A Grande Redistribuição
Enquanto,
muito recentemente, no Brasil, o Congresso Nacional rejeitou o projeto do
governo Lula de implementação do imposto progressivo, entre os anos de 1914 e
1980, no mundo ocidental, países como Reino Unido, França, Alemanha, Estados
Unidos e Suécia, entre outros, além de Japão, Rússia, China e Índia, levaram a
efeito a chamada “grande redistribuição”. Naquele período, as desigualdades de
renda e de propriedade nesses países foram acentuadamente reduzidas.
O
primeiro fator decisivo para essa grande redistribuição foi o fortalecimento do
Estado social, somente possível em virtude das lutas sociais e da atuação
crescente do movimento socialista e sindicalista a partir do século XIX. O fortalecimento do Estado social foi
acelerado pelas duas Grandes Guerras Mundiais e pela crise de 1929, que, no
espaço de 31 anos (1914-1945), modificaram completamente as relações de força
entre trabalho e capital.
O
segundo fator igualmente decisivo para a ampla redistribuição foi o
desenvolvimento do imposto progressivo sobre a renda e a herança, cuja
consequência notável foi a redução substancial da concentração de riquezas e do
poder econômico no topo da pirâmide social, o que também favoreceu uma maior
mobilidade social e prosperidade. O imposto progressivo também foi decisivo na
definição de um novo contrato social e fiscal. A redução das desigualdades e a
desnaturalização da propriedade privada foram também efeitos da influente
liquidação dos ativos estrangeiros e coloniais e das dívidas públicas – tema
que, no entanto, não será contemplado neste texto.
Ocupar-me-ei,
doravante, da contribuição dos dois referidos fatores para a chamada “grande
redistribuição”
1.
A invenção do Estado social
No período que se estende de 1914 a 1980, houve uma
expansão, sem precedentes, da importância do Estado tributário e social em
todos os países ocidentais. En passant, pretendo mostrar que o
fortalecimento de um Estado social e tributário não é, como afirmam os
conservadores, os reacionários, os liberais da extrema-direita e grande parte
da imprensa brasileira, um inimigo a ser combatido, mas um mecanismo,
historicamente, eficaz para a promoção de maior igualdade socioeconômica. Importa
sublinhar, desde já, que vários estudos patenteiam que o fortalecimento do
Estado tributário contribui sobremaneira para o processo de desenvolvimento
econômico (Piketty, 2022).
No fim do século XIX, as receitas tributárias totais,
compreendido aí o conjunto das taxas, impostos, cotizações e alíquotas
obrigatórias, representavam menos de 10% da renda nacional na Europa e nos
Estados Unidos. O cenário fiscal e econômico mudaria radicalmente entre 1914 e
1980, período em que o peso da tributação triplicou nos Estados Unidos e mais
que quadriplicou na Europa. No Reino Unido, na Alemanha, na França e na Suécia,
as receitas tributárias recobriam, entre os anos de 1980 e 1990, 40-50% da
renda nacional. Novas receitas permitiram o financiamento de despesas que se
mostraram indispensáveis não só à redução das desigualdades, mas também ao
processo de impulsão do crescimento econômico.
É notável constatar o fato de que foi o investimento
massivo e relativamente igualitário na educação e na saúde que possibilitou o
desenvolvimento das infraestruturas de transporte e de equipamentos coletivos,
bem como das rendas da previdência social, fundamentais ao enfrentamento do
envelhecimento e à estabilização da economia e da sociedade em um contexto de
recessão. Consoante salienta Piketty
(ibid., p. 135) “é preciso insistir na importância decisiva das despesas com
educação, ao mesmo tempo como fator de igualdade e motor do
desenvolvimento”. Conquanto não seja
possível discorrer, neste texto, sobre as razões que explicam a insistência com
que o Brasil negligencia historicamente esta lição, o leitor habituado à
reflexão crítica, muito provavelmente, comungará com o autor deste texto do
sentimento de indignação perante o atraso social, político e econômico
brasileiro na consolidação de um Estado de bem-estar social e no investimento
em Educação.
