segunda-feira, 3 de setembro de 2012

"Deus é uma venda posta sobre os olhos da alma" (BAR)



                                       

                                                    O Deus do obscuro

Entre os muitos malefícios fartamente apontados pelos opositores das religiões organizadas, um me parece carecer de exposição formalizada – a saber, o da universalização do engano sobre como o mundo funciona. Como visão de mundo, as religiões oferecem um modelo de representação do real sobre o qual os crentes devem calcar suas interpretações. Pelo poder da doutrinação, os crentes aprendem a interpretar e compreender o mundo mediante esse modelo, que supõe, entre outras coisas, a existência de um criador todo-poderoso donde proveio o mundo.
No momento em que se coloca Deus como dispositivo ad hoc para compreender a complexidade do real, produz-se a ignorância generalizada sobre vários aspectos da realidade do mundo e sobre a natureza humana. Basta que confrontemos os discursos institucionalizados sobre Deus, aprendidos em muitos anos de exposição à doutrinação (em missas, cultos, catecismos, etc.) com as ocorrências da realidade, com a História mesma, que é produto das ações humanas, para que percebamos as dificuldades em que nos enredamos ao tentar alcançar uma compreensão do mundo.
Dois casos recentes são ilustrativos disso. O primeiro deles diz respeito a um acidente ocorrido com um operário da construção civil, no dia 15 de agosto. A cabeça do rapaz foi perfurada por um vergalhão. Tendo sido submetido a uma cirurgia, o rapaz sobreviveu e já recebeu alta (http://www.ovale.com.br/ultimas/acidente-rio-operario-tem-cabeca-perfurada-por-vergalh-o-e-sobrevive-1.299248). O neurocirurgião não hesitou em declarar à imprensa ter sido “um milagre” o fato de o homem não ficar com qualquer sequela – embora não se descarte a possibilidade de algum distúrbio de comportamento vir a se manifestar ao longo do tempo. Não me surpreenderia se muitos religiosos, tomando conhecimento do caso, também concordassem com o neurocirurgião.
O segundo caso diz respeito a uma jovem, de 25 anos, que fora atingida por uma roda de caminhão, na Av. Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 23 de agosto. A moça estava a caminho do trabalho, andando na calçada, quando se deu a fatalidade. Não obstante ter sido levada ao hospital, a jovem veio a falecer (http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/08/mulher-morre-atingida-por-roda-de-caminhao-na-avenida-brasil.html). Dois casos impressionantes; o segundo dos quais foi lamentavelmente trágico. Dois casos cujo desfecho se deu em sentido contrário.
Como explicar por que Deus não operou um milagre no caso da jovem morta por uma roda de caminhão? Por que Deus, nos seus infinitos poder e benevolência, não desviou a roda do caminhão de sua trajetória cujo alvo seria a jovem?  Uma resposta como “foi a vontade de Deus”, além de não satisfazer a busca por compreensão (não constitui ela mesma uma resposta às questões suscitadas quando confrontamos as representações de Deus com tais ocorrências), chega a ser obscena. Quando se coloca Deus em cena, não há espaço para o acaso, ainda que a vida nos dê muitas razões para que o reconheçamos.
Furacão Katrina, furacão Andrew, furacão Camille, Furacão "Labor Day" - são fenômenos naturais que ocorreram nos EUA e que causaram grandes danos no país. O primeiro matou mais de 24 pessoas; o segundo, deixou 250 mortos; o terceiro não poupou 600 pessoas. Hoje, mais um furacão tem causado estragos neste mesmo país. Em 1780, o furacão mais mortal da história, até hoje registrado, matou 27.500 pessoas, nas Pequenas Antilhas e no Caribe, atingindo Barbados, Martinica, Porto Rico e República Dominicana. Em 1755, a cidade de Lisboa ficou quase completamente destruída após um sismo a que se seguiu um tsunami, levando à morte mais de 10 mil pessoas. Certamente, foi um dos sismos mais mortais da história.
           Esses são alguns dos milhares de exemplos que constituem evidências de que este planeta que habitamos, esta natureza a que estamos biologicamente filiados, é, sem dúvida, hostil à nossa vida (a vida dos seres vivos que o habitam). E esta mesma natureza, da qual fazem parte esses fenômenos catastróficos e diversos microrganismos nocivos à vida (vírus, bactérias...) é obra, segundo a crença de mais de 2 bilhões de pessoas (sem incluir nesta estimativa os judeus, muçulmanos e espíritas), de um Deus benevolente e amoroso!
