade com que a marca –S é cancelada no núcleo quando na posição pré-nuclear se acha um numeral. Ou seja, havendo um numeral o cancelamento é a norma.

Três                barco           aportaram.
pré-núcleo       núcleo

Linguistas há que constataram maior frequência de cancelamento nas formas cujo plural se faz tão-só pela anexação da marca –S, como nos casos avaliados, se comparados com os casos em que a marcação do plural com –S se acompanha de uma alteração fônica (cf. coração / corações). Assim, em (4), a marcação do plural seria mais frequente:

(4) Desenhou uns  corações no papel.

Para explicar por que nos casos em que a marcação do plural que se acompanha de uma alteração fonológica no interior da palavra a concordância nominal se verifica no grupo, propõe-se o princípio da saliência fônica. Consiste este princípio na ideia de que as formas em que a diferença entre singular e plural é marcada apenas pelo acréscimo de –S seriam mais suscetíveis a não exibir a marca quando usadas no plural. Quanto maior a saliência fônica (quando há alteração fônica) mais frequente será o uso da marca –S.
Do exposto não se segue que não possamos encontrar uma ocorrência como a de (5a), para a qual vale a regra geral, anteriormente anunciada:

(4a) Desenhou uns coração # no papel.

Vale notar que (1) pode apresentar a forma variante (1a):

(1a) Comprei os livro # didático #.

Nesse caso, cancelou-se a marca de plural tanto no núcleo quanto no determinante pós-núcleo. O princípio geral que já anunciei continua valendo, mas se pode propor outra explicação igualmente válida, a partir do princípio do paralelismo sintático. Reza esse princípio que a presença de marca num dado elemento do sintagma leva à presença de marca nos demais; correspondentemente, a ausência de marca em um elemento do sintagma acarreta a ausência de marca no elemento seguinte. É o que sucede em (1a), em que a ausência de marca no núcleo do sintagma (livro) leva ao cancelamento da marca no determinante (didático).
Claro está que, em nenhum momento, fiz qualquer juízo de valor sobre as ocorrências aqui analisadas. Em nenhum momento, rotulei de “correta” ou “incorreta” qualquer variante. Essa é, portanto, a postura de todo linguista. Ele se nega a discriminar qualquer variante linguística, segundo critérios estéticos ou valorativos, porquanto reconhece que qualquer discriminação dessa ordem não só carece de fundamento científico, como também reproduz uma visão elitista sobre a língua. Está preocupado, como vimos, em descrever (analisar) e explicar como a língua funciona e se estrutura. Está preocupado em revelar as regras subjacentes ao uso que os falantes fazem de sua língua, nas suas diferentes variedades.
Que continuem solicitando-me para que eu esclareça as famigeradas dúvidas não resolvidas pela gramatiquice escolar, fartamente oferecida na mídia ou nos manuais paradidáticos! Mas não sem o reconhecimento de que, por um lado, o estudo da linguagem pode ser muito mais interessante do que saber o que se deve ou não se deve falar, do que saber a forma correta da grafia de palavras ou a conjugação do verbo “apropinquar”; por outro lado, eu não estou interessado em policiar o comportamento linguístico de ninguém, apontando os supostos “erros” (com aspas) que as pessoas acreditam cometer. Antes de ser professor de português, sou um pesquisador, um estudioso; enfim, um linguista.







Nenhum comentário:

Postar um comentário