quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Espaço do ateísmo - ""É possível atrever-se a considerar a neurose obsessiva como o correlato patológico da formação de uma religião, descrevendo a neurose como uma forma de religiosidade individual, e a religião como uma neurose obsessiva cultural." (Freud)

                

                            Um cenário aterrorizante
                               As histórias bíblicas

O livro O que é religião, de Rubem Alves dá-nos uma contribuição fundamental para o entendimento da religião, especialmente, se entre nós, estão aqueles que professam alguma crença religiosa. À página 30, o autor - psicanalista, teólogo e filósofo - declara, com honestidade:

(...) as entidades religiosas são entidades imaginárias”.

Influenciado por sua formação em teologia, Rubem Alves, ao longo de suas colocações, procurará atenuar a identificação entre religião e imaginação. Para tanto, recorrerá a um espírito lírico para manter a relação entre religião e fantasia (palavra que o autor também usa para se referir à religião), sem que agrida o sentimento dos religiosos, que, evidentemente, jamais consentiriam nisso. Para eles, religião não se identifica com imaginação, tampouco com fantasia.
De qualquer modo, a contribuição do autor consiste em transpor os santos, os deuses (ou o deus), os anjos, demônios do plano da realidade para o plano da imaginação. Todos são figuras criadas, produzidas pela imaginação humana.
Ocorre que, para a consciência religiosa, dá-se a inversão entre o real e o imaginário, de sorte que este último passa a ser o padrão de orientação da própria consciência dos adeptos. Em outras palavras, o imaginário passa a ser real.
Será necessário distinguir realidade e imaginação? Ou nos bastará o senso-comum, nesse tocante?
Há tempo, tenho cogitado da ideia de escrever um texto em que eu pudesse trazer à cena algumas reflexões sobre a origem das religiões e a importância dos deuses (como entidades imaginárias) na vida dos homens. Mas esse empreendimento intelectual deverá ser protelado, em função de meu interesse, aqui, em trazer à consciência do leitor uma das histórias horripilantes que figuram na Bíblia.
Certa vez, confessei suspeitar da cumplicidade entre deus e o diabo. Essa cumplicidade já se verificava no mito do Gênesis, em que a serpente, muito astuta, persuade Eva a comer do fruto proibido. Na verdade, Eva, uma mulher, provou do fruto da árvore do conhecimento; nesse sentido, devemos a ela a libertação da espécie humana da ignorância.
Essa cumplicidade, todavia, se verifica também no livro de Jó. Em primeiro lugar, é Deus que causa o sofrimento de Jó, a fim de testar a sua fé. Deus lhe tira tudo: seus filhos, os bens conquistados com seu esforço e suor. Deus o atormentou e o submeteu à dor, à agonia, às piores aflições. O leitor poderá se perguntar: como pode um ser infinitamente bondoso causar sofrimento a um homem tão justo e inocente como Jó? O Deus do Antigo Testamento é uma personagem terrível, se bem que não menos que no Novo Testamento, já que ele reserva aos ímpios um inferno de tormentos e dores. Está lá nas palavras atribuídas a Jesus. Leia.
Interessa aqui ver que Satanás não é, na história de Jô, um adversário de Deus. É seu aliado. Satanás faz uma aposta com Deus. Diz Satanás a Deus que, a pesar de Jô ser um homem fiel a ele, deixará de sê-lo, caso se veja em grandes dificuldades. Deus, vaidoso, consente em medir a fé de Jó. Trata-se de um Deus imoral.
Em O Problema com Deus (2008), Ehrman escreve:

“O próprio Deus tinha provocado a infelicidade, a dor, a agonia e a perda que Jó experimentara. Não é possível culpar apenas o Adversário. E é importante lembrar que o que essa perda implica: não apenas perda de propriedade, o que já seria bastante ruim, mas uma devastação do corpo e o selvagem assassinato dos dez filhos de Jó. E para quê? “Por nada” – a não ser provar a Satanás que Jô não iria amaldiçoar Deus mesmo que tivesse todo o direito de fazê-lo (...) Esse obviamente é um Deus acima, além e em nada submetido aos padrões humanos”
(p. 130)

Que concluir daí? Ora, em primeiro lugar, que Deus é perverso; em segundo lugar, que ele está mancomunado com Satanás para testar a obediência daqueles que dizem ter fé nele. Claro, um Deus inseguro, que precisa certificar-se de que ainda é estimado e temido.
Segundo Ehrman, a história de Jó é mais uma dentre as que buscam justificar a existência do sofrimento no mundo, sem embargo da crença na existência de um ser infinitamente benevolente e todo-poderoso. Nessa história, a causa do sofrimento consiste num teste de Deus, com vistas a se assegurar de que um de seus fiéis, talvez o homem mais devotado, que era Jó, realmente manteria firme sua fé. O ensinamento aqui é que os seguidores de Deus devem-se manter firmes em face do mais pungente sofrimento, mesmo que esse sofrimento seja provocado pelo próprio Deus, por mero capricho. Resignação, em suma, é a “virtude” hebraica então ensinada; aliás, não deixará de ser uma “virtude” cristã.
Se, em Jó, o diabo ou satanás era um aliado de Deus, ensina-nos Ehrman que foram os “apocaliptistas” (aqueles que professavam ou escreveram sobre o apocalipse) os responsáveis por atribuir ao diabo o papel de adversário de Deus.