Assumir Deus como mecanismo de explicação das ocorrências do real coloca-nos uma questão insolúvel: como explicar que um Deus bom possa ter criado eventos tão catastróficos como furacões, tornados e terremotos? Vejam-se os terremotos. O que são eles? São tremores que ocorrem na superfície terrestre. O que os desencadeia? Eles podem ser desencadeados por alguma atividade vulcânica, por falhas geológicas ou pelo choque de placas tectônicas. A crosta terrestre constitui uma camada rochosa fragmentada, ou seja, formada por vários blocos chamados placas tectônicas. Essas placas estão em movimento constante. Quando se encontram em zonas de convergência, pode dar-se a colisão entre elas, do que resulta um acúmulo de pressão e descarga de energia, que toma a forma de ondas sísmicas, produzindo, assim, o terremoto. Esta é uma explicação bastante simples do que é um terremoto, mas suficientemente adequada à argumentação que venho desenvolvendo. O leitor poderá se perguntar por que Deus não poderia ter dado uma nova ordem a esse estado-de-coisas, por que não poderia ele ter criado um planeta sem esse fenômeno, muita vez, desastroso e nefasto. Sua onipotência, por definição, torna sua escolha isenta de qualquer coerção; Deus é o único ser que seria dotado de livre-arbítrio ou de liberdade absoluta.
Vejamos as doenças, agora. São elas incontáveis. Pensemos nos vírus, que são os principais agentes causadores de doença nos seres vivos. É verdade que os virologistas estudam os vírus não só para curar doenças, mas também para servir-se deles na produção de vacinas, em pesquisas com células (por serem organismos muito simples, auxiliam na compreensão da própria vida, que surgiu de organismos simples) e no combate a insetos (há vírus que atacam insetos, e os cientistas os estudam para que possam ser úteis na aniquilação de insetos que atacam as plantações). No tocante à importância dos estudos de vírus em pesquisas com células, pesquisas feitas com vírus que atacam bactérias permitiram aos cientistas compreender os genes e o DNA. No entanto, não é porque a “chave” para a solução de alguns de nossos problemas parece estar nos vírus (e bactérias) que os causa, que um mundo sem a presença desses organismos patogênicos não seria preferível. E não podemos nos esquecer de que, além desses agentes exteriores que podem causar sérios danos a nossa saúde, há também um distúrbio interno ao próprio organismo, que consiste no crescimento anômalo de células desproporcionalmente ao crescimento harmonioso dos órgãos vizinhos, ou seja, o câncer. E há que se levar em conta as doenças congênitas (defeitos em certas partes ou na estrutura do corpo herdados pelo bebê). Esses defeitos podem se manifestar na forma de disposições para desenvolver determinadas doenças. Há mais de mil tipos conhecidos de defeitos congênitos e as descobertas de outros defeitos não cessam. A consciência de que podemos nascer com tais problemas leva-nos a concluir pela fragilidade da vida, mas também deveria ser suficiente para rechaçar a hipótese da existência de um Deus benevolente. Não há nada que justifique o sofrimento de um ser humano que nasce, por exemplo, com uma doença conhecida como coréia de Huntington, que se acha latente no bebê quando do nascimento, mas que se desenvolverá na fase adulta, acarretando problemas na fala e nos movimentos, e levando a pessoa à morte.
Não tive a intenção, aqui, de desenvolver uma crítica pormenorizada, que exigiria um rigor maior na consideração de aspectos teológicos, filosóficos, históricos e científicos implicados em qualquer tentativa séria de avaliar o fenômeno religioso. A ignorância promovida pela doutrinação religiosa se estende também à privação do conhecimento pelos fiéis da própria história de formação de sua religião. É o caso do fiel que ignora fatos, há muito reconhecidos e incontestáveis, implicados na fabricação da bíblia, na construção do cânone e que dizem respeito à própria vida do Messias.
Gostaria de referir um trecho de Marcelo Da Luz, em Onde a religião termina (2011), a fim de que estejamos cientes da dificuldade com que toda tentativa de emancipação da consciência religiosa terá de lidar, especialmente numa realidade sócio-histórica como a brasileira:

“Em países de arraigadas raízes religiosas e sistemas educacionais deficitários – caso do Brasil -, a grande maioria das pessoas é desprovida de informação histórica e substrato crítico, enquanto os mitos religiosos são aprendidos desde o berço. Os clamores críticos das recentes publicações ateístas merecem, portanto, elevado crédito pela utilização do espaço público da razão, retirando a discussão racional sobre a credulidade da condição de tabu”.

(p. 323)

Tal trecho se acha numa seção em que o autor aponta três principais problemas na promoção do ateísmo do século XXI, do qual são expoentes Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Sam Harris e Daniel Dennett.


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