Ponderações sobre o
pós-morte
Este texto foi produzido nesta triste
semana em que vovó nos deixou.
A vida
humana inclui a experiência com a morte. Ao atingir a faixa etária entre 9 e 10
anos, toda criança torna-se capaz de reconhecer a morte como um acontecimento natural
da vida. Antes dessa fase, entre 5 e 9 anos, ela encara a morte como um
acontecimento distante e chega a acreditar na impossibilidade de ela ou um ente
querido morrer.
Dizer
que todo ser humano tem experiência com a morte significa dizer que todo ser
humano é consciente da morte. Todo ser humano sabe que vai morrer um dia e
experiencia a morte alheia. Para muitos, a consciência da morte é aterrorizante
e fonte de angústia. O drama humano representado na consciência de um indivíduo
em face da certeza da morte se complica quando reconhece não poder escapar não
só ao fato de que vai morrer, mas também ao fato de que ignora o que há depois
da morte. O saber sobre a sua condição finita convive com a ignorância sobre o
que lhe acontecerá depois da sua morte.
O
drama, contudo, pode complicar-se ainda mais. Acontece que a vida humana é também
um acontecimento que inclui a experiência com o sentido. Os seres humanos são
caçadores de sentido. A necessidade de dar sentido ao mundo e à vida parece estar
na raiz do desenvolvimento da capacidade de linguagem no homo sapiens. Não há possibilidade de construir sentidos, de
estruturar as experiências de mundo, tornando-as dados da consciência, sem
linguagem. Os homens usam a linguagem para produzir significados nas suas mais diversas experiências de mundo. Nossas relações com o mundo e uns
com os outros são construídas simbolicamente.
Dar
sentido à vida e à morte é uma necessidade inerente ao ser humano. O sentido
preenche o vazio legado pela angústia decorrente de nossa consciência de seres
mortais. Mas ele não resolve o problema da ignorância sobre o pós-morte.
Tampouco consegue dar conta da ignorância sobre a finalidade da existência
(diga-se de passagem, de quão árdua e dolorosa existência para muitos!). Em
suma, não sabemos o que acontece depois que a luz dos olhos de outrem se apaga,
bem como não sabemos as razões por que viemos a conhecer a luz da vida. Vivemos
imersos no Mistério. Nossa vida se desenvolve entre dois extremos de uma
ignorância visceral: o não saber sobre a
finalidade da vida e o não saber
sobre o que há depois da morte.
Os
materialistas dogmáticos dirão que não há nada para saber, porque não faz
sentido falar em “depois da morte”. Não há nada depois da morte. O nada é o
não-ser, a ausência de consciência, a supressão da funcionalidade orgânica.
Segundo esse ponto de vista, morrer é simplesmente deixar de ser, retroceder ao
estado anterior ao nascimento, em que não éramos. Nesse ‘nada’ que é a morte
não há sentimentos, lembranças, desejos, sensações...não há mais um Eu.
Não
raro, encontro ateus materialistas dogmáticos que cuidam possuir a verdade
definitiva sobre a experiência de morte. Não hesitam em bradar aos quatro
ventos que morrer é simplesmente tornar ao pó. Como podem estar tão certos disso? A singularidade da vida neste que é, até onde sabemos, o único planeta que a tornou possível, é espantosa! Suas
afirmações categóricas baseiam-se numa visão de mundo cientificista que não
logra muita simpatia mesmo entre os cientistas mais brilhantes. Simplesmente,
escapa à alçada da ciência emitir juízos sobre o que filosoficamente significa
morrer. A morte, enquanto acontecimento humano, está envolta em mistério.
Um ente
que nos deixa não é meramente um corpo que deixou de respirar, um corpo cujas
funções orgânicas cessaram. Cada um de nós é único. E cada um de nós se sabe
único. Somos dotados de personalidade e individualidade. Acumulamos
experiências várias que definem quem somos e que jamais se equivalerão. Cada um
de nós tem um sentimento de Eu. Esse Eu único é lançado à existência sem saber
o porquê. E durante o breve período de vida, experimenta alegria, tristeza,
prazer, dor, amores, desamores; chora, ri, se enraivece, estuda, trabalha, etc.
São incontáveis as experiências em que se envolve esse Eu singular, que se sabe finito.
A morte
de uma pessoa é a morte de um Eu inigualável, irreproduzível. Quando uma pessoa
morre, morre uma história de vida. Morre não um corpo, mas um ser consciente e
extremamente complexo. Morrem seus ensinamentos e tudo aquilo que vivemos com
ela.
Independentemente
de termos fé ou não, de sermos crentes em deuses ou ateus, todos nós desejamos
poder reencontrar as pessoas que amamos e que morreram (ou morrerão). Todos nós
buscamos encontrar, depois que as cortinas se fecharem e o espetáculo da
existência se encerrar, o sentido último, a verdade absoluta. Todos desejamos a inesgotabilidade da vida, ou seja, viver novamente, viver em outra condição, em outra realidade, mas viver, porque a vida é o bem maior que temos. E, sinceramente, desejo que os que não foram beneficiados com uma vida boa possa sê-lo após sua dolorosa existência aqui neste planeta hostil. O universo é
vasto demais e nossa ignorância sobre ele maior ainda.
O que
resta depois da morte, depois da perda do convívio, do existir (estar em
relação com) é, além da saudade, o irresistível desejo. Fiquemos com o desejo,
sem pretender torná-lo artigo de fé, sem pretender dar-lhe uma vestimenta
dogmática, espiritualista ou materialista, religiosa ou ateísta.
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