“(...) os apocaliptistas judeus tinham princípios básicos.
(1) dualismo. Os apocaliptistas judeus sustentavam que havia dois componentes fundamentais da realidade em nosso mundo, as forças do bem e as forças do mal. Controlando as do bem, claro, estava o próprio Deus. Mas Deus tinha um adversário pessoal, um poder maligno que controlava as forças do mal – Satanás, o Demônio. Antes vimos que no livro de Jó Satanás não era o arquiinimigo de Deus, mas um membro de seu conselho divino, que se reportava a Deus como os outros “filhos de Deus”. É com os apocaliptistas judeus que Satanás assume novo caráter e se torna o arquiinimigo de Deus, um poderoso anjo caído expulso do céu e que produz destruição aqui na terra, opondo-se a Deus e a tudo que ele representa. Foram os antigos apocaliptistas judeus que inventaram o Diabo judaico-cristão”
(pp. 188-189)
(grifo meu)

Na visão apocalíptica, o mundo está repleto de forças demoníacas. O mundo é, pois, o reino do mal. Na verdade, o mundo é um cenário onde se dá um aterrorizante combate cósmico entre o Bem (que provém de Deus, embora o próprio Deus transite entre o bem e o mal) e o mal (provindo do Demônio). Os homens sucumbem ao poder do Mal. E, estranhamente, Deus delegou o governo do mundo às forças do mal. Vejamos o que nos ensina Ehrman a esse respeito. Devo lembrar que o autor se baseia no texto das Escrituras.

“O mundo está cheio de forças demoníacas aliadas contra Deus e seu povo; é um palco de um contínuo conflito cósmico. O sofrimento humano é criado durante a batalha, à medida que as forças do mal no mundo abrem caminho para seres humanos relativamente impotentes, que, como consequência, sofrem horrivelmente. Por alguma razão desconhecida, Deus entregou o controle deste mundo às forças do mal – por enquanto. Dor, infelicidade, angústia, sofrimento e morte são o resultado”.
(p. 189)

Para quem conhece o mínimo do pensamento de Marx, é lugar-comum dizer que a religião é uma forma de alienação; na verdade, para ele, o efeito de uma alienação mais fundamental, ou seja, a alienação do proletariado. Convém entender essa realidade no próprio discurso apocalíptico. Ora, dizer que o sofrimento é resultado da ação de forças maléficas sobre as quais os homens não têm controle e às quais não podem se opor, ou contra as quais não podem lutar, é fazê-los esquecer que o seu sofrimento é resultado das condições reais de existência em que vivem. Ou seja, o sofrimento não é provocado por forças sobrenaturais maléficas – isso é engodo, logro – o sofrimento é resultado das condições de opressão, exploração em que os homens daquele tempo viviam. Há uma estratégia ideologicamente orientada, maquinada discursivamente, com vistas a ludibriar, enganar, pelo controle da consciência, de modo a fazer com que os homens crédulos ignorem o fato de que seu sofrimento decorre das próprias condições injustas e desumanas de sua existência. São seus opressores que causam sofrimento, e não forças malignas.
A título de curiosidade, o próprio Jesus, ao declarar que o povo deveria continuar a pagar os impostos cobrados pelo governo romano (na famigerada frase “Dê a César o que é de César; e a Deus, o que é de Deus”), não ensina senão a resignação, o conformismo, a aceitação da exploração, da opressão, do jugo. Na verdade, ele diz: mantenham-se firme na ilusão e resignem-se às condições de opressão.
Terremotos, catástrofes, doenças, pestes e toda sorte de fenômenos que causam sofrimento nos homens são justificados pela ideia de que seus causadores são as forças malignas. Mas, acalmem-se: não é para sempre, é claro. Deus haverá de intervir e, como um super-herói, derrotará as forças do mal; afinal, o bem sempre vence o mal!
Quando penso na quantidade de sofrimento que recai sobre os homens, quando penso na concretude do mal no mundo, não posso aceitar a implicação da crença na existência de Deus: crer em Deus implica crer no demônio. Pelo menos, é esse dualismo que a doutrina judaico-cristã nos ensina. Já nos basta o mal de todos os dias, quer causado pelo próprio homem, quer acarretado pelos fenômenos naturais. Para que acreditar na existência de alguma entidade maléfica responsável pela maldade e sofrimento existentes?
Ademais, se Deus é todo-poderoso e infinitamente benevolente, por que ele não acaba com o demônio e, é claro, extingue de uma vez por todas o inferno?
A história de Deus e demônios é uma história horripilante. Uma história aterrorizante da fértil e (não raro, perniciosa) imaginação religiosa humana. Mas, é claro, interessa aos doutos da religião que seus fiéis a ignorem e, se por acaso, se dispuserem a ler a Bíblia, o façam de acordo com a interpretação consagrada pela igreja.
Qualquer pessoa, minimamente esclarecida, reconhecerá, naquelas histórias e em outras tantas ficções bíblicas, as imposturas, as contradições, o contra-senso e uma dose de terror, que faz qualquer criança ter pesadelos.






segunda-feira, 7 de novembro de 2011

"O eu é tanto a certeza de ser o que se é quanto a ignorância do que se é". (J. D. Nasio)

                           O escondido

Hoje, ocupei-me com a leitura, concentrado nas páginas de vários livros e abstraído de tudo ao meu redor. Assim permaneci por um tempo cuja passagem escapou-me à consciência. Apenas me deixei estar, acomodado na cama, rodeado de livros. A certa altura, um trecho me acalentou alguns pensamentos, que os exponho abaixo na forma de poesia:

Você quer uma palavra
Que justifique sua vida
Esta palavra mesma
Que escorre de sua boca
Engasgada em sua goela
Você está faminta de palavras
Tem-nas em abundância
Mas não se cansa de procurá-las
De devorá-las
De experimentá-las
Você está desejoso de palavras
Que lhe acarinhem
A alma
Expulsa-as da sua boca
Em vão
E delas colhe a eternidade impenetrável
Você tem sede de palavras
E as tem em abundância
Mas vive na secura
Na estiagem
Do vocabulário
Como elas lhe escapam!
Na carência da sua existência
Tão empobrecida
De palavras

(BAR)


Não encontrei um título para este poema (aceito sugestões). Noutro momento, lendo sobre a contribuição filosófica de Aristóteles para a compreensão da linguagem, formaram-se-me os seguintes pensamentos:

Desembrulhe uma palavra
Digamos:
Casa
E o que encontrará?
Um conceito
E
Uma estrutura fônica
Mas esse conceito
Só é apreendido
Traduzível
Com palavras
Conclusão:
A palavra desembrulhada
É ainda palavras

Continuarei a escrever, sem esperar que o leitor se esforce por construir uma coerência para o que está lendo. De passagem, deparou-se-me este excerto do livro Meu corpo e suas imagens, do psicanalista francês Juan David Nasio. À página 55, escreve:

“(...) o que é o eu? O eu é um sentimento, o sentimento de existir, o sentimento de ser você. Um sentimento eminentemente subjetivo porque fundado sobre o vivido igualmente subjetivo de nossas imagens corporais. Considero, pois, o eu uma entidade essencialmente imaginária cunhada por nossas ignorâncias, erros e miragens que confundem a percepção que fazemos de nós mesmos. Logo, Lacan qualificava o eu como “lugar do desconhecimento”. Sentir e viver meu corpo e vê-lo em movimento proporciona-me a certeza imediata de ser eu mesmo, certeza que, não obstante, esconde minha ignorância do que sou e de onde venho. O eu é tanto a certeza de ser o que se é quanto a ignorância do que se é. Agitado pela profusão de minhas sensações internas e pela visão de meu corpo, sei que existo mas não sei que sou. Decididamente, as imagens mentais que forjamos de nosso corpo, substrato de nossa identidade, são imagens subjetivas e deformadas que falseiam a percepção de nós mesmos”
(...) Na verdade, nosso eu é um conjunto de imagens de si mutantes e frequentemente contraditórias”.
(...)

Esse trecho aturdiu-me. Por isso, precisei estampá-lo aqui para nele me deter um pouco. Para tanto, elenco abaixo as ideias que me chamaram atenção:

1ª o eu é um sentimento; sentimento de existir;

2ª uma entidade imaginária, produzida por nossa própria ignorância em relação ao que somos;

3ª o eu é contraditório e conflituoso, já que é formado (na base de imagens de si) pela certeza de ser o que é e, ao mesmo tempo, pela ignorância do que se é;

4ª finalmente, o eu é produto do falseamento das percepções que fazemos de nós mesmos.

Para mim, isso é bastante claro. Essas quatro ideias explicam de modo satisfatório a sensação de que nós nunca (ou quase nunca) conseguimos alcançar as profundezas de nosso ser mesmo. O eu é o escondido para nós; ele nos escapa, porque não resulta senão de interpretações distorcidas que fazemos de nós mesmos.
O texto destaca o caráter subjetivo da produção imaginária do eu. O sentimento do eu é subjetivo. Mas não se considera o papel do outro na construção desse eu. O outro também constrói, na base de imagens, o eu do outro. Existem imagens recíprocas, que se constroem na interação pela linguagem. A imagem que o outro faz de mim (imagem no sentido de julgamentos a respeito de meu modo de ser, de me comportar, atribuição de valores a minha pessoa) é também parte dessa construção imaginária do eu.
Também as quatro ideias sustentam a tese da eterna contradição humana, que Machado já havia anunciado em um de seus contos. Pergunto-me qual o caminho para alcançarmos (no sentido de apreender) alguma parcela desse iceberg que é o eu. Talvez, nunca cheguemos a conhecer verdadeiramente esse eu que nos escapa, que nos está oculto, porque o que sentimos dele, o que apreendemos dele não é senão sua sombra, suas imagens. Para além das imagens, há o ser (eu) inacessível. O eu é o lugar da ignorância de si, do desconhecido.
Isso explica o conflito, as crises emocionais, a ruína da alma, o desespero, o sentimento de vazio do ser, de abandono, o medo da solidão, o medo de não ser amado, de ser discriminado, de ser sobrepujado. O eu que se esconde em mim vem-me à tona, ainda que sob a penumbra, sempre que busco nas palavras algumas luzes. Experienciar-me verbalmente é um caminho que encontro para não me perder por completo. Entendam: quando me experiencio verbalmente, consigo situar-me no mundo, consigo confrontar-me com um outro (ainda que imaginário) que assumo como interlocutor. O sentimento do eu não é possível sem o sentimento do outro. Parece-me que a construção imaginária do eu é, na verdade, uma construção intersubjetiva, da qual participam dois eus que interagem.
A palavra faz-me saltar este eu que muitos só conseguem alcançar a superfície. O meu espanto diante da vida é reconhecer-me tão claramente no espelho das palavras, que nada têm de transparentes, já que são opacas. Este eu impenetrável é um núcleo duro em torno do qual giramos continuamente, até ficarmos tontos e dormir, para no dia seguinte continuar nosso giro incansável à procura de nós mesmos e de nossa situação no mundo.
O eu, que não existe em si mesmo, que é dependente, porque sua existência é social, precisa buscar aproximações com outros eus que girem em torno de si sem se desviarem desse centro; a estes, que se desviam, chamamos de desvairados, atormentados, melancólicos, ou deprimidos, dependendo da natureza e gravidade desse desvio.
A loucura parece consistir na ruptura dessa procura incessante pelo o eu que nos escapa; desse eu que participa de um mesmo quadro social, convencional, consensual do real; giremos em torno desse eu, a fim de nunca nos perder no emaranhado das imagens que fazemos de nós mesmos.

