
Desembaraçando a lógica da fé
Já
tive a oportunidade de comentar este diálogo quando deparei com ele pela
primeira vez no facebook. Mas eu não
pude dispensar sobre ele um exame detido. Pretendo fazê-lo agora. Uma leitura
atenta mostra-nos uma série de inconsistências lógico-semânticas e
argumentativas.
Assumo
o pressuposto de que todo ato de linguagem é, essencialmente, argumentativo. E
este diálogo de autoria anônima, que circula naquela rede social, foi produzido
com o propósito de fazer apologia à fé cristã. O seu autor, recorrendo a certas
sofisticações argumentativas (como o recurso a analogias e ilustrações),
tentará mostrar que Deus existe pelo simples fato de o cristão poder senti-lo.
O autor tentará nos convencer de que se pode provar a existência de Deus pelo
simples fato de o sentirmos.
Comecemos,
pois, a desembaraçar os liames argumentativos, a fim de que notemos as
fragilidades do raciocínio.
O
ateu é categórico e inicia asseverando a inexistência de Deus (Eu digo [que
Deus não existe]), ao que o cristão responde asseverando o contrário (Eu digo
[que Deus existe]). Produz-se, então, o conflito.. É interessante notar que a
participação do ateu é, no entanto, discreta; ele foi reduzido a mero
coadjuvante. A ele é atribuído uma conclusão logicamente inaceitável (“Então,
Deus não existe”), tendo em conta a resposta do cristão, após ser instando a
provar a existência de Deus. Nas duas últimas contribuições do ateu, ele se
limita apenas a responder: à sugestão de uma imagem, através da qual ele é
levado a imaginar uma situação comum da experiência humana (a de saborear uma
laranja), ele responde “sim” (ou seja, “compreendo, prossiga...”); ao que faria
caso o cristão negasse uma evidência, ou seja, a de que a laranja está doce
(nesse caso, o ateu diz que sugeriria ao cristão que experimentasse a laranja
para certificar-se de que ela está doce).
Vê-se
que o ateu não atua argumentativamente. Apenas o cristão ocupa a posição de
assenhorear a argumentação. Prossigamos...
O
ateu solicita a prova. Duas palavrinhas são, particularmente, importantes para
que compreendamos como a tentativa de sobrepujar a descrença do ateu é falha:
“prova” e “experimentar” (que evoca sua derivada “experiência”). Vamos refletir
um pouco sobre o significado científico-filosófico destas três palavras
“prova”, “experimentar” e “experiência”.
O
cristão nega que possa provar a existência de Deus. Mas o que significa provar,
nesse caso? Ou melhor, o que é prova, num sentido epistemológico? Vamos
distinguir dois domínios semânticos nos quais podemos situar o conceito de
‘prova’. O primeiro domínio é o lógico-argumentativo. Aí a prova é a
demonstração da validade de uma proposição. Ela demanda o desenvolvimento de
uma argumentação que nos leve a reconhecer ou aceitar a verdade de uma
proposição. O segundo domínio é o experimental. Aí prova-se quando uma hipótese
se demonstra verdadeira pela observação dos fatos. Nesse caso, testamos uma
hipótese fazendo experimentos; se os resultados confirmarem a verdade da
hipótese, diremos que dispomos de uma prova.
Se alguém duvida da verdade da proposição “A água ferve quando atinge 100 graus
de temperatura”, pode-se provar medindo-se a temperatura da água (estou
ignorando variáveis como estar acima do nível do mar). Creio que tenha ficado
claro que, no segundo sentido, prova se prende ao domínio da experiência e da
observação (empirismo). Para provar a validade de minhas crenças sobre estados-de-coisas
do mundo, faço experimentos, testo hipóteses, vou até a realidade para, na
relação com ela, buscar as respostas, as provas.
Abro
um parêntese para falar, com brevidade, de outro conceito importante: o da evidência. Temos muitas crenças, em nossa
vida cotidiana, que não se apóiam em evidências, ou se sustentam em evidências
insuficientes. Uma evidência é a revelação da realidade. A verdade resulta da
evidência, ou seja, do desencultamento da realidade. A evidência é o critério
para a verdade. Uma coisa será verdadeira se tivermos acesso a evidências que
lhes garanta essa qualidade. Enquanto as evidências nos levam à certeza ou à
verdade, os indícios só nos levam a inferir uma certeza relativa, porque
exprimem apenas possibilidade ou probabilidade.