No fim do século XIX e no início do século XX,
persistia um sistema escolar bastante elitizado e hierárquico em grande parte
do mundo. Naquele tempo, apenas uma minoria da população mundial poderia
aspirar a completar o ensino fundamental e ir além dos primeiros anos do ensino
médio. Os gastos com Educação eram irrisórios e dificultavam, por isso,
qualquer avanço na escolarização da maioria da população; no entanto, entre os
anos de 1870 e 1910, houve uma tímida progressão no investimento em Educação,
que girava em torno de 0,5 e 1% da renda nacional. Nesse setor, os Estados
Unidos estavam mais avançados do que a Inglaterra.
Foi ao longo do século XX que o investimento em
Educação foi multiplicado em dez vezes, até atingir a marca de 6% da renda
nacional em todos os países ocidentais nos anos de 1980 a 1990. Esse massivo
investimento em Educação viabilizou o financiamento do acesso quase universal
ao ensino médio e de um acesso progressivo ao ensino superior de grandes
parcelas da população. Nesse contexto histórico caracterizado pela expansão
educacional, o avanço dos Estados Unidos é particularmente notável, em meados
do século XX. Note-se que, nos anos de 1950, a proporção de crianças na faixa
de 12 e 17 anos (tanto meninos quanto meninas) no ensino médio, naquele país,
atingira quase 80%. Nesse mesmo período, a taxa de escolarização secundária
situava-se entre 20% e 30% no Reino Unido e na França. Na Alemanha e na Suécia,
essa taxa chegava a 40%. Esses países, comparados aos Estados Unidos, tiveram
de esperar os anos de 1980-1990 para alcançar as taxas de escolarização de 80%
do ensino médio. Fora do mundo ocidental, o Japão se notabilizou pela expansão
educacional acelerada entre 1880 e 1930, num contexto histórico marcado pela
concorrência exacerbada com as potências ocidentais. No Japão, a escolarização
secundária atingiu 60% nos anos de 1950 e ultrapassou os 80% no início dos anos
de 1970.
Consoante se vê, foi a partir da década de 1950 que a
Europa, onde os alicerces de um Estado social já estavam estabelecidos, ampliou
e diversificou as despesas sociais e educacionais, que passaram a absorver dois
terços do total da renda nacional. Essa ampliação do investimento em Educação
prosseguiu entre os anos de 1950 e 1980. Nas palavras de Piketty (ibid., p.
137), “de modo geral, os governos começaram a se dar conta, no fim do século
XIX, de que a formação era uma questão de força e não apenas de igualdade e
emancipação individual”.
Por força da segunda Revolução Industrial, que se
propagou entre 1880 e 1940 nos campos da química, da siderurgia, da
eletricidade, dos eletrodomésticos e automotivos, a qualificação cada vez maior
dos trabalhadores se tornou uma exigência incontornável. Diferentemente do que
sucedeu na primeira Revolução Industrial, quando era possível, nas indústrias
têxteis e de carvão, absorver uma mão de obra relativamente mecânica e
submetida à supervisão de alguns engenheiros, na segunda Revolução Industrial,
tornou-se essencial que uma parcela cada vez maior da classe trabalhadora
passasse a dominar os processos de fabricação, dispondo de um mínimo de cultura
técnica e numérica.
O avanço educacional norte-americano explica, em
grande medida, a considerável distância entre os Estados Unidos e o restante do
mundo, no que tange à produtividade da mão de obra em meados do século XX. Consoante ensina Piketty, o avanço
norte-americano e sua disparidade em termos de produtividade foram compensados,
nas décadas seguintes, pela equiparação do produto interno bruto por hora
trabalhada com o da Alemanha e da França. Assim, o PIB é quase o mesmo nesses
países desde as décadas de 1980-1990.
O
fato de ignorar o tempo de trabalho nesse tipo de comparação (escolha bastante
discutível e infelizmente bastante difundida) representa silenciar o imenso
movimento histórico de progressão do lazer e das férias remunerada e da redução
da jornada semanal de trabalho, quando essa questão esteve no centro das
mobilizações sindicais e populares ao longo dos dois últimos séculos. (Piketty,
ibid., p. 138).
