quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A palavra e o humano


A construção do humano
O valor incomensurável da palavra



Decidi começar este dia compondo um texto que patenteie a importância e o valor da palavra (em certos momentos, o leitor deverá subentender “linguagem”) para a vida e a história dos seres humanos. Certamente, isso não é novidade nenhuma, exceto pelo fato de que, hoje, alterei a ordem de meus hábitos rotineiros; em geral, levanto-me e me entrego ao convívio com os livros, somente depois, se algumas ideias elevadas visitarem meu espírito, ponho-me a escrever. Ler é sempre mais importante; desta atividade edificante depende a produção da escrita.
No Ocidente, o interesse pelo estudo da linguagem remonta a Platão, no século V a.C. Desde então, a linguagem se tornou objeto de especulação filosófica e a filosofia passou a contribuir decisivamente, com a gramática, que na Idade Média compunha com a retórica e a dialética o que se chamava de trivium, para o desenvolvimento dos estudos linguísticos. Aliás, toda a nossa herança gramatical, a chamada Gramática Tradicional, está fundamentada na contribuição filosófico-filológica, orientada com uma finalidade pedagógica. Nas palavras de um abade da era medieval é possível mensurar a importância do estudo da gramática para os homens, segundo a crença da época: “a gramática prepara a mente para entender tudo que possa ser ensinado por meio das palavras” Azeredo: 2000:17).
É pelo estudo da linguagem que se pode compreender a natureza humana (muito embora o conceito de natureza humana seja discutível). Em todo caso, o estudo da linguagem desempenha um papel importante na compreensão da estrutura e organização da mente humana, como propunha o linguista Noam Chomsky, na segunda metade do século XX.
Não é da história da evolução do pensamento linguístico de que me ocuparei aqui, evidentemente. Se assim o fizesse, teria de contar com a paciência de leitores iniciados na história do desenvolvimento dos estudos da linguagem ao longo dos séculos. Meu intento é trazer a lume a consciência da onipresença das palavras em nossas vidas e de sua importância na construção da realidade e nas experiências humanas.
A criança, tão logo nasce, torna-se integrante de um universo impregnado de palavras. Todo o seu desenvolvimento subsequente se fará num mundo construído ou tecido de palavras – um mundo, aliás, inundado em palavras. Ela estará, assim, cercada de palavras o tempo todo; todas as suas relações, suas experiências de mundo, se darão graças às palavras e através delas.
É a linguagem verbal – portanto, a materializada em palavras, organizadas num sistema linguístico -, (e não incorro em erro ao afirmar isto), que constitui a essência humana. Os seres humanos – o homo sapiens – são seres linguísticos (homo loquens). Não haveria possibilidade de existir esse meio de trocas, de relações, que conhecemos como sociedade, se não houvesse a linguagem – base fundamental de toda sociedade humana.
O linguista Hjelmslev dá-nos testemunho do valor incomensurável da linguagem no seguinte trecho (que não transcrevo na íntegra, dada a sua extensão):

“A linguagem (...) é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos (...) base última e mais profunda da sociedade humana. (...) A linguagem não é um simples acompanhante mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, a fala [sic. Linguagem] é a marca da personalidade da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade (...)”.
(Os pensadores, p. 179)


