sábado, 25 de setembro de 2010

A liquedez do amor


A Transmutação do Amor
Da era romântica à modernidade líquida



1. Introdução

Não é novidade, pelo menos, para os seguidores de meu blog, que minha principal ocupação é o convívio com os livros e o meu envolvimento com o pensamento reflexivo. Tudo que me sabe à alma torna-se matéria para férteis reflexões. E um dos temas de que mais me ocupo é o amor; talvez, porque, na impossibilidade de experienciá-lo num relacionamento com uma mulher que seja recíproca às minhas aspirações amorosas, só me reste tomá-lo para matéria de meditação e discussão. Quiçá, poder-se-ia ver nessa tendência uma forma de sublimação, tal como a definiu Freud, ou seja, a frustração acarretada pela impossibilidade de experienciar o Amor (com maiúscula!) é compensada com longas horas de reflexão sobre as formas como ele se manifesta, mormente em nossa modernidade líquida.
Não obstante, esta exposição, em particular, é motivada por uma questão que me tem visitado o espírito há algum tempo e sobre a qual, finalmente, poderei dizer algumas coisas: existe amor romântico nos tempos de hoje? Qualquer resposta que se dê não pode dispensar uma reflexão sobre o que é o amor romântico, sobre a origem/história dessa forma de amor, suas implicações ideológicas, sua relação com os gêneros (masculino/feminino); enfim, não pode tomá-lo como objeto independentemente de contextos sócio-históricos e ideológicos específicos. Assim, pensarei o amor romântico como fenômeno sócio-histórico.
Acrescente-se ainda que, ao abordar o amor romântico, em particular, não ignorarei a necessidade de refletir filosoficamente sobre a ideia de amor, tal como nos foi legada pela tradição clássica filosófica. Para tanto, tomo como referências as obras Banquete, de Platão, e Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, de Comte-Sponville, onde encontraremos a concepção fundamental de amor como desejo por aquilo que nos falta – o amor como carência, portanto. Discutirei essa concepção alhures.
A maturidade intelectual, decorrente do convívio aturado com os livros, bem como a experiência acadêmica, que já data de nove anos, ensinaram-me que toda questão que se pretende discutir à luz de uma reflexão teoricamente orientada não pode escusar a devida contextualização, ou seja, ela deve ser situada relativamente a certas variáveis pressupostas pela perspectiva teórica. Assim, com vistas a escapar ao senso-comum, reproduzir os lugares-comuns, as fraseologias agastadas, as opiniões correntes e vulgares, todo pensador deve esforçar-se por fornecer à sua audiência ou aos seus leitores, um cenário no interior do qual a questão que se propõe examinar seja devidamente situada, para que ela não fique à deriva ou margeando meras especulações despropositadas.
Este texto se apresenta, portanto, dividido em seções, porquanto acredito ser este um procedimento satisfatório para o atingimento da referida contextualização. Ademais, penso se tratar de um recurso didático que facilitará a leitura e compreensão do texto, cujo tema é, claramente, complexo.


