O eterno presente
Não
resisto à vontade de varrer para fora do domínio conceitual de uma palavra, que
tenha valor teórico em algum campo do conhecimento, todos os vestígios do
senso-comum de que ela fica impregnada, porque largamente usada na linguagem
corrente. Assim, se não evito, cinjo ao máximo o espaço simbólico em que o
lugar-comum possa encontrar ensejo.
Começarei,
então, dando a conhecer ao leitor o propósito que persigo na produção deste
texto. Ontem, importunado por um sentimento1 que me deslocava do
agora, tornando-me desejoso do que ainda não existe, tomei a decisão de me
ocupar com a leitura de um livro que respondesse àquele sentimento, de modo a fazer
com que desistisse de me ocupar a alma. Não hesitei em escolher um livro de
André Comte-Sponville. Escolhi A vida
humana (2007) e li o último capítulo – o único, aliás, que ainda não tinha
visitado. O título, desde logo, me fora bastante atraente – Eternidade. Considerando-se o sentimento
como ‘disposição complexa’ e disposição – no sentido que lhe dá Jung – como certa
propensão da psique para agir ou reagir numa dada direção (não importando, para
tanto, a representação do objeto na consciência), precisei dar a esse
sentimento outro sentido (destino), porque ele me afastava demais do instante, do
presente – único tempo em que a existência é possível. O capítulo do livro de
Sponville, conforme veremos, respondeu satisfatoriamente àquele sentimento,
tornando-me conciliado com o presente.
1.
Sentimento: disposição complexa da pessoa, predominantemente inata e
afetiva com referência a um dado objeto (outra pessoa, coisa ou idéia
abstrata), a qual converte esse objeto naquilo que é para a pessoa. O
sentimento é simultaneamente identificado pelo objeto e por certas relações
entre a pessoa e esse objeto.
(Dicionário Técnico de Psicologia, p.
310)
O leitor talvez esteja supondo que o tema é
sobremodo abstrato, por encerrar uma ideia que representa algo cuja existência
será tomada de modo independente do ser (no caso, o homem) com que ela se
relaciona. É este o conceito de substantivo abstrato, de que eternidade é um
exemplo. Um substantivo se diz abstrato quando designa um estado, uma ação ou
uma qualidade que são tomados como independentes do ser ou coisa a que se
relacionam, como, por exemplo, bondade,
felicidade e aspereza.
Consoante veremos, a eternidade se
revestirá de concretude, nas especulações
de Sponville. Impregnado de valor místico-religioso, o conceito de eternidade
não se confundirá, no espaço discursivo instaurado pelo autor, com ‘duração
ilimitada’ ou ‘negação total da temporalidade’, ou ainda ‘estado de vida
transcendente’. Em Sponville, tomamos conhecimento da imanência da eternidade –
ou seja, não é ela uma experiência desejada e transcendente. Não é ela
transcendente, porque não é exterior a nós, não vai além do real. Ela é
imanente ao real. Vamos, então, acompanhar a argumentação do autor, doravante.
Creio ser possível essa experiência de eternidade sempre que nossa consciência
está toda ela imersa no presente; sempre que nos damos conta de que não há futuro
e de que o passado não é mais. Há tão-só o presente.
Antes de nos aventurarmos pelos caminhos
especulativos abertos por Sponville, convém reter a seguinte lição, que colhi
de Ferry e que gostaria de compartilhar aqui:
Para interrogar-se,
é necessário quem interroga e o objeto interrogado. Só pode interrogar aquele
que é capaz de distanciar-se da realidade que pretende interrogar.
Por isso, os animais são incapazes de
interrogar, já que eles e a natureza (o real) formam um só. Não é dado a eles
distanciar-se da natureza. Os animais e a natureza se confundem. Por outro
lado, os homens e a natureza são dois.
Antes que o leitor fique confuso – porque
pode ter-se dado conta de que Sponville não pensa a eternidade como negação da
mudança (por isso o identificá-la com o devir), é preciso levar em conta que
Sponville é ateu e, como tal, não poderá compreender a eternidade como
transcendente ao real, ao presente. Para ele, a experiência da eternidade é
possível, mas quando pensada na sua constitutividade do real, do presente. A
eternidade não está apartada do mundo, do real, do presente. Sem pretender
fazer incursão na sua perspectiva ateísta, limitar-me-ei a citar a passagem em
que ele define um ateu:
“Não
é que não creia em nada. Crê apenas no que existe – crê apenas no todo”.
(p 100)
O filósofo nos convida a repensar o como compreendemos
o tempo. O tempo existe para a consciência de modo segmentado. Mas, na
realidade, só há um tempo que é uno, totalizado num presente que permanece
presente (o ser). Assim, o que chamamos de passado não é nada (porque deixou de
ser); e o que chamamos de futuro também não é nada (porque ainda não é). Só há
o presente. Só há “apenas o presente do mundo” (p. 99). O tempo para a
consciência é tempo abstrato, que segmentamos em um antes, um agora e um
depois. Mas só o agora é real. Ou melhor, só o presente é real.