O texto em que Hjelmslev poeticamente nos fala sobre o valor da linguagem excede os limites nos quais deverá se desenvolver este texto, por isso tive de reduzi-lo. No entanto, a redução não nos impede de entrever a riqueza da linguagem como um fenômeno que atua, que penetra todo domínio humano. Chamo atenção para a relação entre linguagem e emoções, depreendendo daí a importância da relação entre as emoções e nossa língua materna, pois que é ela que carreia toda carga emocional dos seus falantes. Não é a mesma coisa manifestar raiva, amor, etc., e mesmo xingar numa língua estrangeira, como o é em nossa língua materna. Ou seja, como a língua materna esteja intrinsecamente ligada ao nosso ser emocional, social e a nossa identidade, um shit, em inglês, não terá o mesmo impacto ou densidade de expressão de nossa raiva, que um merda (proferido com entoação e altura adequados), em português.
Essa entidade – a palavra – estudada sob várias perspectivas, encarada como signo, cujas faces são interdependentes e foram chamadas de significante e significado, preenche uma ausência, está no lugar de outra coisa (esse é o valor do signo: ser signo de outra coisa). A palavra, na verdade, preenche o vazio, mas também pode inaugurá-lo; vazio e plenitude se relacionam dialeticamente. Em matéria de língua, a ausência significa; isso fica claro quando pensamos a oposição significativa existente entre estuda/estudava que, em morfologia, explicaríamos pela oposição entre uma ausência de marca (marca-zero) e a presença da marca –va (chamada de morfema ou desinência número-pessoal). Essa ausência significa, pois nos informa sobre o tempo em que o verbo estudar está flexionado (presente). Por outro lado, a desinência –va indica o tempo pretérito imperfeito. Como se vê, a palavra é dissecada, na morfologia – um dos domínios teóricos da gramática (como modelo descritivo de língua); tratada em suas relações complexas, agrupadas em blocos de significado, na sintaxe; e encarada como matéria substancial do texto e do discurso, respectivamente, na Linguística Textual e na Análise do Discurso. Neste último domínio, a palavra é parte constitutiva da materialidade linguística do discurso, que, por sua vez, é encarado como um acontecimento (sócio-) histórico.
Bakhtin, eminente filósofo e linguista russo, considerava a palavra como signo ideológico, meio de contato entre a nossa consciência e o mundo, entre o nosso interior e o exterior. Aqui, já estamos no domínio da História, do socioideológico, de sorte que devemos reconhecer que as palavras são tecidas de inúmeros fios ideológicos. Assim é que a palavra refletirá e refratará a realidade. Isso quer dizer o seguinte, segundo as palavras de Stella (2005: 179):

“(...) tornando-se signo ideológico porque acumula as entoações do diálogo vivo dos interlocutores com os valores sociais, concentrando em seu bojo as lentas modificações ocorridas na base da sociedade e, ao mesmo tempo, pressionando uma mudança nas estruturas sociais”.