"A palavra é o meu domínio sobre o mundo" . (Clarice Lispector)






                              O homo loquens
                     Breves meditações sobre a linguagem

O tempo me é escasso e receio que não conseguirei externar aqui todos os pensamentos e sentimentos que me ficaram a adejar no espírito nesta manhã. Há excesso nesta experiência da alma que, mesmo depois da queda, ousa ainda ostentar suas asas esplendorosas e opalinas.
Sem mais rodeios, trago à cena o seguinte trecho do livro O que é realidade, de João Francisco Duarte Júnior. À página 27, lê-se o essencial no tocante ao papel que a linguagem desempenha na fabricação da realidade (realidade que não pré-existe à consciência que a organiza numa estrutura dotada de sentido). E não há consciência sem palavras. Bakhtin já havia nos ensinado a respeito disso: a realidade da consciência é o signo.

“O ser humano move-se, então, num mundo essencialmente simbólico, sendo os símbolos linguísticos os preponderantes e básicos na edificação deste mundo, na construção da realidade. Como afirmou o filósofo Ludwing Wittgenstein, “os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo”. Ou seja, o mundo, para mim, circunscreve-se àquilo que pode ser captado por minha consciência, e minha consciência apreende as “coisas” através da linguagem que emprego e que ordena a minha realidade. Assim, o real será sempre um produto da dialética, do jogo existente entre a materialidade do mundo e o sistema de significação utilizado para organizá-lo”.


È claro que não se pode esperar que o homem comum reconheça na língua que utiliza no dia-a-dia esta função básica, ou seja, a função de simbolização, a que lhe fornece um conjunto de categorias que permite que suas experiências de mundo sejam incorporadas à sua consciência numa estrutura dotada de sentido. É claro que não podemos esperar que as pessoas saibam que o mundo não existiria sem os homens e sem um sistema de símbolos – a linguagem – que os diferencia dos animais.
O que o homem comum sabe sobre o papel que a sua língua desempenha em sua vida é simplesmente que ela lhe possibilita a comunicação; melhor seria dizer, a interação social. Evidentemente, isso não é pouca coisa. De fato, a linguagem é lugar de interação social e sem ela não haveria esse meio de trocas e atividades sociais. Aliás, sem linguagem verbal, as sociedades humanas tais como a conhecemos sequer existiriam, porque a linguagem é a realidade mais profunda da estrutura social; dela dependem os demais domínios da sociedade.
Tudo isso está claro. Embora colocado de maneira simples – já que exigiria um desenvolvimento mais pormenorizado, a fim de que alcançasse a atenção merecida, o tema chama-nos a atenção para a importância da ampliação de nossas experiências de linguagem, com vistas ao alargamento de nosso mundo. É o que nos ensina o filósofo Wittgenstein. Enquanto um indivíduo continuar vivenciando a linguagem de modo empobrecido, enquanto ele continuar tendo experiências de linguagem restritas às esferas sociais pelas quais transita habitualmente, enquanto não ampliar essas experiências, continuará circunscrevendo sua atuação na realidade, o que significa dizer continuará mantendo seu mundo muito limitado.
Se você vive e atua num ambiente linguístico empobrecido, se as formas de linguagem com a qual você entra em contato lhe fornecem percepções de mundo, ideologias, crenças rasas que rezam verdades insuspeitáveis, então você não estará habilitado a ampliar seu mundo, a expandir seu poder de atuação social, política, cultural, em suma,  humana.
Pensemos nisso.
Quero compartilhar com os meus leitores as palavras que se acham neste belíssimo passo de Hjelmslev, eminente linguista estruturalista e o principal seguidor do pensamento de Ferdinand Saussure. No artigo Estudo da Linguagem e teoria da linguagem, escreve:

A linguagem – a fala – é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, é quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras já ressoavam a nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida cotidiana até os momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos os dias retira, graças às lembranças encarnadas pela linguagem, força e valor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento (...)”.

(p. 179)


A língua não é um mero instrumento para interagir socialmente, tampouco para a expressão do pensamento; nada semelhante a uma ferramenta que, após a termos usado, guardamos numa caixa. A língua não é instrumento do pensamento, mas seu próprio fundamento. Não há, insisto, pensamento conceitual (baseado em conceitos) sem alguma forma de linguagem. As palavras, que criam conceitos, são responsáveis pela própria possibilidade de pensamento. Portanto, linguagem e pensamento estão intrinsecamente ligados. Disso se segue a compreensão da linguagem como uma faculdade específica humana, inscrita na mente/cérebro dos homens e essa capacidade está intimamente relacionada à cognição.
Fiquemos a pensar sobre a importância da linguagem para a existência humana...