Que
dizer da experiência? O que significa dizer que alguém tem experiência de
alguma coisa? Significa que ela tem um conhecimento espontâneo, vivido, em
virtude de suas inúmeras relações com o mundo e com os outros. Ter experiência
envolve um relacionamento de um sujeito cognoscente com um mundo e com outros
sujeitos. No domínio da ciência, a experiência é uma forma de ação, através da
qual se observa ou se experimenta a fim de, ou elaborar hipóteses, ou de
corroborá-las. Partindo de determinadas condições, busca-se, na experiência,
conhecer a natureza de um fenômeno. O fenômeno é aquilo que se mostra, que se
dá aos sentidos (visão, audição, olfato, tato e paladar). Assim, por exemplo,
se pretendemos demonstrar a verdade da proposição “o álcool é um líquido
inflamável”, basta termos um pedaço de papel e uma caixa de fósforos. Ateando
fogo num papel, embebido em álcool, veremos o papel ser consumido em pouco
tempo. É claro que é desejável repetir a experiência com outros objetos, para,
a partir daí, raciocinando por indução, chegar à certeza. Ou podemos estudar os
componentes químicos do álcool, analisando-os, na sua relação com o ambiente externo (p. ex. temperatura ambiente), para verificar seu potencial
inflamável. Sabe-se que o álcool compõe-se de hidrogênio, que reage com o oxigênio do ar, formando água. A união dos dois elementos químicos é que alimenta as chamas. A facilidade com que ele faz um objeto pegar fogo se explica pela facilidade com que ele evapora. A evaporação torna a união com o ar mais efetiva.
Voltemos ao diálogo.
Note-se
que o ateu tem uma experiência sensorial da doçura da laranja. Ele sabe que a laranja
está doce, porque ele a experimenta, a degusta e pode, pelo paladar, sentir sua
doçura. A afirmação do cristão de que ela não está doce é facilmente
falsificável. Basta que ele ponha à prova esta afirmação, verificando, por si
mesmo, a doçura da laranja. O importante é reter que o saber, nesse caso,
provém da experiência. Assim, tanto um quanto outro podem saber que a laranja
está doce, experimentando-a.
O
último turno da fala do cristão é problemático, por várias razões. Deve-se
notar, em princípio, o uso do operador argumentativo “então”. Ele não só fecha
o raciocínio anterior, como também conduz o interlocutor a assentir na
argumentação conclusiva cujo desenvolvimento se inicia. O primeiro grande
problema se verifica na construção da frase comparativa, que reproduzo abaixo:
“Assim como você sabe que a
laranja é doce, porque [sic.] está sentindo que ela é doce, assim eu sei que Deus existe, pois eu o
sinto”.
Creio
não ser difícil a um leitor experiente perceber que a proposição “Deus existe”
que integra a oração completiva do verbo “saber” (sei que Deus existe) não
encerra como pressuposto um fato. Verbos de valor epistêmico como o verbo
“saber” tem a função permitir ao falante a pressuposição de que a oração
completiva é factual. Em outras palavras, se eu digo “Eu sei que você não foi à
escola”, assumo como fato pressuposto o estado-de-coisas “você não foi à
escola”. Ora, a proposição “Deus existe” não pode ser provada, não pode ser
tomada como fato. Daí a impropriedade no uso de verbo “saber” para exprimir
conhecimento sobre a existência de um ser imaterial como Deus. Por outro lado,
é, logicamente, aceitável usar o verbo “saber” para expressar o conhecimento
sobre a doçura da laranja, que é um ser do mundo material, que se nos impõe à
experiência sensível. Se eu digo “Eu sei que essa laranja é doce”, assumo como
fato pressuposto o conteúdo “a laranja é doce”.
Notemos
como se justifica o conhecimento num e noutro caso. No caso do ateu, ele sabe
que a laranja está doce, “porque está sentindo” (está tendo uma experiência
sensível da qualidade ‘doçura’). Nesse caso, justifica-se o conhecimento pela
experiência sensível (empirismo). Tal não ocorre, quando se justifica do mesmo
modo a suposta certeza da existência de Deus, já que não é da mesma natureza a
experiência de sentir a doçura da laranja e “sentir” (seja lá qual for o
significado do verbo, nesse caso) a Deus. Passamos do plano da experiência
sensível para um tipo de experiência psicológica extraordinária, da qual nos
fala, com propriedade, Sam Harris (2009). O fato de admitirmos ser ela incomum,
em algum sentido, “elevada” não implica haver um objeto transcendente envolvido
nela. Em A morte da fé (2009), o
filósofo e neurocientista, Sam Harris, dedica um capítulo para tratar da
consciência. Lá, ele observa:
“Embora vivamos em geral dentro
dos limites impostos pelo nosso uso normal da atenção – nós acordamos,
trabalhamos, comemos, assistimos televisão, conversamos com os outros,
dormimos, sonhamos – a maioria de nós sabe, mesmo que vagamente, que é possível
ter experiências extraordinárias”.