Convém salientar a profunda diferença entre o
primeiro grande avanço do Estado social e tributário e o segundo. Entre 1700 e
1850, ocasião em que se deu o primeiro avanço, as potências europeias elevaram
suas receitas tributárias de 1% e 2% da renda nacional para 6-8%. Esse aumento
das receitas correspondia aos gastos com serviços militares e administrativos
gerais. O Estado era controlado pelas elites nobiliárias e burguesas e estava
inserido num contexto de concorrência interestatal e de expansão colonial e
comercial. Entre 1914 e 1980, os gastos sociais ganharam proeminência. Conforme
nota Piketty, essa expansão, sem precedentes, do papel do Estado ocorreu em
benefício das classes médias e populares, e, em larga medida, sob seu controle
e, em alguns casos, sob o controle dos movimentos políticos que as representavam
e cujos atores elas elegeram, “em condições totalmente inéditas na história”!
(ibid., p. 138).
Em vários países europeus, graças ao fortalecimento
do Estado social, cresceu a representação política das classes populares. No
Reino Unido, por exemplo, o partido trabalhista obteve a maioria absoluta das
cadeiras nas eleições de 1945 e implementou um serviço mensal de saúde – o
National Health Service (NHS)- e um amplo sistema de proteção social. Não se
pode passar insensível ao fato de que o país mais aristocrático da Europa,
governado pela Câmara dos Lordes até a crise de 1909, tenha se tornado um país
onde um partido genuinamente popular e representado por trabalhadores chegou ao
poder e conseguiu implementar suas reformas.
Na Suécia, país onde os proprietários dispunham de
cem direitos de voto até 1910, os sufrágios trabalhistas alçaram ao poder os
sociais-democratas de modo quase contínuo a partir de 1932. Na França, por seu
turno, a Frente Popular fixou as férias remuneradas em 1936, e a forte presença
de comunistas e socialistas no Parlamento e no Governo tornou possível a
instituição de um sistema de Seguridade Social em 1945.
2.
A dupla Revolução Antropológica
Nos
últimos parágrafos, descreveu-se o primeiro grande aspecto da Revolução
Antropológica: os gastos sociais se elevam em comparação com os gastos
militares e relacionados à soberania. O segundo aspecto dessa Revolução
consistiu no fato de o Estado, pela primeira vez na história, deixar de ser
controlado exclusivamente pelas elites econômicas. Isso representou a
consagração do sufrágio universal, da democracia representativa e parlamentar,
do processo eleitoral, da alternância politica, e tudo isso foi impulsionado
por uma imprensa independente e pelo movimento sindical. Disso se colhe um
ensinamento fundamental: é possível não só abandonar o poder censitário, mas
também o capitalismo e a mercantilização generalizada.
O
fortalecimento do Estado social, então representativo das demandas sociais e a
serviço dos interesses das classes populares, permitiu que vastos setores da
economia, como a educação, a saúde e uma parte significativa dos transportes e
energia, se organizassem fora da lógica comercial. É bem verdade que isso só
foi possível porque foram criados diversos sistemas de empregos públicos,
estruturas mutualistas ou não lucrativas e realizados subvenções e
investimentos financiados pelos impostos. Como nos ensina Piketty, esse modelo
não apenas funcionou, como também foi muito mais eficaz do que o setor privado
capitalista.
Aos
que, no Brasil, ainda hoje, ignoram os ensinamentos históricos, urge dizer, com
o devido destaque, que o Estado social e o imposto progressivo constituem
fatores poderosos e eficientes que permitem transformar o capitalismo. Sem
que essas duas instituições – o Estado social e o imposto progressivo – sejam
objeto de uma ampla mobilização e apropriação coletiva, o movimento rumo à
igualdade não poderá ser retomado. Vale citar as palavras de Piketty: “(...) o
Estado social e o imposto progressivo constituem de fato uma transformação
sistemática do capitalismo”. (ibid., p. 170, grifo meu).
