domingo, 19 de junho de 2011

"O amor se diz de muitos modos, mas só há uma forma de senti-lo" (BAR)

                                                  Releitura
Relacionamentos – Arnaldo Jabor

Decidi reler o texto Relacionamentos de Arnaldo Jabor, que figura aqui neste espaço, a fim de fazer uma leitura mais cuidadosa. 
O título do texto – Relacionamentos – já nos permite situá-lo num domínio semântico. Vamos ao dicionário. Na Enciclopédia e Dicionário Koogan Houaiss, encontramos, no verbete relacionamento, o seguinte:

“ato e efeito de relacionar/ amizade/ intimidade: travar relacionamento com alguém”

Como não nos satisfaça essa definição, vamos buscar o significado de seu derivante, relacionar. Destaco o que nos interessa:

“travar conhecimento com pessoas, fazer amizades/ manter relações”

É claro que as definições do dicionário pouco nos ajudaram a compreender o sentido de relacionamento no texto de Jabor e basta que comecemos a leitura para nos certificar de que relacionamento envolve relação afetivo-sexual entre um homem e uma mulher.
Já no limiar do texto, o autor rejeita a construção ideológica de amor do discurso romântico, já que, ao contrário do que veicula e prescreve essa formação discursiva, relacionamentos não duram para sempre. Os ideias de unidade, eternidade e sublimação atribuídos à experiência amorosa são desconstruídos, como se vê em:

“Sempre acho que namoro, casamento, romance tem começo, meio e fim. Como tudo na vida. Detesto quando escuto aquela conversa.
- Ah, terminei o namoro...
- Nossa quanto tempo?
- Cinco anos... Mas não deu certo... acabou
- É não deu...”

Note-se que se recupera aqui uma situação discursiva típica do cotidiano, em que os interlocutores compartilham uma representação da experiência amorosa. O fim do relacionamento é uma contrariedade em face das expectativas projetadas. É a realidade rejeitando nossos modelos ideológicos de felicidade.
O autor insistirá em que o parâmetro para avaliar a importância de um relacionamento não é a expectativa do ‘até que a morte nos separe’, mas quanto dele nos beneficiamos no tempo em que nos foi possível vivê-lo.
Se me permitem fazer uma observação que me parece pertinente, o autor instaura, em contraposição à visão romântica, uma visão que poderia chamar de realista. Essa visão realista admite a contingência, os versos e reversos e adversos da vida. Essa visão realista situa a experiência amorosa ou o relacionamento afetivo-sexual no domínio do real e não do imaginário, tipicamente romântico.
No entanto, convém notar que ele não deixa de aderir à visão predominante de nossa época: a do império do efêmero. Segundo ele, “o bom da vida, é que você pode ter vários amores”. Assim, os amores vão e vêm. E não nego a importância de experienciarmos muitos relacionamentos amorosos, já que disso depende nossa maturidade afetivo-emocional; mas discordo de que todas as experiências amorosas estão fadadas a ter um fim.
Outra forma de rejeitar o ideal romântico consiste em negar ao relacionamento a possibilidade de completude. O outro com que nos relacionamos não tem o papel de nos completar, porque ambos são inteiros, indivíduos que se bastam a si mesmos. Estou de acordo em parte. Um relacionamento deve enriquecer, e não preencher uma falta. Mas relacionamentos amorosos nos descentram; no amor, não há espaço para a centralidade do ego. Há, aqui, uma perspectiva influenciada pelo discurso da psicologia. Veja-se o que se segue:

“Se ele ou ela não te quer mais, não force a barra. O outro tem o direito de não te querer. Não lute, não ligue, não dê piti. Se a pessoa tá com dúvida, problema dela, cabe a você esperar ou não”

O autor nos mostrará que relacionamentos não seguem os scripts de nosso coração. Há perdas e ganhos, isso é inevitável. É preciso aprender a lidar com isso e nossa felicidade, com ou sem a pessoa amada, depende de como lidamos com as nossas frustrações, com as expectativas não realizadas, com o que deixamos de viver juntos. De certo modo, ele nos chama a atenção para a restituição do ‘eu’ que acaba, não raro, por se dissolver no relacionamento com o ‘outro’. É quando, apaixonados, nos perdemos no outro. Convém, no entanto, não assumirmos comportamento individualista que nos impede de nos relacionar. Por isso, insiste o autor “a pior coisa é gente que tem medo de se envolver”. Temer o envolvimento jamais! Relacionar-se afetivamente depende de uma abertura anímica, de uma entrega.
Em síntese, o que aprendemos é que o amor adulto não se refugia no imaginário, mas se desnuda nas inconstâncias, flutuações e contingências da vida. O amor é o quanto nos doamos, desejamos e nos desapegamos e nos preparamos para seus novos vôos; é o quanto priorizamos, o quanto nos reconhecemos imperfeitos e irracionais. Não há regras, não há parâmetros. Há apenas a vida do amor, que pode ser mais ou menos breve, mais ou menos intensa, mais ou menos extasiante. Enfim, no amor maduro “não há garantias”.
Que não há garantias, está bem; mas creio em que o amor é uma temática que tem implicações existenciais muito sérias. Quero, antes de pôr termo a este texto, refletir um pouco sobre a seguinte passagem:

“Nascemos sós. Morremos sós. Nosso pensamento é nosso, não é compartilhado. E quando você acorda, a primeira impressão é sempre sua, seu olhar, seu pensamento. Tem gente que pula de um romance para outro. Que medo é este de se ver só, na sua própria companhia?

Antes de me deter nessa passagem, vale dizer que amar é estar vulnerável. É não ter medo de envolver-se e de decepcionar-se. Há pessoas que preferem ficar à superfície, por medo de experimentarem dissabor, ilusão e decepção. Não ama quem tem medo de acumular algumas feridas na alma. A realidade do amor não compreende apenas campos floridos, para além destes haverá campos áridos e desérticos; não há só abundância, mas haverá escassez e períodos de seca.
É verdade que o nascimento e a morte são acontecimentos que experienciamos sozinhos. Mas usar isso como argumento para a necessidade do desapego é perigoso, porque não podemos nos esquecer de que existir é estar em relação com. Existir é movimento para o outro. Em outras palavras, nosso nascimento inaugurará uma série diversa de relacionamentos, que se iniciam em casa, com a nossa mãe e nosso pai. O ser humano é ser social, ser para a sociabilidade. E amor é relação. Mesmo quando amamos a nós mesmos, significa dizer que nos relacionamos com nós mesmos. E quantos de nós gostaríamos de morrer sozinhos?
Se, por um lado, nascemos “sozinhos”, não fomos preparados para viver sozinhos. A sociabilidade é algo inerente à nossa condição humana.
De uma perspectiva linguístico-discursiva, pensamentos são compartilhados, porque são formados nos discursos socializados. É claro que essa talvez não tenha sido a concepção do autor, pois que ele se refere a um pensamento auto-consciente, um pensamento subjetivo que se sabe de si mesmo. Sucede, contudo, que, ao nos relacionar, compartilhamos pensamentos, especialmente aqueles de que nos servimos para conduzir o relacionamento para um destino venturoso.
Acho que o amor, na fase adulta, nos põe diante do problema de manter a integridade do “eu”, sem centralizá-lo, sem conferir-lhe a primazia, ao mesmo tempo em que é preciso, descentralizá-lo, fazê-lo participante da vida do outro, sem privá-lo, sem cercear o domínio de sua atuação. Novamente, estamos diante do dilema: somos dois desejando um só. Não se conclua daí que somos “uno”, mas que o amor nos coloca num único sentido: o da reciprocidade.
Bem, o amor na fase adulta deixa de habitar nossos diários, para habitar a realidade mesma do cotidiano. O amor não é uma experiência conveniente nos momentos em que nos sentimos entediados, não é um passatempo, embora deva nos entreter; mas é uma experiência que deve constar da nossa agenda, que deve estar entre as experiências que escolhemos viver. Para uns, pode ser um momento, alguns dias, umas horas; para outros, pode ser um projeto, que é preciso iniciar e construir. Para uns, pode ser apenas um dos meios para se alcançar a felicidade; para outros, pode ser o fim último da felicidade, seu ápice.
Seja como for, na fase adulta, o que sabemos sobre o amor é que só aprendemos a amar amando. E isso não significa que nos tornaremos diplomados. Longe disso. O amor é uma singular experiência que a alma nunca alcança completamente e que o corpo deseja ardentemente, sem nunca conseguir abrangê-lo. O que sabemos talvez é que o amor exige a conjugação do corpo com a alma; exige, pois, a pessoa inteira (com seus desejos, sonhos, medos, raiva, frustrações...). Ele exige um retorno, uma doação de nós mesmos. Priorizá-lo ou não dependerá de nossa maturidade e do quanto já caminhamos na longa estrada que ele abre diante de nós.


Um comentário:

  1. Adorei a releitura! A profundidade com que analisa as palavras... A cronica de Jabor nas entrelinhas revela a fragilidade das relações modernas e põe em cheque o ideal de amor romantico... Ser adulto pode ser fácil. Só precisamos descomplicar a vida e ver o amor não como problema mas como diz o poeta "como o elemento mais importante da vida".
    Bjusss

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