2. A modernidade líquida: o imperativo do novo


É em Bauman que busco as bases para fundamentar o contexto sócio-histórico em que minha reflexão sobre amor romântico se desenvolverá. Escreve o autor, na obra Vida Líquida (2009:7):
“”Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação , em hábitos e rotinas, das formas de agir”.
Assim é que permanência e constância são valores improváveis em tais formas sociais de existência, cujos valores fundamentais são a fugacidade e a inconstância, reforçadas pela necessidade do novo (novos filmes, novas canções, novas novelas, etc.). No âmbito ideológico, tudo que remeta à estabilidade e à permanência é sinal de tédio e provoca sensação de aprisionamento. Manter vínculos mais duradouros representa manter-se num estado de aprisionamento.
Como bem observa Bauman (p. 8), “a vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante”. Se a única constância é a que diz respeito à incerteza, é claro que, com tais condições, confiança, solidariedade e estabilidade, valores exigidos por experiências amorosas com aspiração romântica, são incompatíveis, não passando de fumaças de delírios juvenis.
A sociedade líquida é caracterizada pela descartabilidade, inerente ao consumo de massas. A necessidade de consumo desmedido é alavancada pela fantasia, como herança do Romantismo. A fantasia, herdeira dos ideias românticos, faz surgir o consumidor moderno. Destarte, para Campbell (2001: 130), os consumidores são motivados pela necessidade de buscar um prazer imaginativo, que acreditam ser alcançável na imagem do produto. Essa busca ininterrupta se sustenta na conservação dos consumidores num estado de insaciabilidade permanente.
Embora intente destinar uma seção própria para me ocupar da questão da sexualidade relativamente ao amor, é necessário, desde já, apontar a supervalorização do corpo, alçado à condição de capital, na modernidade líquida, consoante nos ensina a antropóloga Mirian Goldenberg, em seu livro O corpo como capitalestudos sobre gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira. No artigo Corpo como capital, atendo-se à realidade brasileira, particularmente à do Rio de Janeiro, a autora nos ensina:
“No Brasil, e mais particularmente no Rio de Janeiro, o corpo trabalhado, cuidado, sem marcas indesejáveis (rugas, estrias, celulites, manchas) e sem excessos (gordura, flacidez) é o único que, mesmo sem roupas, está decentemente vestido. Pode-se pensar, neste sentido, que, além de o corpo ser mais importante do que a roupa, ele é a verdadeira roupa: é o corpo que deve ser exibido, moldado, manipulado, trabalhado, costurado, enfeitado, escolhido, construído, produzido, imitado. É o corpo que entra e sai de moda (...)”.
(p. 47)
Penso a relação entre o consumo de bens culturais (mercadorias) e a supervalorização do corpo (capital), na sociedade líquido-moderna, em dois sentidos: num primeiro sentido, está claro que o consumo se destina também à conservação/construção do corpo (investimentos em lipoaspiração, dietas milagrosas, cirurgias plásticas, academias de ginástica e musculação, etc.); num segundo sentido, uma sexualidade experienciada apenas para o corpo acaba por desbordar para um consumo desenfreado de corpos.
Relacionamentos apenas experienciados sob o regime ditatorial dos corpos (transformados em capital), em condições consumistas, hedonistas e utilitaristas de existência social, estão fadados ao fracasso, dado o inevitável envelhecimento e perecimento do corpo. Não se trata, aqui, evidentemente, de negar a possibilidade de experienciar o amor carnal – o amor pode e deve também encontrar inspiração no enlace dos corpos, manifestado no sexo -, mas deve, uma vez que se pretenda uma experiência transcendente, humanamente mais significativa, fincar suas raízes em um terreno que ofereça nutrientes mais profundos, sem os quais esta forma de amor não será outra coisa, senão uma conexão circunstancial e efêmera.
É ilustrativo da condição do corpo como capital e da supervalorização que se é dada a ele o que nos relata a autora a respeito de uma pesquisa feita com homens e mulheres da cidade do Rio de Janeiro, pertencentes às classes mais favorecidas:
“Também com relação à atração entre os sexos, o corpo tem um papel fundamental. Ao perguntar: O que mais a atrai em um homem? As pesquisadas disseram a inteligência e o corpo. Para a questão: O que mais o atrai em uma mulher? Os pesquisados responderam a beleza e o corpo. Quando a atração é sexual, o corpo ganha um destaque ainda maior. Na pergunta: O que mais a atrai sexualmente em um homem? As mulheres disseram o tórax e o corpo. Para: O que mais o atrai sexualmente em uma mulher? As respostas masculinas foram a bunda e o corpo.”
(p. 51)
Novamente aqui, é preciso enfatizar que não se trata de denegar o corpo como fonte de estímulo para o sexo; afinal, não há sexo de almas, mas de corpos. Curioso é que, entre as mulheres, qualidades como ‘inteligência’ ainda competem com ‘o físico’, no que toca aos atributos masculinos que as atraem; ao contrário, os homens se sentem atraídos sexualmente apenas por mulheres dotadas de atributos corpóreos.