Organizadas
em torno de uma lógica que deve ser levada até as últimas consequências,
aquelas duas instituições representam uma etapa fundamental para a efetivação
de uma nova forma de socialismo democrático, descentralizado,
autogestionário, ecológico e diversificado, à luz do qual outro
mundo, mais emancipador e igualitário, pode ser construído. Essa nova forma de
socialismo não só é possível, como necessária em face da crise humanitária e
dos efeitos ambientais devastadores causados pelo capitalismo. Veremos, mais
adiante, em linhas gerais, como esse socialismo democrático e descentralizado
se organizaria. Por ora, descerei algumas considerações sobre o imposto
progressivo, destacando seu importante papel social e econômico. Ao fazê-lo,
começarei por distingui-lo do imposto regressivo.
3.
O imposto progressivo: um mecanismo
eficaz de redistribuição de renda e propriedades
Até
o início do século XX, quase todos os sistemas fiscais do mundo eram
regressivos, ou seja, impostos mais pesados recaíam sobre a renda dos mais
pobres. Este ainda o sistema de arrecadação vigente no Brasil hoje. A despeito
do que dizem certos lobistas norte-americanos, é um fato histórico que os
sistemas de saúde pública de padrão europeu são menos dispendiosos e mais
eficientes na promoção do bem-estar e da expectativa de vida que as empresas
privadas americanas. Nos países em que se desenvolveu, ao longo do século XX, o
Estado social e tributário, não há um movimento político de envergadura que
proponha o retorno à situação anterior a 1914, quando as receitas tributárias
chegavam a menos de 10% da renda nacional.
Segue-se,
pois, a definição de imposto progressivo. É um tipo de imposto que se
caracteriza pelo fato de que a alíquota da tributação efetivamente paga pelos
diferentes grupos ou classes sociais aumenta proporcionalmente ao aumento da
renda e do patrimônio. Por outro lado, impostos regressivos baseiam-se
em taxas sobre o consumo e em impostos indiretos, que representam uma carga
tributária proporcionalmente mais pesada para os mais pobres do que para os
mais ricos. O caso mais extremo de imposto regressivo é a capitação,
isto é, a cobrança de uma taxa de mesmo valor para todos, o que representa uma
proporção de renda dez vezes maior para um salário baixo do que para outro dez
vezes mais bem pago. Toda vez que um deputado de direita ou um jornalista
alinhado com a agenda da direita ou da extrema-direita falar em imposto
proporcional ou defendê-lo, esteja ciente o leitor de que se defende a
permanência de um imposto que representa uma mesma porcentagem da renda ou do
patrimônio para todas as classes sociais.
Debates
sobre a implementação do imposto progressivo já existiam no século XVIII
(Revolução Francesa), muito embora a Revolução não tenha impedido a adoção de
impostos proporcionais ou regressivos pelos principais países europeus. A
recusa do imposto progressivo contribuiu para a alta concentração da
propriedade até 1914. No início do século XX, no entanto, o imposto progressivo
foi adotado por quase todos os países no Ocidente e fora dele. Nos Estados
Unidos, a taxa superior do imposto federal sobre as rendas mais altas passou de
7%, em 1913, para 77%, em 1918. Essa taxa atingiu a impressionante marca de 94%
em 1944. A média de 1932 a 1980 ficou em 81%. Avanços espetaculares no sistema
de tributação também se observaram no Reino Unido, na Alemanha, na França, na
Suécia e no Japão. Tais avanços são relativos tanto ao imposto progressivo
sobre a renda quanto sobre as heranças. (O leitor interessado em saber como
esses avanços se representam matematicamente pode consultar o gráfico que
consta do livro Uma breve história da igualdade (2022), de Thomas Piketty).
Mais importante, para os meus propósitos, é dar a conhecer as condições e os
fatores que impulsionaram a adoção do imposto progressivo em diversos países do
mundo no período compreendido entre 1914 e 1980.
