quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Quantos amores é possível experienciar? Decerto, muitos, mas muito poucos serão capazes de levar nossas almas a imergir em suas profundezas.





Das conexões aos relacionamentos
O amor descartável



Em matéria de amor, ficamos sempre à deriva,
boiando na superfície das conexões, à espera de um salva-vidas. (BAR)


       É comum ouvirmos pessoas dizerem ter acabado de sair de um relacionamento; difícil é ouvi-las dizer que estão entrando num. Acontece que, não raro, elas entram, mas se esquecem de fechar a porta, ou porque ainda não encontraram a tal “chave do amor”, ou porque a confiou ao parceiro, que, por descuidado, perdeu-a.
É sintomático este fato, uma vez que essa tendência a sair de relacionamentos frequentemente é consequência inevitável das experiências vividas em relacionamentos epidérmicos, frágeis, descartáveis, carecidos de profundidade. As pessoas que só conheceram esse modelo de relacionamentos, que também se caracterizam pela fluidez e inconstância, tendem a se sentirem inseguras e receiam arriscar-se num novo relacionamento. Está clara, pois, a crise de que sofrem as experiências de Eros, na cultura pós-moderna das imagens e simulacros: quanto mais relacionamentos líquidos, frágeis e efêmeros experienciamos tanto mais desesperançosos e inseguros ficamos. Em decorrência disso, há certa descrença generalizada no amor; uma descrença acompanhada, ou melhor, decorrente de uma lucidez. Parece-me que as pessoas, pelo menos, reconhecem não serem aquelas experiências descartáveis a expressão do amor, tal como se lhes afigura ao espírito.
A primeira questão que se me apresenta ao espírito e cuja resposta tentarei propor é: como tornar possíveis experiências de relacionamentos que difiram dos modelos oferecidos pela sociedade de mercado e de imagens?
Na impossibilidade de experienciar o amor, resta-me refletir sobre ele, o que me tem sido uma forma de sublimação, da qual nos fala Freud. Escrevo sobre amor, para que eu não fique por aí papagaiando lugares-comuns, lamentando e verbalizando as mesmas opiniões correntes a respeito da dificuldade de se viver relacionamentos mais sólidos, constantes, intensos e duradouros. O que me proponho aqui é tentar compreender, baseando-me nas leituras que fiz, em que contexto sócio-cultural, econômico e ideológico devemos situar as experiências de relacionamentos epidérmicos. É esse contexto que nos fornecerá a chave para compreendê-los e para, se possível, propor alternativas.
Começo, pois, fazendo um ajuste conceitual, bem como destacando as características mais evidentes das relações afetivas entre homens e mulheres na sociedade do mercado e das imagens. O ajuste, então, consiste em substituir a palavra relacionamento por conexão, com vistas a expressar a fragilidade dos vínculos; ademais, trata-se de um termo bastante sugestivo, já que captura bem a tendência a transpor as formas de relacionamentos que se dão nos espaços cibernéticos da internet para as esferas de relações da vida real e cotidiana. Empregarei, por outro lado, a palavra relacionamento sempre que me referir a formas de relação caracterizadas por constância, durabilidade, intensidade, profundidade, características essas sugeridas pelo sufixo “-mento”, que figura também em “enredamento”, “entrelaçamento”. Creio em que relacionamento deve ser vivido como uma espécie de entrelaçamento de almas e corpos.
Também é necessário definir o que eu entendo por amor. Parece-me que o amor ideal deveria expressar-se pela adequada comunicação entre almas e entre corpos; amar com alma e com corpo é entregar-se de corpo e alma. O amor ideal é, pois, resultado dessa entrega, dessa afinidade entre almas e corpos. Estando consciente de que tudo que toca ao âmbito do idealismo está fadado à não-realização, justamente porque é ideal, proponho que o amor que tantos dentre nós desejamos experienciar deve ter (admitindo-se variações subjetivas), pelo menos, duas características básicas: o zelo e o amparo. É possível que desejemos e busquemos o amor que cuida, que zela, que ampara; decerto, muito diferente dessa forma de amor frágil, inconstante, que tende a desamparar, e cujos exemplos são fartos.
As conexões, até onde pude perceber, têm as seguintes características:
· Descartabilidade;
· Promiscuidade;
· Liquidez;
· Inconstância;
· Superficialidade;
· Esvaziamento;