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

"A essência humana é a contradição" (BAR)





Demasiado humano

“Bem-aventurados os que amaram e odiaram, mas depois perdoaram; bem-aventurados os rancorosos, os que temeram, os que sofreram e choraram, mas depois esqueceram, se encorajaram e se alegraram; bem-aventurados os orgulhosos, os narcísicos, os egoístas, que cheios de si, se esvaziaram, e se doaram, e generosos e altruístas se tornaram; bem-aventurados os que foram infiéis, os injustos, que ainda assim amam a fidelidade e a justiça; bem-aventurados os que mentem a verdade e ainda assim acreditam que sem verdade não há amor; bem-aventurados os que reconhecem o humano em si e ainda assim amam o amor”

(BAR)


terça-feira, 1 de novembro de 2011

“Poeta é aquele que leva o infinito dentro de si” (BAR)

 
         Quando chamado à vida eu fui...


“Quando chamado à vida eu fui, o Mistério me disse: “tu serás amante das coisas delicadas, amante das doçuras, das fragilidades; serás amante das sutilezas do espírito; do colorido dos pensamentos e da densidade do sentir; serás amante das escuridões, e das sensações noturnas, do frio, da chuva que são lágrimas caídas do céu; serás amante da poesia que mesmo cantando a morte dá vida a tua alma; serás amante de mulheres que só te alcançaram a superfície; serás amante do amor que se esvazia de si para o outro poder existir; e ainda assim serás amante da doçura, do intangível, do inefável, das sensações que escapam às palavras; serás amante do vazio do ser, do abandono; serás amante daqueles que te inspiram, que te admiram; no entanto, serás profundo conhecedor das asperezas, das rudezas de tudo a que eriges teus versos, teus pensamentos; conhecedor do efêmero, da impermanência e reconhecerá em si a finitude e se encherá do finito; mas permanecerás sempre amante da eternidade, da eternidade que reside no vazio de Ser; serás finito na carne, no sangue, mas infinito na alma: serás, enfim, um poeta.””

(BAR)

domingo, 30 de outubro de 2011

"Uma gota de delicadeza, ao cair-me na alma, inunda-me: a isso chamo inspiração" (BAR)


Você vive a conservar seu coração na pureza e destina-o a umas poucas pessoas, mas que lhe eram caras... e de repente, você descobre por circunstâncias insuspeitáveis que essa pureza estava destinada a uma única apenas, que lhe posou na vida, como uma bela borboleta que lhe pousa fortuitamente na ponta do dedo (ou talvez lhe tenha sido soprada por ventos cuja origem somente seu coração conhece) e, de repente, assombrado, você desperta para a delicadeza, e o cuidado (um gesto brusco poderia afugentá-la). A pureza do coração é esse sentimento de que as coisas belas e frágeis da vida têm uma força tão penetrante na alma, tão extasiante no coração, que nos exigem delicadeza e cuidado, para que elas permaneçam sempre em nossa vida, quer junto a nós, quer em nossa memória. O coração, quando é puro, se contenta com a delicadeza, com o toque que não marca, que não viola, que deseja sem apegar-se... A borboleta, com seu voo gracioso, pousada na ponta do dedo, haverá de seguir seu destino, voará ao infinito que escapa aos seus olhos e você sabe disso, mas não ousa aprisioná-la, apenas se encanta com o instante em que ela está ali pousada, exibindo suas cores e sua graciosidade. A delicadeza está aí onde ao coração puro basta apenas contemplar, sem mais nada desejar.
                                                                         (BAR)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

"A vida não examinada não merece ser vivida" (Sócrates)


                 