(p. 237)
Mais adiante, reconhece ainda o
autor:
“Nenhuma palavra capta a sensatez
e a profundidade da possibilidade que devemos considerar agora: que existe uma
forma de bem-estar que supera todas as outras que, na verdade, transcende os
caprichos da própria experiência”.
(p. 239)
Harris
lança mão dos termos “espiritualidade” ou “misticismo” indiferenciadamente, a
fim de designar essa forma de experiências extraordinárias da consciência. Se
formos buscar compreender a vasta significação do conceito de misticismo ou
experiência mística, encontraremos, nessa busca, a ideia de que o místico é
aquele que tem uma experiência de pertencimento a um Todo (o Universo, Deus, o
Espírito universal, o Vazio absoluto, ou qualquer outra). Não raro, se ouve um
místico, dizer que, num instante de êxtase, teve uma experiência de
esvaziamento do eu, de desprendimento dos sentidos. Ele se sente como se
vivesse fora da temporalidade, para além das quatro dimensões que caracterizam
a existência mundana.
Que o
cristão de nosso diálogo revele, sinceramente, poder ter uma experimentação de
consciência incomum e extasiante e que devemos legitimar essa experiência como
uma das inúmeras possibilidades de experiências humanas não redunda que devemos
aceitar como incontestável a existência de Deus ou mesmo a possibilidade de
experienciar essa existência, como quer o cristão.
É
notável como o discurso religioso está impregnado de figuras de linguagem,
entre as quais alegorias e metáforas. Notemos o uso que se faz da palavra
“presença”, no sintagma “a presença de Deus”. Toda presença envolve uma
revelação, envolve a possibilidade de que algo seja encontrado em algum lugar. A
presença implica um estar aqui e agora. Os mortos não estão mais presentes
entre nós, também a pessoa distante não está presente onde eu me encontro. Se
fôssemos tentar analisar os semas da palavra “presença” (semas são os mínimos componentes de significado de uma palavra),
certamente não poderíamos deixar de incluir na lista traços semânticos como
‘existência’, ‘concretude’, ‘tempo atual’, ‘animado’. No núcleo de seu sentido,
há a referência a seres concretos e animados (pessoas ou animais),
imediatamente acessíveis num aqui e agora e, portanto, existentes. Claro é que
podemos estender seu uso a fim de que sua semântica abrigue noções abstratas
como a de “amor”. Podemos dizer “Sinto a presença do amor nesta casa”. Concretizamos o amor, conferimos-lhe a
qualidade de um ser existente entre outros. Sabemos, contudo, o que queremos
dizer com essa frase. Dizemos algo como “as pessoas que vivem nesta casa se
amam umas as outras, vivem em harmonia”.
Se é
possível falar na presença do amor, da felicidade, da tristeza ou de qualquer
que seja a noção abstrata, qual é o problema ao enunciar “a presença de Deus”?
O problema é que, ao contrário do que sucede nos casos anteriores, a presença
de Deus é tida como uma presença verdadeira de um ser existente no aqui e agora
do mundo. Interessante é que Deus “existe” no mundo, embora, ao mesmo tempo,
seja transcendente ao mundo (ou seja, é concebido como um ser superior,
supranatural e exterior ao próprio universo, cuja existência é inteiramente
dependente desse Ser). Mas não basta que se assuma como verdadeira a presença
desse ser, é preciso dogmatizá-la e defendê-la como uma verdade incontestável.
É preciso cuidar-se detentor de uma “verdade” que deve estar a salvo das
suspeitas dos céticos e contestadores. O
problema, a meu ver, é, na verdade, transformar as metáforas em verdades que
devem ser impostas ad nauseam.
Se eu falo na presença de Deus, falo na
presença de um ser atravessado pela temporalidade cujo eixo é o presente. Mas,
ao mesmo tempo, diz-se que Deus é intemporal, é eterno, vive para além de toda
temporalidade. Deus é um ser que existiria fora do tempo, mas, de forma
misteriosa, ele consegue se fazer presente, ou seja, existir no tempo. Sempre
que nos damos ao trabalho de pensar sobre a linguagem construída para se falar
de Deus, somos levados a perceber a construção linguística de um ser que é
fantástico (no sentido de “quimérico”, próprio da imaginação). E percebemos
mais: percebemos que as formas como se constroem os discursos sobre Deus, as
formas como se elaboram os pensamentos sobre Deus entram em conflito lógico-semântico.
