
Questionamentos
viscerais
Há tempo aguardo que
me irrompa da consciência uma avalanche de pensamentos portentosos. Quem me
dera fosse surpreendido por uma enchente de ideias efusivas, que lançassem meu
espírito às páginas de minhas inquietudes! Nada semelhante me acontece. Tão só
a insistência em escrever segundo as flutuações da alma. Meu esforço é prender
a atenção do leitor nestas linhas o tempo necessário para que ele se convença
de que não deixará estas linhas aborrecido.
Darei
um tom intimista a este texto e desatarei a escrever sobre minhas impressões,
percepções, sensações... Começarei então... Eu sou atormentado por pensamentos,
especialmente quando vou me deitar para dormir... por vezes, acordo de
madrugada e eles não me deixam retornar aos braços de Morfeu...Eles me sobrevêm
à alma com a força de uma enxurrada... e eu, por vezes, me afogo... E não são
pensamentos banais, que nos lembram os afazeres do dia seguinte... são
pensamentos transcendentes, destes que tocam na ferida da angústia, que lançam
questões infindáveis sobre a existência... De repente, o assombro! Eu estava
ali deitado, Eu mesmo, essa pessoa única (como o é cada um de nós) e o estar
vivo inundando-me. Eu, que sou plena consciência de mim e do que me cerca. Um
instante “em que a qualidade de sentir assoma como um lampejo, e é como se
nossa consciência e o universo inteiro não fossem, naquele lapso de instante,
senão uma pura qualidade do sentir” (O
que é semiótica, p. 70). A Vida que excede nossa compressão, toda ela
inundada em mim e minha consciência se encheu dela. Desculpe-me leitor porque
não conseguirei dar à tinta a dimensão exata desse sentir. Só sei dizer que me
assombrou a possibilidade de a morte não me permitir experimentar a vida
novamente. Ao contrário do que advoga certa corrente de materialistas
dogmáticos, não tenho certeza de que a morte é pura e simplesmente um retorno
ao não-ser. Eu não posso ser tão categórico assim, a despeito de eu ser ateu. A
diferença, nesse tocante, entre mim e um religioso é que eu me contento com o
Mistério, não tenho necessidade de alimentar esperança e me apoiar na sedução
da fantasia.
É
verdade que, muitas vezes, a fantasia é preferível à realidade, desde que a
fantasia seja recompensadora. Mas a fantasia nega a realidade; a realidade
comanda; e a recompensa da fantasia, se houver, é intangível e enganosa..
Assisto
à novela Amor eterno Amor e me agrado
do amor transexistencial das personagens Rodrigo e Miriam, que noutra vida se
chamavam Salvador e Alice. Pudera cada um de nós ter um amor predestinado! Que
lindo, exclama o coração! O espiritismo (ou kardecismo, como ficou conhecido
entre nós) ao menos tenta oferecer uma justificativa para o sofrimento que
atinge as pessoas, muito embora sua teologia continue a ser calcada na teologia
cristã. A mensagem do Cristo e a representação do Deus cristão permanecem a
mesma, embora a identidade do Messias seja outra; na teologia espírita, Jesus
era um médium.
O
não-crer não me impede de me maravilhar com a imaginação que nos leva a desejar
que, no final, tudo seja justificado e “todos os justos viverão felizes por
toda a eternidade” (eventualmente, retornando para prestar algum serviço a
Deus). Os espíritos mais evoluídos não precisarão retornar (pelo menos, não sem
sua vontade). Afinal, tal como na teologia cristã, no Espiritismo, o mundo
também é um lugar de sofrimento. Na doutrina espírita, o mundo é um lugar de
expiação. Estamos aqui para expiar nossas faltas de existências anteriores. O
sofrimento do inocente – da criança que acabara de nascer, imaculada – é justo,
porque o espírito nela encarnado cometeu injustiças, crimes, faltas em outra
existência, muito embora ela não tenha consciência disso, o que é uma
dificuldade para a aceitação dessa doutrina. Condenar quem sequer tem
consciência das razões por que está sendo punido? Como pode?