Os conflitos da Primeira Guerra Mundial, a pressão do regime bolchevique sobre as
elites e uma progressiva mobilização social acompanhada de um movimento
reivindicatório permanente impulsionaram a adoção da progressividade
tributária. Na França, foi a ameaça socialista e comunista que levou as elites
a consentirem no imposto progressivo pesado, temendo uma alta expropriação, se
o recusassem. O Bloco Nacional, formado por grupos de direita, tendo-se
recusado a aprovar um imposto de 5% antes da guerra, cedeu à aprovação de uma
alíquota acima de 60% no início de 1920, num contexto sociopolítico e econômico
marcado por destruição, salários baixos e ameaça de greves. Na Suécia, a
ascensão dos sociais-democratas foi determinante da adoção do imposto
progressivo. Na Inglaterra, o fator determinante foi a queda da Câmara dos
Lordes. Nos Estados Unidos, um longo processo de revisão constitucional, impulsionado
pela mobilização popular e pela exigência de justiça fiscal, levou à
instituição de um imposto federal sobre a renda em 1913. A crise de 1929 forçou
Roosevelt a elevar a progressividade fiscal a níveis inéditos nos anos de 1930
e 1940.
A
partir da década de 1980, houve, todavia, um retrocesso na marcha rumo à
igualdade. Antes de me deter no exame das condições e das razões desse
retrocesso, cumpre reiterar os ensinamentos colhidos da “grande retribuição”
ocorrida entre os anos de 1914 e 1980. A principal lição é que tanto o Estado
social quanto o imposto progressivo são instrumentos bastante eficazes na
transformação do capitalismo, muito embora a superação desse modo de produção
dependa da instituição de uma nova forma de socialismo. Outra lição, não menos
importante, é que um novo movimento rumo à igualdade só pode ser deflagrado se
o Estado social e o imposto progressivo estiverem no centro de uma vasta
mobilização social e apropriação coletiva.
Segundo
Piketty, se quisermos compreender adequadamente o porquê do contramovimento que
gerou uma hiperconcentração de renda e propriedade a partir dos anos de 1980,
devemos avaliar tanto os limites das conquistas daquelas instituições no século
XX quanto determinar as razões que conduziram ao seu enfraquecimento a partir
de 1980. O desenvolvimento e o recrudescimento da racionalidade neoliberal, que
levou à liberalização financeira e à live circulação de capitais desempenharam
um papel fundamental no enfraquecimento tanto do Estado social quanto do
imposto progressivo. Recorde-se com Brown (2019, p. 28-29) que o neoliberalismo
“reduz radicalmente o Estado, amordaça o trabalho, desregula o capital e produz
um clima de impostos e tarifas amigáveis para investidores estrangeiros”. Passo, pois, a examinar como se deu o recuo
da marcha em direção à igualdade.
4. O retrocesso: a persistência da
hiperconcentração de renda e propriedades
O
limite de todo o processo que, entre os anos 1914 e 1980, vinha tornando o
mundo mais igualitário, em vários países, na Europa e fora dela, é a
hiperconcentração da propriedade tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Na
Europa, observou-se a emergência de uma “classe média patrimonial”, cujos
privilégios foram muito duradouros. Os 40% da população europeia entre os 50%
mais ricos e os 10% mais pobres detinham pouco mais de 10% do total de
propriedades em 1913. No ano de 2020, a concentração de propriedades chegou a
40%, sob a forma de bens imobiliários. Nesse mesmo ano, no continente europeu,
os 10% mais ricos possuíam 55% do total, enquanto os 50% mais pobres quase nada
possuíam.
Se,
na Europa, por um lado, o crescimento da desigualdade foi menos acentuado
(quando comparado com o aprofundamento da desigualdade nos Estados Unidos),
houve, por outro lado, um enfraquecimento gradativo da posição dos 40% da
classe média e, sobretudo, dos 50% mais pobres.