Como vimos, se Deus é um ser intemporal, ou seja, que escapa ao tempo, que
existiria fora do tempo, que é eterno, como poderia fazer-se presente para a
existência humana que é, por definição, atravessada pela temporalidade? Não
conhecemos outra forma de existir senão no tempo e no espaço. Kant ensinava que
tempo e espaço só existem dentro de nós, como condições do conhecimento, como
formas puras de nossa sensibilidade
(o conceito de sensibilidade em Kant diz respeito à capacidade humana de
formarmos representações de objetos, em virtude dos modos como eles nos
afetam). Como nós, seres temporais, podemos experienciar um Ser intemporal?
Finalmente,
quero acrescentar alguns comentários sobre outro trecho do diálogo, antes de
concluir. No último turno de fala do cristão, lê-se:
“...
o único modo de você acreditar é se você experimentar e por
si mesmo sentir a presença de Deus”.
Já
falei do problema envolvido no uso do verbo sentir.
Chamo agora a atenção dos meus leitores para o uso do adjetivo “único”. Quando usamos adjetivos como “único” deixamos
ao interlocutor a possibilidade de pressuposição de outro conteúdo, qual seja,
‘não há outro modo de acreditar’.
Veja-se outro exemplo: “A única maneira de você ser feliz é cansando-se
com ela”. Admite-se que não há outra maneira de a pessoa ser feliz senão casando-se
com a pretendente. Claro está que, para o cristão, não há outro caminho que
leve à crença senão o da experiência da presença de Deus. Podemos ou devemos
discordar dele? Decerto. Seja lá o que se entende por “experiência de Deus”,
creio ser ela, por si só, incapaz de angariar as pessoas para a fé ou a crença
em Deus. Se assim pensássemos, seríamos forçados a ignorar a importância de todo
o trabalho laborioso de doutrinação empreendido por milênios pela Igreja
cristã. Uma pessoa crê em Deus – num Deus do mundo ocidental, que tem raízes na
cultura judaico-cristã, num Deus moldado no imaginário hebraico-cristão –
porque ela foi exposta a experiências de doutrinação, de catequização que
começou, de modo informal, no seio de sua família, formalizando-se em suas
experiências como paroquiana na Igreja. É nelas que a consciência religiosa se
molda, se engessa. É somente depois de se submeter a longos períodos de
ensinamentos da doutrina da Igreja, apoiados, em grande parte, na Bíblia (digo em grande parte, porque, no caso da
Igreja Católica, por exemplo, o dogma da Santíssima Trindade não tem respaldo
nos ensinamentos dos evangelistas, tendo sido uma criação de Atanásio, um jovem diácono da igreja de Alexandria, à época,
confirmada pelo Concílio de Nicéia em 325 d.C.) que uma pessoa poderá dizer ser
possível experimentar a Deus. O poder
experimentar a Deus é consequência da
incessante martelação doutrinária a que se submete, àquela altura, o neófito.
Os que se recusam a submeter sua capacidade de autonomia intelectual, sua
liberdade de exercício do pensamento crítico às demandas da fé dificilmente
creem poder experimentar a presença de Deus, já que colocam a possibilidade da presença
de tal ser sob o crivo da razão. Os que se recusam tenderiam a lançar sobre
essa suposta presença as luzes intensas dos holofotes racionais, de modo que da
presença não restaria senão a consciência da força da imaginação; a presença se
dispersaria, deixando para trás apenas a presença do mundo, que, mesmo não
sendo o bastante para nos acalentar, é a única presença com que nós temos de
nos haver.
Se o
leitor chegou até aqui, deve ter-se dado conta de que é necessário esforçar-se
por não aceitar de antemão como verdades as manifestações discursivas, não
importa a que domínio pertençam. No domínio do discurso religioso, em que
prevalece o autoritarismo e o dogmatismo, é norma que as “verdades” sejam
impostas, sejam disseminadas, sem que seja permitido contestá-las. Expressões
do tipo “Deus é a luz do mundo” são esteticamente apreciáveis, se fossem parte
de um gênero literário. O problema é que se pretende que essa proposição
encerre uma verdade, um fato, sobre o qual não se pode sequer lançar uma sombra
de dúvida.