Tenho,
contudo, de reconhecer entre os espíritas um avanço: eles não pretendem
evangelizar ninguém. Não fazem proselitismo.
As
pessoas, em geral, se esquivam de pensar sobre tudo isso, sobre o estar aí, no
mundo. Tendem a negar a morte, mesmo que inconscientemente. Triste a condição
humana: somos conscientes de nossa finitude e nada podemos fazer para evitá-la.
Que alternativa nos resta senão aceitar a morte e desejar mais vida? Porque é
disso que se trata: religiosos ou não, cristãos, mulçumanos, judeus ou ateus,
nós desejamos, de algum modo, experimentar a vida sem fim. Que cada existência
seja um ciclo é o que desejamos, eu e você! O espiritismo nos ensina que cada
nova existência nos impõe o esquecimento. Devemos esquecer a existência
anterior enquanto existimos novamente, mas restituímos a lembrança de nossas
vidas passadas quando desencarnamos e retornamos ao mundo dos espíritos. Com
que propósito precisamos submeter-nos a uma série de encarnações? Para nos
aproximar de Deus. É claro, é preciso haver um sentido no ter de retornar à
Terra várias vezes. E o que acontecerá quando
alcançarmos a condição de espíritos puros, libertos das paixões terrenas? Não
sabemos, uma vida tal é inimaginável; não havendo temporalidade, que nos sobra
de consciência? Que nos resta para fazer? Pelo menos, não ficaríamos
entediados, porque não haveria o tempo. Uma vida sem temporalidade é impensável
para nós. Tente imaginá-la! Não conseguirá; sem tempo, não há ação,
consciência, desejo... não há vida. Parece que retornamos ao absurdo. A existência
é absurda, já dizia Sartre. Existir transcende-nos a consciência. Sou apenas um
produto biológico, resultante da fusão de um espermatozóide com um óvulo determinado?
Poderia Eu não ter existido? Por que você, que me lê, nasceu em tal meio
familiar e não em outro? Por que você tem gozado de uma vida confortável junto
de pessoas que o/a amam, enquanto outros não gozam de semelhante privilégio?
Por que seu nascimento foi ileso enquanto outras milhares de crianças nasceram
sofrendo? Penso nos bebês que nascem com alguma doença congênita... Penso nos
que não sobreviveram a ela? A explicação espírita para o fato de um bebê ou uma
criança morrer prematuramente é que cumpriram o pouco que lhes restava para
cumprir. É como se ainda lhes faltasse uma pequena etapa de sua expiação.
Então, o espírito nasce para logo morrer. Podemos supor que as consequências
para os pais possam ser terríveis, dolorosas... Mas um espírita encontraria
nesse caso um propósito benévolo, porque, afinal, tudo provém de Deus e a ele
retorna... Mesmo o sofrimento mais atroz faz parte do plano misterioso de Deus
(talvez os pais da criança ainda precisassem sofrer por suas próprias faltas,
porque, segundo essa lógica, sofrer edifica, fortalece, melhora). Assim pensam
os cristãos: é necessário sofrer para crescer na fé. Felizmente, o homo sapiens, por mais estúpido que
seja, criou a ciência para amenizar o sofrimento, para lutar contra ele. A
medicina é a expressão da luta dos seres humanos contra o sofrimento e a favor
da vida. Felizmente, quando sentimos dor sabemos precisar de um médico e não de
um padre ou pastor.
Enquanto
escrevo, ouço uma vizinha evangélica que vive a berrar com suas filhas... o alvo
do destempero da cristã é sua filha mais nova agora... Parece que a igreja não
tem contribuído para torná-la uma pessoa mais serena e paciente, uma mãe
disposta a educar sem precisar recorrer a extremismos vociferantes...