3. O amor romântico e o amor paixão


Doravante, dedicar-me-ei a refletir sobre o amor romântico e seu correlato, o amor paixão. É preciso, contudo, situar a reflexão em dois domínios: o do imaginário e da realidade sócio-histórica. Ambos são atravessados pelo ideológico.
Em Banquete, ao nos contar sobre o diálogo que travou com Diotima, Sócrates ensinará ser o amor uma carência ou um falta. O amor é desejo do que falta. O objeto do amor é sempre uma falta. Só amamos aquilo que nos falta e que, portanto, não possuímos. O amor é incompletude, é pobreza ávida por devorar. A natureza miserável de Eros decorre de sua origem, já que ele é filho de Pênia, a penúria. O amor é também desejo por fusão irrealizável. Ensina-nos Sponville:
“O amor não é completude, mas incompletude. Não fusão, mas busca. Não perfeição plena, mas pobreza devoradora (...) o amor é desejo, e o desejo é falta”.
(p. 252)
O amor romântico é o amor da desmesura, do exagero e da impossibilidade. É uma forma de amor incompatível com a luxúria, pois que inspirado e alimentado pela alma. Sua consumação pelo sexo representa seu arrefecimento. É na conservação do seu desejo, na busca pelo objeto idealizado e inatingível, pois que também sublimado, que encontra sua vitalidade e sobrevivência. É amor de transcendência, de projeção e idealização. O amor romântico supervaloriza a palavra ou os atos e gestos comunicativos como formas simbólicas de magnetismo entre espíritos. Também é amor que promove um autoquestionamento e propicia aos parceiros a possibilidade de (re)pensar a complexidade do envolvimento emocional; é, portanto, auto-reflexivo.
Decerto, o amor romântico é amor feminilizado, sua força ou vigor encontra-se na alma feminina. Contudo, considerando-o como fenômeno sócio-histórico, é preciso, em primeiro lugar, situar seu surgimento no final do século XVIII e reconhecer que com ele inaugurou-se uma ideologia de casamento e maternidade que subordinava a mulher ao lar e ao relativo isolamento no seio da família. Assim, escreve Giddens:
“A idealização da mãe foi parte integrante da moderna construção da maternidade, e sem dúvida alimentou diretamente alguns valores propagados sobre o amor romântico. A imagem da “esposa e mãe” reforçou um modelo de “dois sexos” das atividades e dos sentimentos”. As mulheres eram reconhecidas pelos homens como sendo diferentes, incompreensíveis – parte de um domínio estranho aos homens”.
(p. 53)
Claro está que, após as conquistas dos movimentos feministas e da chamada revolução sexual, desencadeada na segunda metade do século XX, é inaceitável – embora ainda presente – que se sustente a ideologia romântica da maternidade (“as mulheres nasceram para ser mães, elas têm uma natureza materna”) e da “esposa” (a mulher “respeitável” e dona do lar), visto que não só o direito e o poder sobre a condução de sua própria sexualidade, bem como sua maior participação nas esferas de produção, foram conquistas que contribuíram para maior igualdade em termos de condições sociais entre elas e os homens, muito embora a maior imersão de mulheres no mercado de trabalho não tenha significado o abandono completo das tarefas do lar. Em geral, o que se observa é uma sobrecarga de tarefas ou, em outras palavras, o acúmulo de funções.
Por outro lado, como ensina Giddens (1993), “(...) a fusão dos ideais do amor romântico e da maternidade permitiu às mulheres o desenvolvimento de novos domínios de intimidade” (p. 55). O amor romântico manifestava-se, na literatura, especialmente, em formas de romances, destinados ao público feminino. Neles, os espíritos feminis buscavam o êxtase e a compensação para suportar uma existência social ainda limitada pelo poder do homem. Os ideias românticos serviram de apoio às mulheres na construção de sua autonomia, não obstante viverem uma vida de privação.
O amor romântico é amor que nega o mundo e que deseja a fuga. O ápice desta fuga, como nos dão testemunho inúmeros exemplos da literatura, é a morte. Na história do amor romântico, não há páginas felizes; estas estão sempre em branco.
O amour passion ou amor paixão tem caráter libertador, visto que quebra os grilhões da rotina e do poder. É essencialmente subversivo, infenso às urgências e incumbências do cotidiano. Seu envolvimento é mais invasivo; conturba a estabilidade do espírito.
Convém entender a sexualidade como integrante das relações sociais, portanto, como um fenômeno sócio-cultural, intimamente ligado ao poder. A teorização da sexualidade ensejou a possibilidade de exercer sobre ela um controle maior pelas instituições que se apóiam na autoridade dos especialistas. Como ensina Giddens, se na Europa pré-moderna, notadamente no século XVII, a sexualidade ainda estava vinculada à mera necessidade de reprodução, com a revolução sexual, a sexualidade passou a ser encarada como forma de obtenção de prazer.
“A liberdade sexual acompanha o poder e é uma expressão do poder; em certas épocas e locais, nas camadas aristocráticas, as mulheres eram suficientemente liberadas das exigências da reprodução e do trabalho rotineiro para poderem buscar o seu prazer sexual independente. Evidentemente, isto jamais esteve relacionado ao casamento”.
(p. 49)
Ideais veiculados pelo amor romântico ainda parecem impregnar a consciência feminina. Giddens, citando uma pesquisa desenvolvida por Thompson com moças adolescentes, oferece-nos o seguinte testemunho de uma das adolescentes entrevistadas:
“Desejo o relacionamento ideal com um rapaz. Acho que quero alguém que me ame e cuide de mim, tanto quanto eu dele”.
(p. 65)
(grifo meu)
Note-se que a adolescente fala em um amor que cuide, uma forma de amor idealizada por muitas mulheres e cuja expressão fidedigna parece ser o da mãe pelo filho.
Para Giddens, a modernidade caracteriza-se por uma forma de amor que fragmenta os valores do amor romântico, a saber, o amor confluente, que é um amor ativo, que resiste ao “amor para sempre” (ideal tipicamente romântico). Escreve o autor:
“Na época atual, os ideais de amor romântico tendem a fragmentar-se sob a pressão da emancipação e da autonomia sexual feminina. O conflito entre a ideia do amor romântico e o relacionamento puro assume várias formas, cada uma delas tendendo a tornar-se cada vez mais revelada à visão geral como um resultado da crescente reflexividade institucional”.
(p. 77)
A tendência cada vez maior de rupturas de casamentos é, segundo o autor, consequência do amor confluente. Ao contrário do amor romântico, cujas bases se assentam no envolvimento emocional entre duas pessoas, o amor confluente dá especial valor a critérios sociais externos, tais como estabilidade econômica, poder, etc. Essa última forma de amor é sensível às flutuações das experiências sexuais que se tornaram fundamentais para a manutenção ou, no caso de seu fracasso, para a dissolução do vínculo.
Bauman, em Amor Líquido, à página 111, comenta o conceito de “relacionamento puro”, de Giddens, que se caracteriza “pelo que cada um pode ganhar”. Sua continuidade depende de que ambos os envolvidos se sintam satisfeitos com o quanto cada qual proporciona em termos de prazer um ao outro. Consoante observa Bauman,
“O compromisso com outra pessoa ou com outras pessoas, em particular o compromisso incondicional e certamente aquele do tipo “até que a morte nos separe”, na alegria e na tristeza, na riqueza ou na pobreza, parece cada vez mais uma armadilha que se deve evitar a todo custo”.
Ao considerar as experiências sexuais nas formas ditas de suingue ou trocas de casais, Baumam se pergunta:
“Será possível encontrar lá [nos clubes de suingue] a intimidade, a alegria, a ternura, a afeição e o amor? Bem, o visitante pode dizer de boa-fé: isto é sexo, seu estúpido – não tem nada a ver com nada disso. Mas se ele ou ela estiver certo(a), será que o sexo em si é importante? Ou que, seguindo Sigusch, se a substância da atividade sexual é a obtenção do prazer instantâneo, “então o mais importante não é o que se faz, mas simplesmente que aconteça”.
(p. 72)
Creio ser importante reconhecer que a liberação sexual libertou o sexo das complicações do amor; em outras palavras, para o sexo, não é necessário envolvimento afetivo-emocional, administração de subjetividades e de personalidades. O amor torna-se o terreno do ideal e jurisdição da alma; ao passo que o sexo é do domínio exclusivo de um corpo que se transformou em capital. Essa dissociação entre sexo e amor e a decorrente polarização entre sexo-corpo, de um lado; e amor-alma, de outro, bem como o fato de os relacionamentos serem experienciados segundo a lógica do “custo-benefício”, de modo que sua manutenção ou dissolução depende do balanceamento de vantagens e desvantagens, da contabilidade de ganhos e débitos, inviabilizam a revitalização dos valores do amor romântico que, não deixando de ser sexual, idealiza a união plena entre alma e corpo.