                      A experiência de escrita
                                                      
                     Pensamento em comum

 
Não, definitivamente este blog não se confunde com um diário eletrônico. Ele é um vasto terreno fértil de reflexões. Ele é um descampado pelo qual circulam verbalizadas as experiências de leitura e de vida que fui acumulando ao longo dos anos. Ele reúne as minhas experiências com a escrita. Escrever é também uma experiência e uma experiência que não está apartada das outras experiências de vida. Não há distância entre o que vivo e o que escrevo. Há uma intrínseca relação entre escrever e viver, para mim.
A experiência é, por definição, uma relação entre um sujeito conhecedor e um objeto a ser conhecido. Na experiência, observamos, experimentamos, percebemos. Todavia, a própria experiência, fonte de sensações e percepções, também deve ser explicada. Eis que surge o pensamento, que não é senão outra forma de experiência, já que serve à busca do conhecimento. A experiência do pensamento é a capacidade de abrir constantemente longínquos e férteis caminhos para o conhecimento. Refiro-me ao pensamento conceitual, que se desenvolve na base dos conceitos, os quais, por sua vez, não são possíveis sem os quadros da linguagem verbal. O pensamento conceitual, portanto, tem seu fundamento nas palavras, sem as quais ele não é possível.
A experiência de pensamento é o esforço continuado do sujeito pensante (que é um sujeito sócio-historicamente situado) para abrir sempre mais terrenos de reflexões. Daí o pensamento reflexivo, aquele que se volta sobre o já pensado. Todo pensamento é uma forma de representação, ou melhor, de reelaboração ou re-criação do real. O acesso ao real não é imediato, mas mediado pelo pensamento. Não conhecemos o real em si, mas a representação (ou a re-criação) do real no pensamento.
Sei bem que me delonguei em pormenores, protelando o que, na verdade, motiva-me a produção deste texto. Não posso deixar de referir as amigas, com quem me detenho a férteis e inesgotáveis discussões on-line. Também sou beneficiado por conversas presenciais, durante as quais apreendo as feições, as reações corporais da pessoa, o tom de voz, a emoção que emprega em seu discurso. São todos aspectos da experiência vivida que, uma vez captados em minha alma, são verbalizados no papel.
A experiência de pensamento a dois, em conjunto, ou melhor, o pensar em conjunto é muito mais estimulante e produtivo do que o pensamento solitário. Cada palavra proferida, cada concatenação verbal, cada pensamento verbalizado, a cada novo turno de fala, vamos construindo uma cadeia de reflexões. Uma palavra puxa a outra e os pensamentos que se formam vão abrindo novos terrenos, ainda não explorados... E temos de lidar com a insuficiência do que se está pensando e com a inesgotabilidade do que ainda há de ser pensado... Os pensamentos nunca conseguem abranger a totalidade do real.... A dialética nos ensina isso: apenas conseguimos apreender parcelas dessa totalidade, num movimento progressivo totalizante, baseado num processo constante de sucessivas sínteses. Esse processo é inacabado, já que nunca alcançamos o todo; há sempre a emergência do novo, de algo que ainda não conhecemos. A busca pelo conhecimento é, portanto, ininterrupta, inesgotável, incessante. Um princípio básico da dialética consiste em afirmar que a realidade é mais rica do que o conhecimento que temos dela. A realidade sempre escapa às nossas sínteses. Assim é que cada nova síntese gera uma antítese. A realidade é, essencialmente, marcada por contradições. Durante o processo de compreensão, acabamos por avaliar certos aspectos, ignorando outros, no entanto sempre buscando o todo. Sínteses são visões de conjunto que nos permitem apreender a significação da realidade. A estrutura significativa que nossas sínteses buscam apreender é a totalidade.
Pensar a dois permite-nos preencher o maior número de lacunas; ocupar o maior número de espaços ainda não ocupado pelo pensamento. Há sempre um aspecto a ser considerado, algo que um não conseguiu perceber e que o outro percebeu; há caminhos sinalizados por um, que imediatamente são atravessados pelo outro. E assim vão-se construindo vastas avenidas de pensamentos, asfaltadas com palavras. Palavras que erigem grandiosos templos de reflexão e que me motivam, por si mesmas, a insistir a escrever para pensar e viver a compreender.
Todo homem é um filósofo, se puder conservar na alma o espanto diante da vida e do mundo. A filosofia começa nessa admiração, nesse espanto, nesse pasmo diante da realidade, diante da vida. A escrita nos leva a experimentar esse espanto e a desenvolver a faculdade de pensar, complexificando-a e enriquecendo-a.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Para pensar, eu preciso escrever (BAR)

                                 
                                              Escrevo, logo sou


Quando decidi cursar Letras, eu sequer suspeitava do grande valor que tem a linguagem para a própria condição humana. A faculdade da linguagem nos determina como seres humanos, como homo loquens (seres de discurso). Não obstante, cuidava que, desde então, eu conciliaria duas inclinações: a inclinação poética e a inclinação para a reflexão teórica. Conciliados em mim o poeta e o cientista da linguagem. E a linguagem tornara-se, então, o terreno de minha expressão lírica e poética e o objeto de estudo teoricamente dirigido, ou seja, de estudo acadêmico.
Não tardou para eu me aperceber de que a linguagem é um importante instrumento que permite a coesão social; não tardou para eu me aperceber de que a linguagem constitui a base fundamental das sociedades humanas, sem a qual estas não seriam possíveis. Não tardou para eu aprender que o modo como experienciamos o mundo, como o interpretamos e compreendemos depende fundamentalmente do modo como a nossa língua “recorta” o real. Aprendi que as nossas experiências de mundo se tornam dados de nossa consciência, ou seja, formas  de conhecimento, por meio das categorias disponibilizadas pela linguagem. Aprendi que a linguagem está intimamente ligada ao pensamento, à cognição, à cultura e que a inter-relação entre esses domínios permitem aos homens a construção da realidade.
Evidentemente, para os não-iniciados nos estudos linguísticos, sociocognitivos e filosóficos, essas considerações sobre o valor da linguagem podem parecer ininteligíveis (mas já tive a oportunidade de esclarecê-las aqui neste blog, em outros textos). Todavia, não é de minudências teóricas que vou tratar aqui.
Comecemos por um fato evidente por si mesmo: nós falamos o tempo todo. Nosso universo social, em todas as esferas por que transitamos, está povoado de palavras e outras formas de linguagem. A linguagem perpassa todas as esferas de convivência humana;  em outras palavras, todas as esferas sociais. Com Heidegger está a razão, ao declarar:

“O homem fala. Nós falamos na vigília e no sono. Falamos sempre, até quando não proferimos nenhuma palavra, mas escutamos ou lemos, mas nos dedicamos a um trabalho ou nos perdemos no ócio. De um modo ou de outro, falamos ininterruptamente. Falamos porque o falar nos é inato. O falar não nasce de ato particular de vontade. Diz-se que o homem é de natureza falante e é próprio dele, ao contrário das plantas e dos animais, é o ser vivente capaz de falar. Dizendo isso, não se pretende afirmar apenas que o homem possui, ao lado de outras faculdades, também a de falar. Pretende-se dizer que propriamente a linguagem faz do homem o ser vivente que é enquanto homem”.