A palavra, portanto, reflete, na medida em que “acumula as entoações do diálogo vivo” mas também refrata, na medida em que pressiona ou incita mudança na ordem social. Portanto, o discurso é forma de ação social. Os homens agem no/pelo discurso – que é a língua em atividade, em exercício de poder – uns sobre os outros, modificando uns aos outros e a ordem das estruturas sociais.
É graças à linguagem, às palavras, que o mundo se organiza numa estrutura dotada de sentido; é graças à linguagem, na sua função simbólica, que os homens organizam as suas experiências de mundo, tornando-as conteúdos de sua consciência comunicáveis no discurso. Pode-se dizer, seguramente, que a realidade existe na medida em que é nomeada. Os objetos e os seres com que nos relacionamos existem como dados de nossas experiências, na medida em que ganham investimento simbólico, tornando-se, assim, mais do que elementos do mundo natural, tornam-se, sobretudo, entidades do universo cultural e humano. As palavras criam conceitos pelos quais organizamos, interpretamos e compreendemos o mundo. Toda e qualquer forma de conceptualização não dispensa alguma forma de linguagem e, certamente, é nas palavras que os conceitos ganham uma dimensão, uma abrangência e signficância social inigualável.
A cultura, que nos faz humanos, que nos caracteriza como seres sui generis, tem como fundamento o simbólico. Sua organização profunda encontra no simbólico sua substância, sua possibilidade de subsistência. Nossas experiências culturais só são possíveis porque dispomos de sistemas complexos de símbolos ou signos. A língua é, ao mesmo, tempo produto e meio de expressão (e constituição) da cultura. A morte de toda uma comunidade organizada de homens significa também a morte das ricas experiências de cultura e linguagem.
Quando pensamos na História da humanidade, em todo o seu desenvolvimento até o estágio atual da hipermodernidade; quando levamos em conta as produções científicas, filosóficas, artísticas, literárias, folclóricas, os sistemas políticos, as histórias de vilões e heróis, as grandes façanhas dos homens, seus avanços e regressões (suas guerras, genocídios, seus sofrimentos, seus fanatismos, suas crises), suas religiões, suas Leis, suas epopéias e tragédias, sua música e teatro, seus dramas e aventuras; quando pensamos em tudo isso (e possivelmente em outras coisas mais que a estreiteza de meu espírito não conseguiu apreender), nos apercebemos da onipresença das palavras no longo e complexo processo do fazer-se humano.
Dormimos com as palavras, que habitam nossos sonhos (pois falamos nos sonhos); acordamos e vivemos nosso cotidiano com elas; elas não se apartam de nós; mesmo quando em silêncio, são as palavras mudas, em forma de pensamento não-comunicado, que ficam a passear em nossa mente. O pensamento conceitual é a palavra muda, é a linguagem verbal. Não há possibilidade de pensamento conceitual sem linguagem. As palavras estão em nós e nós somos graças às palavras. Nossa relação com a palavra pode-se dizer dialética, visto que nós a constituímos (no discurso) e por elas somos constituídos.
É certamente a linguagem constitutiva de nossa identidade. O “eu” se constitui na interação pela palavra, constituindo o “eu do outro”, e por este outro-eu é também constituído. Pelo domínio da palavra, pela prática do discurso, se dá a construção intersubjetiva dos interactantes. Eu sou e me construo como sujeito social, ideológico e, portanto, como sujeito de discurso, na interação com o outro (alteridade), pelo uso da palavra, sócio-historicamente situado.
As palavras inflamaram os espíritos dos grandes escritores e poetas da Literatura Mundial. Os Byrons, os Machados, os Azevedos, os Flaubert e tantos outros ilustres homens da pena souberam como ninguém reconhecer e explorar a riqueza humana e significativa da palavra, para construir seus universos conflituosamente líricos, impregnados de uma riqueza sentimental, social e histórica inestimável. Werther amou Carlota e se matou com a arma em que sua amada tocara, quando se viu impossibilitado de viver o amor que lhe requestava, um amor que projetava na imagem de mulher que lhe perturbava a alma; essa imagem não fora senão construção de suas palavras, das palavras que teciam sua alma apaixonada e ardente em desmedido lirismo. Pelas palavras, amamos, desejamos, adoramos, devotamos, rejeitamos, odiamos, agredimos; com elas, vivemos mergulhados nos mais intensos e convulsos sentimentos. Com elas, nossos prazeres ganham concretude inefáveis; os poetas travam lutas incessantes com elas, pois sua riqueza é empobrecida em face da sede de expressão que faz mover a mão que segura a pena. O coração se recusa a calar-se diante do silêncio das palavras; ele grita, ele geme, ele pulsa, em suas agitações líricas; quer expandir-se, em que pese à escassez das palavras; elas se tornam insuficientes para dar conta do vastos hectares de emoções de que ele é feito.
Este texto foi motivado pelo amargo sentimento que experimentei, quando na interação com uma moça, a quem meu coração ainda se demonstra inclinado, o silêncio preencheu o vazio das palavras. Talvez, como o silêncio seja fundante e esteja nas palavras e por detrás delas – como ensina a Análise do Discurso -, é possível que aquele silêncio que sustentava as poucas palavras e sua ausência signifique alguma coisa: ou a urgência por que nosso relacionamento transcenda a distância real, superando, consequentemente, a proximidade virtual; ou, quiçá, apenas signifique o prenúncio de mais um fracasso de minhas pretensões amorosas, de minhas dileções insanas. Nesse sentido, as palavras não bastam para indicar-me em qual dos caminhos a vida se encarregará de me conduzir; pois elas estão mudas.
E, finalmente, é preciso notar, estimado leitor, que não há possibilidade de relação, se as palavras se tornarem escassas; um relacionamento sem palavras, sem produções verbais, é empobrecido, é miserável e tende a se dissipar como cinzas lançadas ao vento da desilusão.

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