No
início deste texto, sugeri que a conclusão atribuída ao ateu – “Então, Deus não
existe” – como resposta à impossibilidade de o cristão provar a existência de
Deus era imprópria, porquanto, logicamente, do fato de eu não conseguir provar
que algo existe não posso concluir pela sua inexistência. Do fato de que nunca
se tenha registrado qualquer sinal de vida inteligente fora da Terra (por
exemplo, de seres conscientes e complexos como nós) não implica a
impossibilidade de esses seres existirem, já que vasto é o Universo e vasta a
nossa ignorância dele (a nossa via láctea tem aproximadamente 300 bilhões de
estrelas, a metade, provavelmente, inclui planetas). É certo, porém, que
cientistas como Marcelo Gleiser, embora admitam a possibilidade da existência
de vida inteligente fora da Terra, acreditam que é muito improvável que
tenhamos algum contato com ela, dada a vastidão do universo. (o leitor pode
assistir a este vídeo em que Marcelo Gleiser nos fala sobre a possibilidade de
existir vida extraterrestre (http://youtu.be/dQj0UtI0M5s).
Está
claro que, quando se trata da impossibilidade de provar a existência de Deus ou
de qualquer forma de divindade, não devemos concluir da ausência de prova a
inexistência. Isso é um erro lógico. Mas podemos falar em probabilidade, já que
a experiência que podemos ter das divindades são mediadas pela linguagem. Só
temos contato com representações linguísticas de Deus. Deus não fala, não se
mostra; são homens que falam a respeito de Deus, que definem Deus, que supõem
que, ao falar dele e defini-lo, tornam-no existente. Portanto, nossa
experiência de Deus é mera experiência com as palavras a respeito de Deus, com
as representações discursivas sobre Deus, que se torna, assim, objeto de
discurso. Feuerbach tinha razão ao nos ensinar que a consciência de Deus é
autoconsciência humana. Ao tomar consciência de Deus, o homem toma consciência
de sua própria essência, ou seja, de sua própria consciência. A linguagem de
Deus é a linguagem do homem.
Se
admitirmos que tudo que sabemos de Deus nos chega através do que disseram,
dizem, escreveram e escrevem seres humanos que viveram e vivem em determinada
comunidade cultural, numa determinada época, num dado contexto sócio-histórico,
político e ideológico; se, enfim, admitirmos que é pelas boca e mãos humanas
que nos é acessível o que sabemos sobre Deus, podemos pôr em confronto tais
representações de Deus com as ocorrências do mundo, com o modo como o mundo
funciona, com os saberes que temos a respeito do mundo, para, daí, nos assegurar
da improbabilidade da existência desse ser. É esse o desafio intelectual a que
se esquivam as pessoas religiosas em geral. Elas se negam a pôr em confronto
aquilo que sabem a respeito de Deus pelos anos em que se submeteram a alguma
forma de doutrinação com aquilo que sabem a respeito de fatos sobre o mundo. O
medo de pôr suas crenças à prova é que explica por que muitas pessoas podem assistir pela televisão a uma cidade devastada por um furacão, com milhares de desabrigados e
mortos e, embora assombradas com a tragédia, possam, à noite, orar a Deus pelas
vítimas ou para agradecer por mais um dia de vida, pela saúde, ou pelo o que
quer que seja. Na oração, elas experimentam a onipresença de seu ego e a
necessidade de mascarar sua indiferença ao sofrimento em escala mundial, um
sofrimento cuja verdade salta aos seus olhos, desde que acordam e as acompanha
até a hora de dormir. Esse sofrimento, que se manifesta de modos vários, neste
planeta de (sem) Deus, não é sequer cogitado como evidência para pôr a nu a mentira
da qual sua crença é um reflexo. Elas não podem, como seres humanos,
evitar a inconsistência entre a observação das ocorrências do sofrimento no
mundo e sua crença na existência de um Ser superior, providente, amoroso e bom.
Sua razão as ameaça no silêncio de sua negação a abrir os olhos do espírito e,
como forma de defesa, elas preferem evitar estar a sós com seus pensamentos. Se
confrontada a suposta presença de Deus com a verdadeira presença do sofrimento
no mundo e a hostilidade da natureza à vida dos seres que dela provieram e nela
vivem, pouco ou nada sobrará daquela presença. Onde o silêncio da reflexão
predomina, a presença de Deus vai fazendo seu trabalho, confinando bilhões de
seres humanos num sentimento de dependência infantil insuperável.
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