É claro que a faculdade da linguagem é, aí, compreendida como uma propriedade que define a espécie humana. Todos nós falamos, todos nós, homens e mulheres, nos servimos da linguagem para interagir socialmente, para comunicar nossos estados de espírito, nossos pensamentos.  Nem todos, contudo, usam-na de modo a se notabilizarem, a se distinguirem.
Há os que se utilizam de palavras rasteiras, esvaziadas, se valem delas como um chamariz. Há os que a usam para promover discórdia, para ferir os outros. Como forma de ação social, a linguagem nos permite atuar socialmente. Ao usar a linguagem, agimos sobre o outro, provocando nele, por meio de atos de fala, determinadas reações e comportamentos. Como forma de instituição e delimitação de poder, pelo uso da linguagem discriminamos, marcamos uma relação hierárquica, delimitamos as fronteiras sócio-culturais que nos separam do outro. Pelo uso da linguagem, excluímos socialmente.
É fato inegável que o uso da língua pode congregar ou apartar. Falar uma mesma língua é indispensável à construção de uma identidade social, nacional e histórica. A língua é um elemento fundamental da identidade. Pelo uso da linguagem, marcamos a unidade e a diferença.
Quando decidi criar meu blog e, através dele, propalar os meus escritos, consegui, para a minha alegria, congregar pessoas que, hoje, partilham comigo de suas experiências, sentimentos, ideias e emoções. E muito se deve isso à minha iniciativa de pôr a nu a minha alma, de desnudá-la, de modo que ler-me é me conhecer. Quem me ler me conhece. Conhece-me o essencial, eu diria. O essencial em mim está verbalizado. Ser e escrever, em mim, é a mesma coisa. Vale a paráfrase da famigerada frase cartesiana – “escrevo, logo sou”.
A experiência que eu tenho com a linguagem é uma experiência de sensibilidade. Para não ficarmos patinando em clichê, a sensibilidade deve ser entendida aqui como ‘capacidade de ser afetado por algo’,  ou ‘percepção aguçada’. A linguagem me toca, me afeta, me acarinha a alma e me aguça a percepção. E me alegro quando me dou conta de que as palavras que se espraiam nestes papéis virtuais também afetam os leitores. A linguagem atua não só no domínio racional, mas no domínio da emoção, do sentimento. É neste domínio, em particular, que concentro a expressão de meu lirismo. É aí que as palavras ganham vivacidade, colorido, força, levando os espíritos a vôos longínquos. Para pensar, preciso escrever. E cada vez que escrevo eu me encho de ser.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

"Como falar da felicidade sem falar do amor?" (André Comte-Sponville)

                             

                                      Quem inventou o amor?

Eu gostaria de compartilhar com vocês, estimados leitores, um pouco da leitura, a que me dediquei nesta tarde, do livro O Amor (2011), do filósofo francês André Comte-Sponville.
Ao revisitar as três formas de amor que o pensamento grego conhecia, a saber, Éros, philia, ágape, Sponville, no capítulo Éros ou amor paixão, nos ensinará a respeito desse amor:

“(...) o amor-paixão (...) é o amor que sentimos quando estamos apaixonados, mas no sentido mais forte e verdadeiro do termo, quando “caímos fulminados de amor”, como se diz. Em suma, é o amor que vocês, senhoras, sentiam pelos seus maridos, antes de eles se tornarem seus maridos. Ou o amor que vocês, senhores, sentiam por suas esposas antes de elas se tornarem suas esposas. Lembrem-se de como era diferente...”
(pp. 29-30)
 
É considerando, portanto, o amor-paixão (Éros) que o autor passará em revista a posição de Sócrates, em O Banquete. Dentre aqueles que discorreram sobre o amor e renderam elogios a ele, na ocasião, Sócrates foi o único a dizer a verdade sobre o amor. No discurso socrático, o amor é o desejo pelo que falta.
Não é meu intento, contudo, pormenorizar o conteúdo do discurso de Sócrates, mas referir a opinião do autor sobre o valor do feminino na experiência amorosa. Devemos ter em conta que o que Sócrates nos ensinou sobre o amor é atribuído a Diotima, uma sacerdotisa. Portanto, a verdade vem de uma mulher, e não da boca de um homem (que era a norma naquela época).
Nesse tocante, se expressará o autor:

“É muito raro, em toda a filosofia grega, especialmente na obra de Platão, a verdade vir de uma mulher. E, sem dúvida, não é por acaso que isso ocorra justamente com relação ao amor. Cheguei a dizer, por provocação, que o amor é uma invenção das mulheres”.
(p. 42)
(grifo meu)

Eis a tese: “o amor é uma invenção das mulheres”. Seguirá o autor apresentando justificativas para tal afirmação. Insistirá que ele não quer dizer, com ela, que os homens são incapazes de amar ou que o amor não existe. Na verdade, segundo o autor, o amor existe, já que foi inventado; e ele existe, inclusive, para os homens também. No entanto, declara:

“(...) mas não existiria se as mulheres não tivessem tomado a iniciativa do amor”.
(id.ibid.)