4. A morte dos românticos

Finalmente, gostaria de insistir em que os que se autoproclamam românticos o fazem de modo distorcido ou mesmo empobrecido. Os homens que se cuidam românticos apenas pelo fato de serem mais carinhosos, atenciosos e gentis, ou mesmo de ofertar às suas namoradas/ esposas buquê de rosas, acabam por confundir ser romântico com parecer romântico. Tais gestos estão longe de representar a essência do movimento espiritual e o ideário românticos.
Alfredo Bosi (2006), eminente crítico literário brasileiro, nos lembra que o Romantismo, como fenômeno histórico, “expressa os sentimentos dos descontentes com as novas estruturas” (p. 91) (na época, a nobreza a vias de sucumbir e a emergência da burguesia). O romântico é, pois, um ser social descontente, inconformado com a realidade em que vive; negação do mundo e da sociedade, ele encarna os ideais mais sublimes de amor, de mulher, da pátria, da religião. Parece-me difícil pensar o romântico numa época em que muitos vivem comodamente no/com o mundo, numa época em que predomina o conformismo. O romântico exacerba sua sensibilidade e injeta em sua alma sentimentos inflamados pelos quais orienta suas experiências afetivas e sexuais.
No romântico, ver e sentir é um só; ver e sentir se constituem numa forma una de compreensão da realidade e do Outro. A vida é um obstáculo à eternidade do amor que idealiza; a morte, a fuga última às desilusões inevitáveis de uma existência que não lhe é hospitaleira.
Por isso, desconfio daqueles que, em programas televisivos, por exemplo, quando interrogados de suas tendências emocionais, dizem-se românticos. Se o leitor concordar em que, na modernidade líquida, em que as conexões entre homens e mulheres constituem a forma prevalecente de experienciar a sexualidade e a afetividade, então deverá aceitar a morte do amor romântico, pelo menos no que ele tem de mais significativo para a espécie humana.

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