A desregulamentação financeira em curso desde 1980 (uma herança das
políticas econômicas neoliberais) beneficiou o mercado financeiro, cujos
agentes viram seu lucro aumentar exponencialmente com o endividamento da
população. As desigualdades de renda
também aumentaram no pós-1980, sobretudo nos Estados Unidos. Como pondera
Piketty, a restrição do imposto progressivo, mormente nos Estados Unidos,
acarretou o ressurgimento das fortunas mais altas e a explosão das vultosas
remunerações dos executivos. Comparada aos Estados Unidos, a Europa logrou mais
sucesso na contenção do aumento da desigualdade. Os 10% mais ricos viram seus
privilégios caírem de 52% do total da renda nacional, em 1910, para 28% em
1980, antes de alcançar o patamar de 36% em 2020. Na faixa dos mais pobres,
observa-se que os 50% passaram de 13% do total da renda, em 1910, para 24% em
1980, antes de declinar para 21% em 2020. Nos Estados Unidos, a desigualdade de renda e
propriedades é mais alarmante. Em 2020, os 50% dos mais pobres possuíam apenas
2% do total da renda nacional, ao passo que os 10% dos mais ricos detinham 72%.
Assim, em 2020, os Estados Unidos ocupavam uma posição intermediária entre a
Europa de 1913 e a Europa de 2020, em termos de concentração de riqueza, mas
com uma clara tendência para a se aproximar da situação europeia de 1913.
Se
quisermos retomar a marcha rumo à igualdade, o caminho a ser trilhado já foi
definido no século XX: é necessário aperfeiçoar e intensificar as
instituições que conduziram grandes parcelas da humanidade a um mundo mais
justo socialmente, mais próspero e igualitário, quais sejam, o Estado social e
o imposto progressivo. Evidentemente, o movimento rumo à igualdade social e
econômica não deve estancar aí. O Estado social e o imposto progressivo são
etapas para o desenvolvimento de um socialismo democrático, descentralizado e
diversificado. Claro está também que, sem uma mobilização social e coletiva
poderosa, a retomada do movimento rumo à igualdade nas próximas décadas não
será possível.
Vou
tecer algumas poucas considerações sobre a revolução conservadora da era de
Reagan e Margareth Thatcher. Sob foco de minha atenção está, portanto, o
neoliberalismo. Ele representou a confluência das ideias da Escola de Chicago
com as políticas de Ronald Reagan e Margareth Thatcher. A doutrina neoliberal,
cuja robustez teórica alcançou seu auge nos movimentos pelos direitos civis no
início dos anos de 1970, trouxe ao processo de globalização a desregulamentação
econômica, a privatização, o livre-mercado, a financeirização e securitização
(processo de transformação de dívidas em papéis negociáveis no mercado de
capitais). Com a extensão da lógica neoliberal para todas as esferas da vida
social, houve um aumento contínuo da pobreza e da concentração de riqueza em
grande parte do mundo.
Como
mostra Piketty, o sucesso do neoliberalismo não decorreu somente do apoio amplo
das classes dominantes, mas também das debilidades da coalização igualitária,
que fracassou na sustentação de uma narrativa alternativa ao modelo neoliberal
e na mobilização popular suficientemente forte em defesa do Estado social e do
imposto progressivo.
5. Rumo a um socialismo democrático,
descentralizado e diversificado
Nesta
última seção, esforçar-me-ei por apresentar, didaticamente, o conjunto de
medidas propostas por Piketty com vistas à superação do aumento da concentração
da riqueza observada no curso da institucionalização das políticas neoliberais.
O que se segue é o delineamento do caminho rumo a um socialismo democrático e
descentralizado, distinto, portanto, da experiência socialista da União
Soviética.
Deve-se
partir, em primeiro lugar, do ensinamento histórico: a implementação e
manutenção do imposto progressivo é o fator fundamental para a construção de um
Estado social, sem o qual não é possível a transformação sistemática do
capitalismo. Sem o imposto progressivo e o Estado social, não há meios de pôr
fim às mais altas rendas e ao processo de mercantilização da vida social. O
imposto progressivo, conforme lembra Piketty, não apenas permitiu a repartição
mais justa dos impostos, como também limitou fortemente as desigualdades antes
dos impostos. Em outras palavras, o imposto progressivo é um mecanismo de
intervenção no cerne do processo produtivo, se bem que acompanhado do direito
sindical e da presença de trabalhadores nos conselhos administrativos das
empresas. De qualquer forma, o imposto progressivo permite a redução
significativa da escala de salários, pela aplicação de alíquotas entre 80% e
90% sobre as rendas mais elevadas. A luta, em pé de igualdade, contra o setor
mercantil depende desses mecanismos de sobretaxação. Reconduzir a diferença salarial de uma escala
de um a vinte ou de um a cem não é uma questão apenas de justiça distributiva;
é uma questão de eficiência na regulamentação pública e no desenvolvimento de
formas alternativas de organizar a economia.