Para o autor, o amor seria uma experiência primordialmente feminina, ou seja, uma experiência criada e ensinada pelas mulheres, e não pelos homens. Sua argumentação segue nestes termos:

“O que quero sugerir, dizendo isso, é que uma humanidade exclusivamente masculina (poderia ter ocorrido, a natureza apresenta outros modos de geração que não a reprodução sexuada) nunca teria inventado o amor. O sexo e a guerra sempre teriam sido suficientes – digamos, para sermos menos incompletos: o sexo, a guerra, os negócios e o futebol sempre teriam sido suficientes! Acontece que, para as mulheres, felizmente, o sexo, a guerra, os negócios e o futebol não são suficientes. Assim, elas inventaram outra coisa, que concerne à cultura pelo menos tanto quanto à natureza (mas a cultura faz parte do real, como a humanidade), algo que elas viveram como mães, sem dúvida, muito mais e muito antes do que como amantes ou esposas, algo que chamamos de amor, que elas trataram de ensinar também aos homens (ao filho, ao companheiro), os quais pouco a pouco conseguiram aprender, ao longo dos milênios, a tal ponto que para os mais talentosos quase poderíamos esquecer que se trata de um personagem que foi composto... (...)”
(pp. 42-43)

Ao cabo deste parágrafo, o autor agradece “do fundo do coração” a todas as mulheres por tão grandioso feito.
Importa ver que, ao situar o amor no domínio do feminino, ao qual atribui o autor o poder criador, ele nos chama a atenção para a relação intrínseca entre amor e cuidado, entre amor e amparo. Afinal, é essa a experiência que a mulher, então, mãe, vive junto ao filho que está a amamentar e a criar. O amor nasce então do ato de cuidado. Trata-se, novamente, da ideia, aqui por mim, exaustivamente, defendida do amor como experiência de cuidados.
Também aí vemos que, no universo feminino, sexo não se identifica com amor, muito embora a experiência sexual deva ser uma das formas de expressão do amor. Donde se segue a crença generalizada de que mulheres fazem amor e homens fazem sexo. O divórcio entre sexo e amor, comum no universo masculino, é superado, pelo menos ideologicamente, no universo feminino. Neste, sexo e amor não se identificam, mas aquele mantém com este relação simbólica, tal como significante (sexo) e significado (amor).
Sabemos, contudo, como me dissera um taxista, que há muitas mulheres sexualmente disponíveis por aí (embora muitas ainda esperem encontrar homens para os quais a experiência sexual seja também uma das formas de expressão da experiência amorosa). Se,  dos anos 60 a 70, assistimos a uma “Revolução Sexual”, quem sabe daqui a alguns anos não possamos assistir a uma “Revolução amorosa”? Sim, uma “Revolução do Amor”, que tem de ser deflagrada pelas mulheres, suas criadoras. Essa revolução consistirá num movimento político-ideológico que reivindicará mais respeito, mais fidelidade, mais cumplicidade, mais excesso de alma e de ser nas experiências interpessoais.
Já é tempo de fazer ver uma ética feminina, fundada no cuidado. A mesma mulher que hoje conseguiu ocupar o cargo de maior poder deve ser a mulher que reivindicará e conquistará o domínio sobre algo, que lhe é seu naturalmente, e que é tão importante à vida da humanidade: O AMOR.
É com as palavras de Sponville, que compõem a seção Introdução, que ponho termo a este texto. O autor lembra-nos o seguinte a respeito do amor:

“(...) Não são necessárias longas preliminares para justificar a escolha desse tema: o amor é o tema mais interessante. Quase sempre. Para quase todo o mundo. Por exemplo, numa noite, num jantar com alguns amigos. A conversa pode girar em torno da situação política, do último filme que vocês viram, da sua profissão, das férias, e tudo isso pode ser interessantíssimo. Mas, se um dos convivas se põe a falar de amor, o interesse dos outros quase sempre aumenta sensivelmente. Sim, o amor, tomado em si mesmo, é o tema mais interessante, quase sempre, para quase todo o mundo. Acrescentarei que qualquer tema só tem interesse à medida do amor que temos por ele. Imaginem que um de vocês me diga: “Não, não, para mim nem um pouco! O que mais me interessa não é o amor, é o dinheiro!” Eu responderia, claro: “Isso prova que você ama o dinheiro!” É sempre um amor...
(...) Não só o amor é o tema mais interessante, para a maioria de nós, mas qualquer outro tema só tem interesse à medida do amor que temos por ele”.
(p. 11)




segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Poemas da madrugada




O Sentido


Quero que nesta madrugada
Quando dormir
O sono tranquilo
Meu espírito alcance
Maior compreensão
Do Amor
Da Vida
Da Paixão
Que o dia seguinte
Assentada sua luz
Me cubra de alento
E a sabedoria
Me acolha
No seu conforto
Assim repousarei
Na serenidade
Daqueles que já viveram muito
Já perderam muito
Sofreram muito
Amaram muito
Mas compreenderam
O SENTIDO.
A isso chamam
MATURIDADE

(BAR)



Infância

Eu ainda animo a criança
Que vive a brincar em minha alma
A jogar com a inocência
Equilibrando a ingenuidade
Apenas para não deixar
De AMAR
E acreditar
No AMOR

(BAR)







Infantil

A infância de minha alma
Só conhece uma única palavra
AMOR
Por isso amo como a criança
Que precisa de amparo
Por isso conservo na alma
A infância
E a ânsia
De amar (em excesso)
E ser mais amado

(BAR)

Drummond soube conjugar sabedoria e poesia numa única estrofe


                                 

               Foi mera coincidência que Drummond também tenha assinado Andrade.

 

                               Não deixe o Amor passar



Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento,houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d’água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.
Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Deus te mandou um presente: O Amor.
Por isso, preste atenção nos sinais - não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: O AMOR.
(Carlos Drummond de Andrade)