quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Sobre viver e morrer


                     


                              Ponderações sobre o pós-morte

Este texto foi produzido nesta triste semana em que vovó nos deixou.



A vida humana inclui a experiência com a morte. Ao atingir a faixa etária entre 9 e 10 anos, toda criança torna-se capaz de reconhecer a morte como um acontecimento natural da vida. Antes dessa fase, entre 5 e 9 anos, ela encara a morte como um acontecimento distante e chega a acreditar na impossibilidade de ela ou um ente querido morrer.
Dizer que todo ser humano tem experiência com a morte significa dizer que todo ser humano é consciente da morte. Todo ser humano sabe que vai morrer um dia e experiencia a morte alheia. Para muitos, a consciência da morte é aterrorizante e fonte de angústia. O drama humano representado na consciência de um indivíduo em face da certeza da morte se complica quando reconhece não poder escapar não só ao fato de que vai morrer, mas também ao fato de que ignora o que há depois da morte. O saber sobre a sua condição finita convive com a ignorância sobre o que lhe acontecerá depois da sua morte.
O drama, contudo, pode complicar-se ainda mais. Acontece que a vida humana é também um acontecimento que inclui a experiência com o sentido. Os seres humanos são caçadores de sentido. A necessidade de dar sentido ao mundo e à vida parece estar na raiz do desenvolvimento da capacidade de linguagem no homo sapiens. Não há possibilidade de construir sentidos, de estruturar as experiências de mundo, tornando-as dados da consciência, sem linguagem. Os homens usam a linguagem para produzir significados nas suas mais diversas experiências de mundo. Nossas relações com o mundo e uns com os outros são construídas simbolicamente.
Dar sentido à vida e à morte é uma necessidade inerente ao ser humano. O sentido preenche o vazio legado pela angústia decorrente de nossa consciência de seres mortais. Mas ele não resolve o problema da ignorância sobre o pós-morte. Tampouco consegue dar conta da ignorância sobre a finalidade da existência (diga-se de passagem, de quão árdua e dolorosa existência para muitos!). Em suma, não sabemos o que acontece depois que a luz dos olhos  de outrem se apaga, bem como não sabemos as razões por que viemos a conhecer a luz da vida. Vivemos imersos no Mistério. Nossa vida se desenvolve entre dois extremos de uma ignorância visceral: o não saber sobre a finalidade da vida e o não saber sobre o que há depois da morte.
Os materialistas dogmáticos dirão que não há nada para saber, porque não faz sentido falar em “depois da morte”. Não há nada depois da morte. O nada é o não-ser, a ausência de consciência, a supressão da funcionalidade orgânica. Segundo esse ponto de vista, morrer é simplesmente deixar de ser, retroceder ao estado anterior ao nascimento, em que não éramos. Nesse ‘nada’ que é a morte não há sentimentos, lembranças, desejos, sensações...não há mais um Eu.
Não raro, encontro ateus materialistas dogmáticos que cuidam possuir a verdade definitiva sobre a experiência de morte. Não hesitam em bradar aos quatro ventos que morrer é simplesmente tornar ao pó. Como podem estar tão certos  disso? A singularidade da vida neste que é, até onde sabemos, o único planeta que a tornou possível, é espantosa! Suas afirmações categóricas baseiam-se numa visão de mundo cientificista que não logra muita simpatia mesmo entre os cientistas mais brilhantes. Simplesmente, escapa à alçada da ciência emitir juízos sobre o que filosoficamente significa morrer. A morte, enquanto acontecimento humano, está envolta em mistério.
Um ente que nos deixa não é meramente um corpo que deixou de respirar, um corpo cujas funções orgânicas cessaram. Cada um de nós é único. E cada um de nós se sabe único. Somos dotados de personalidade e individualidade. Acumulamos experiências várias que definem quem somos e que jamais se equivalerão. Cada um de nós tem um sentimento de Eu. Esse Eu único é lançado à existência sem saber o porquê. E durante o breve período de vida, experimenta alegria, tristeza, prazer, dor, amores, desamores; chora, ri, se enraivece, estuda, trabalha, etc. São incontáveis as experiências em que se envolve esse Eu singular, que se sabe finito. 
A morte de uma pessoa é a morte de um Eu inigualável, irreproduzível. Quando uma pessoa morre, morre uma história de vida. Morre não um corpo, mas um ser consciente e extremamente complexo. Morrem seus ensinamentos e tudo aquilo que vivemos com ela.
Independentemente de termos fé ou não, de sermos crentes em deuses ou ateus, todos nós desejamos poder reencontrar as pessoas que amamos e que morreram (ou morrerão). Todos nós buscamos encontrar, depois que as cortinas se fecharem e o espetáculo da existência se encerrar, o sentido último, a verdade absoluta. Todos desejamos a inesgotabilidade da vida, ou seja, viver novamente, viver em outra condição, em outra realidade, mas viver, porque a vida é o bem maior que temos. E, sinceramente, desejo que os que não foram beneficiados com uma vida boa possa sê-lo após sua dolorosa existência aqui neste planeta hostil. O universo é vasto demais e nossa ignorância sobre ele maior ainda.
O que resta depois da morte, depois da perda do convívio, do existir (estar em relação com) é, além da saudade, o irresistível desejo. Fiquemos com o desejo, sem pretender torná-lo artigo de fé, sem pretender dar-lhe uma vestimenta dogmática, espiritualista ou materialista, religiosa ou ateísta. 

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