Tais características, conforme mostrarei, parecem adequar-se às formas de se relacionar na sociedade de consumo de imagens, cujos indivíduos destituídos de capacidade crítica, tornados meros consumidores, ao invés de cidadãos, no sentido próprio do termo, a saber, indivíduos capazes de atuar criticamente, porque intelectualmente emancipados, não parecem conseguir ver para além dos simulacros e das imagens da sociedade do espetáculo.
As sociedades de massa e a saturação das imagens
É no livro Formas da crise – estudos de literatura, cultura e sociedade (2002), que André Bueno nos apresenta o que caracteriza fundamentalmente as sociedades (pós)modernas ou, como sugere Gilles, hipermodernas:
“Talvez o tema mais constante, quase corriqueiro, que tem se apresentado ao debate acadêmico seja o das imagens superficiais e fragmentadas que compõem a presente etapa das sociedades urbanas de massa. Pela via do desencanto, onde não cabe qualquer projeto de emancipação política e social, teríamos o seguinte, e curioso, retrato do presente: um mundo vazio, de fragmentos à deriva, feito de simulacros, de imagens, de superfícies vazias, destituídas de qualquer espessura histórica ou humana”.
(p. 257)



Este mundo de simulacros e imagens é o mundo da mercadoria. Nesse mundo, enfatiza-se cada vez mais as trocas de mercadorias, às quais se associam liberdade e pluralidade. A despeito desta sensação de liberdade e evidência de pluralidade, a cultura pós-moderna não é capaz de resolver as exclusões típicas e que são consequência inevitável das sociedades capitalistas.
O consumo desenfreado de imagens, que se desenvolvem pelo avanço rápido e eficaz das tecnologias, se dá num tempo veloz, comprimido num presente eterno. Só existe o aqui-e-agora, mas esse espaço de tempo presente é efêmero e sustentado pelo mito de progresso. Na sociedade das imagens e dos simulacros, deve-se sempre buscar a novidade. Essas imagens tornam mais sólida a coesão social e provocam o consentimento dos indivíduos a este mundo espetacularizado, donde se segue ser difícil imaginar outras formas de existir, de pensar e de sentir, que resistam à penetração maciça das imagens (saturadas) de mercadorias nas mentes e nas emoções dos sujeitos.
Desde já, chamo a atenção para a relação entre a ocupação das imagens, compondo o imaginário dos indivíduos da sociedade de massas e a superficialidade de suas emoções. A influência massificante do mercado contribuiria decisivamente para a formação de indivíduos idiotizados e incapazes, portanto, de atuar criticamente na sociedade, visto que essa influência atua no nível da afetividade e das emoções, conforme ensina Bueno:



“(....) o mundo da mercadoria e das imagens da mercadoria forma um campo de poderosos investimentos imaginários, afetivos e eróticos, uma “força prática” de grande eficácia para persuadir e obter consentimento de baixo, dos pobres e dos trabalhadores pobres, para não mencionar as classes médias urbanas, muito mais diretamente atraídas para esse campo”.
(p. 264)



O mundo da mercadoria é um mundo fetichizado, ou seja, fundamentado no fetiche de mercadoria: um mundo que aparecerá ao trabalhador como estranho e distante, já que este, no processo de produção, tem sua consciência fragmentada, de sorte que ele não se reconhece no produto de seu trabalho. A sedução e o fascínio injetados pelas imagens produzem automatismos de percepção. Atingindo todas as esferas do cotidiano, as imagens aprofundam a crise de valores, de modelos e paradigmas. O que se percebe, nesse contexto, é o abandono de um pensamento reflexivo e crítico, em favor da aceitação do status quo. Embora com certo exagero, alguns teóricos afirmam haver uma tendência a se produzirem indivíduos unidimensionais, bastante esvaziados em termos de força de sua individualidade, numa sociedade cada vez mais administrada e autoritária. No que toca a esta crítica extremista, nos adverte Bueno:



“De fato, supor que uma sociedade urbana de massas possa ser inteiramente unidimensional, administrada e controlada em todos os níveis da vida – trabalho, lazer, prazer, etc. – é aceitar um extremo negativo que não deixa espaço algum para o conflito e para a contradição, produzindo um tipo curioso de pessimismo, em certo momento chamado por Lukács de “inconformismo conformista”.”
(p. 267)