De um
lado, o Mistério; de outro a crença em Deus e todas as implicações dificultosas
que ela envolve. Quando alargamos nosso olhar, tomamos consciência de que o
perigo ronda-nos sobre a cabeça (o espaço abriga corpos que podem dizimar nosso
planeta). E mesmo aqui encontramos uma série de perigos à vida. Não preciso
elencá-los... Definitivamente, a natureza não é perfeita, o mundo nem sempre é
tão hospitaleiro. Sempre podemos imaginar um mundo melhor...
Há
tempo me apercebi de que a fé pode nos cegar para o mundo, ou melhor, para a compreensão
de como o mundo realmente é. Dou apenas um exemplo disso. Os que, por razões
religiosas, condenam o homossexualismo, porque simplesmente se trata de um
comportamento contrário à vontade de Deus (que determinou (?) que todos sejam
heterossexuais), ignora o fato de que práticas homossexuais são muito comuns
entre outras espécies de animais também. Um fato biológico, uma evidência
incontestável. Ou aceitamos que a evolução tenha programado certos organismos
para a experiência sexual entre membros do mesmo sexo, ou os crentes devem
repensar o que julgam saber sobre Deus, porque, afinal, Deus criou o mundo,
inclusive animais propensos à prática homossexual. Parece que Deus não se
importa muito com isso!
Fico
pensando também quão difícil é sustentar um propósito divino quando nos damos
conta de que existiram pessoas como Adolf Hitler, Mussolini e Ozama Bin Laden.
Esses homens perpetraram atrocidade, causaram sofrimento a milhares de seres
humanos. E Deus sabia, desde o nascimento deles, que eles se comportariam dessa
forma, porque, afinal, Deus é onisciente. O Holocausto levou à morte 6 milhões
de judeus (e os judeus creem-se o povo eleito de Deus). Já ouço o eco dos
defensores do livre-arbítrio... eles sempre julgam a questão de modo simplista
e incontroversa... Vejamos, então, como seria um diálogo entre Deus e Hitler,
depois de morto:
- O que
você fez? Como pode cometer tanto mal?
- Ora,
o senhor me deu a liberdade de escolher entre o bem e o mal... O senhor não
deveria saber que rumo eu tomaria... ?
- Sim,
eu sabia desde sempre...
-
Então, por que não evitou que eu fizesse tanto mal?
-
Porque eu não posso coagi-lo... Você é livre...
- Bem,
as coisas não são bem assim... lá embaixo não há liberdade absoluta...
Mas, em
todo caso, apesar de sua ignorância, por que o senhor não fez nada para me
impedir? Só por que não pode me coagir... Se o senhor tem poder ilimitado e é
infinitamente bom, ao ver que um espírito criado pelo senhor mesmo cometia
maldades, por que não interveio, pondo um fim a sua vida? Devo lembrar que o
senhor me criou? O pessoal lá deseja um mundo melhor, alguns até se esforçam
para sustentar a paz por um longo período, ainda que a guerra tenha atravessado
a História desde os primórdios da humanidade... O senhor não tem contribuído
para a realização daquele desejo, enviando para lá embaixo homens como eu, tão
inclinados às paixões egoístas, megalomaníacas e tirânicas... Deveria caprichar
mais...
- Pois
é... não sei onde tenho estado com a cabeça...
-
Deveria ter feito melhor.... Olha, lá embaixo, há muitos espíritos maléficos...
- E há
também os bons e caridosos...
- Ah!
Sim... é verdade... é preciso manter o equilíbrio... o bem e o mal... o senhor
os criou, né? Para que os homens pudessem exercer sua liberdade...
-
Agora, você deve ir para o lugar onde passará toda a eternidade: o Inferno!
- Tudo
bem. Só me responde uma coisa: por que o Senhor, que é infinitamente bom e
poderoso, não matou logo o diabo? Diz aí... vocês têm um pacto, né? Nunca
entendi essa afinidade...
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