Como pensar o ser de Parmênides na relação
com a eternidade? O ser é “o presente que permanece presente” (p. 100). O ser
não sofre mudança, se a sofresse não restaria mais nada. O ser é tudo que há, é
“a presença de tudo” (id.ibid.). O ser, assim, identifica-se com a eternidade,
que, por sua vez, é o silêncio. De que silêncio se trata? Leiamos este passo de
Sponville, decerto intrigante:
“...O
homem é um animal religioso, pelo menos espiritual: não se concentra em
conhecer a verdade ou em buscá-la; de fato, precisa amá-la, contemplá-la,
recolher-se nela, mesmo que nela se perca ou se salve; e é bom que assim seja.
Rezar? Não é mais que pôr palavras no silêncio. Mas o silêncio, aquele que contém todas as palavras e que elas não
contêm, permanece”
(p. 101)
(grifo meu)
Vou deixar, por ora, em suspenso, o que o
autor entende por verdade e que relação tem ela com o ser, o devir e a
eternidade. Isso ficará claro mais adiante. Quero chamar atenção do leitor para
o trecho em negrito. De que silêncio se trata? Qual é o silêncio que contém
todas as palavras, mas que elas não o contêm? A resposta salta aos olhos: o
silêncio é a eternidade, ou, se preferirmos, o presente, que, embora contenha a
linguagem com que o pensamos, não pode ser plenamente compreendido com ela. É
importante perceber que a eternidade de Sponville exclui de seu domínio conceitual
o tempo abstrato, ou melhor, exclui o passado e o futuro. O silêncio e a
eternidade são o mesmo,
“(...)
já que o tempo (a soma intotalizável de um passado que já não é e um futuro que
ainda não é) só existe para o pensamento, já que só ganha verdadeiramente
consistência – e olhe lá! – por meio das palavras que servem para hipostasiá-lo
ou medi-lo.”.
(p. 101)
Cotejada ao real, a verdade se caracteriza
por ser una e eterna; o real, ao contrário, é mutável. Assim, segundo o
filósofo, “(...) esse pássaro que alça vôo: não voará para sempre, não viverá
para sempre e nunca retornará ao seu vôo” (id.ibid.). O real, contudo, se impõe
à verdade. Por isso, lembra o autor:
“Não
é porque era verdade desde sempre que ele alçaria vôo neste instante que esse
pássaro o faz; ao contrário, é porque ele o faz, aqui e agora, que era verdade
desde todo o sempre”.
(pp. 101-102)
Insisto em que a verdade é eterna – “se
alguém uma vez se banhou num rio, isso continuará sendo verdade eternamente”
(id.ibid.). Vimos que o presente identifica-se com a eternidade. Se só o
presente é real, então o real é a eternidade. A mudança que ocorre no real só
ocorre no presente. Não há uma mudança no tempo, de um antes para um depois.
Vimos que o passado não é mais; e o futuro ainda não é.
“Ontem
nunca existiu (quando ontem existia, não era um ontem: era um hoje). Amanhã
nunca existiu (quando existir, não será mais um amanhã: será um hoje).
Eternidade do presente. É sempre agora. É sempre hoje. É o que chamo o
sempre-presente do real, que é o próprio real”.
(p. 102)
Se o presente é eterno, bem como o é a
verdade, então toda verdade é presente. Portanto, uma proposição como ‘era
verdade’ é absurda, segundo o filósofo. “Se foi verdade, continua sendo; se já
não é, não era” (id.ibid.). Não há uma verdade futura. O mesmo raciocínio vale
para uma proposição como “será verdade”: “se for verdade um dia, já o é; se
ainda não é, não será jamais” (id.ibid.).
A verdade e o real se encontram no
presente: “o presente é, pois, o ponto de tangência entre o real e o
verdadeiro”. É preciso insistir que a eternidade não se define como uma vida
transcendente, em que a temporalidade é negada. A eternidade é a verdade desta
vida. O autor não admite a distinção entre eternidade e tempo, conforme se lê
abaixo:
“Enquanto
você diferenciar entre a eternidade e o tempo, você estará no tempo. Paremos de
sonhar com a salvação, a sabedoria, a libertação. A eternidade não é uma outra
vida, mas a verdade desta. Existe algo mais absurdo que esperar a eternidade?
Algo mais triste do que esperar a felicidade? Mas isso indica mais o caminho do
que o ponto de chegada, onde já estamos.”.
(p.103)
Finalmente, alcançar a sabedoria, tornar-se
sábio é aceitar a vida com serenidade, é regozijar-se dela, sem, contudo,
esquivar-se de mudá-la, “pois toda mudança faz parte dela” (id.ibid.).
Oi Bruno!
ResponderExcluirAdorei e achei muito interessante a sua argumentação sobre a eternidade presente que não vai além do real, deixando de ser abstrata e se revestindo de concretude.... Em essência, você tratou da questão da eternidade, verdade, do desejo pelo que ainda não é, mas me remeteu também a reflexão de que a nossa existência é atemporal, ou seja, somos a eternidade no presente.
Ontem li esse texto, mas já estava com muito sono e não comentei. Mas o ontem não existe mais por isso voltei pra fazê-lo ma minha eternidade presente rsrsrs.
Depois de ler esse texto, posso dizer com toda segurança que a nossa amizade é eterna! rsrs
Te adorooo!
Bjusss
concreto e abstrato são as questões!
ResponderExcluiro ser humano se baseia, irremediavelmente, nessa dicotomia. e pende, a meu ver, muito mais para o abstrato. e eis o motivo da fé; da esperança... e de toda a parafernália em q nos amparamos, tantas vezes, para fazer do real [o concreto; o presente?] mais suportável.
beijo, querido
e vamos pensando!