Claro é que, numa perspectiva de análise dialética, há que se levar em conta as contradições constitutivas do real. Concordo, portanto, com a crítica de Bueno. Há nuances e diferenciações no que toca aos efeitos da ocupação das imagens na consciência individual. Deixarei essa questão para outro momento.
Acrescente-se que o mundo das imagens, que atuam nas zonas eróticas das consciências de massas, produzem indivíduos caracterizados pela insaciabilidade. A ordem é consumir mais e mais. Por um lado, há uma necessidade forte de produzir o novo – novos filmes, novas canções, novelas, revistas, livros, espetáculos, etc.; por outro lado, há a necessidade de manter os indivíduos num estado de entorpecimento alienante.
A insaciabilidade consumista parece transferir-se para as esferas das conexões intersubjetivas, particularmente nas conexões entre homens e mulheres. As imagens carregam ideologia e erotismo e são as motivações eróticas e afetivas que fazem com que as pessoas projetem nessas imagens seus modelos de sucesso e de poder. É nessa projeção que buscam compensar a mediocridade e monotonia do seu cotidiano.
Para manter os indivíduos num eterno estado de insaciabilidade, as imagens devem carregar promessas de felicidade, que, por sua vez, produzem uma sensação de conforto. O fio condutor da ideologia é a linguagem, que torna possíveis formas de comunicação distorcidas. Para esta onda de distorções e comunicações enviesadas, contribuem os meios de comunicação de massa, responsáveis também por alimentar a projeção (da consciência) das massas em modelos de sucesso e de poder, representados em jogadores, atores, atrizes, milionários, garotas da playboy, cantor, cantora, etc, donde se segue acentuar-se o que Bueno chama de “carência afetiva e erótica de massa” (p. 270).
A sociedade das imagens vende mitos: do esporte, da política, do cinema, da televisão. Esses mitos povoam o imaginário dos indivíduos massificados e conscientemente regredidos. Trata-se, como se vê, da chamada vida na caverna pós-moderna, cujos habitantes estão incessantemente imersos em simulacros. As conexões são vividas nessa densa atmosfera de imagens de coisa com coisa alguma. E acrescente-se: considerado o conceito de hipermodernidade, proposto por Gilles, devemos reconhecer que, um dos aspectos mais marcantes de nossas sociedades, é o hiperindividualismo. Nesse tocante, nos adverte Gilles:



“O futuro da hipermodernidade depende de sua capacidade de fazer a ética da responsabilidade triunfar sobre os comportamentos irresponsáveis. Estes não vão desaparecer sozinhos, pois se inscrevem necessariamente na lógica da hipermodernidade. De fato, são os próprios mecanismos do individualismo democrático que explicam tanto a responsabilidade de uns quanto a irresponsabilidade de outros, daqueles que preferem corromper a autonomia que herdaram, transformando-a em egoísmo puro”.
(p. 45)



Numa sociedade hiperindividualista, predominam formas de amor egóico, incompatíveis, portanto, com a esperança no amor cujas qualidades basilares referi nas primeiras linhas deste texto. De que modo, então, podemos resistir aos modelos de conexões que contribuem ainda mais para esvaziar nossa individualidade (autenticidade) e nossas emoções e que nos tornam consumidores compulsivos de corpos e líquidos corporais? Essa resposta não poderá ser dada aqui, pois o cansaço cai sobre mim pesadamente. Em todo caso, deixo aqui o que realmente penso: as conexões que se estabelecem no nível epidérmico e que, portanto, são incapazes de propiciar imersões, mantendo-se no nível da superficialidade das aparências, são incapazes de satisfazer o desejo mais íntimo de nossos corações que ainda ousam acreditar num amor transcendente, que supere sua face claramente empobrecida, que se nos apresenta em tais formas de conexão.
Somente o amor desejado pelo espírito é capaz de remover o peso do absurdo de nossa patética existência.

ps. Dos mergulhadores, aguardo comentários e críticas.

2 comentários:

  1. Bruno, ler esse texto após ter recebido um comentário assim: "você anda desanimada esses dias, quer ir comprar um sapato?" um sapato????????? isso é reflexo do materialismo atual, quem me ofereceu um "sapato" é porque conviveu diariamente com uma pessoa que supria sua tristeza e desilusões comprando sapatos...quem dera meu desanimo e desilusão pudesse ser resolvido com um simples objeto, mas infelizmente ele vem dessa sociedade líquida como você diz, tudo vazio, não existe amor, as pessoas não enxergam alma, simplesmente corpos, e tudo se torna descartável, vazio, nada mais parece ter sentido, só o material...

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  2. Relendo este texto, alegrei-me, pois creio ter conseguido comunicar, com embasamento teórico e acuidade argumentativa, a minha percepção das relações descartáveis.

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