Segundo
Piketty, ao estabelecimento de novos sistemas de renda básica (os atuais em
vigor na maioria dos países europeus são muito ineficientes), deve-se
acrescentar a igualdade de acesso à formação e a igualdade de poder de
negociação para os assalariados e seus representantes. No tangente à
importância da criação de um novo sistema de renda básica como uma das medidas
para a retomada do movimento de promoção da igualdade, vale atender nas
palavras de Piketty (ibid., p. 172):
(...) é essencial
estender a renda básica às pessoas com salários e rendimentos mais baixos, com
um sistema de depósito automático nos contracheques e nas contas
bancárias, sem que elas precisem solicitá-lo, em conjunto com o sistema de
imposto progressivo sobre a renda (igualmente descontado na fonte).
As
propostas atuais de renda básica fixada em metade e ¾ do salário mínimo em
tempo integral representam uma tentativa ainda insuficiente de combate das
desigualdades. Embora permitam estabelecer um piso, essas propostas não são
bastantes. Como complemento da renda básica, pode-se instituir um sistema de
garantia de emprego, que foi objeto de discussão no contexto do Green New Deal.
Trata-se aqui de oferecer um emprego em tempo integral com um salário mínimo
fixado num nível decente a todas as pessoas que o desejassem. O financiamento
ficaria a cargo do Governo Federal e os empregos seriam ofertados por agências
públicas de emprego no setor público e associativo. Para Piketty, tal sistema
poderia contribuir sobremaneira para o processo de desmercantilização e para a
redefinição social das necessidades, mormente em termos de serviços prestados à
população.
A
construção de um socialismo democrático e participativo envolve ainda a
redistribuição da herança (a partir de um sistema de herança para todos) e o
aumento do poder de negociação das classes trabalhadoras. Vou-me deter na
discussão desses pontos, antes de pôr termo a este texto.
5.1.
A redistribuição da herança
Tudo
que se expôs até aqui deve ser compreendido num quadro de referência das
condições sócio-históricas da Europa e, particularmente, da França. As
propostas de Piketty não podem ser diretamente estendidas à realidade social,
política e econômica brasileira, sem que se levem em consideração nossa
formação cultural, nosso sistema jurídico e nossa Constituição. Ainda que
fiquemos com a impressão de que os mecanismos promotores da redistribuição da
riqueza e da propriedade propostos por Piketty encontrem obstáculos
institucionais e ideológicos para a sua implementação no Brasil, não devemos,
por isso, ignorar que eles descortinam um caminho para a superação do
capitalismo e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Consideremos
como se desenha a proposta redistributiva de Piketty, baseada na herança para
todos. O autor adverte-nos de que ela poderá ser redefinida em níveis mais
ambiciosos.
Aqueles
que absolutamente nada herdam e que perfazem aproximadamente os 50% mais pobres
receberiam 120 mil euros (quase 750 mil reais), enquanto aqueles que herdam 1
milhão de euros, valor correspondente à herança médica recebida pelos 10% mais
ricos, com enormes disparidades, receberiam 600 mil euros ( aproximadamente 3
milhões e 800 mil reias), depois que se aplicasse o sistema de tributação e de
dotação. O leitor, quiçá, tenha se dado conta de que ainda não estaríamos nem
perto de atingir a igualdade de oportunidades, condição esta que “as classes
privilegiadas temem tanto quanto a peste, tão logo se cogita um início de
aplicação concreta” (ibid., p. 177). Para Piketty, em teoria, não só é
absolutamente possível, mas também desejável, intensificar ainda mais a
redistribuição de herança.
O
sistema de financiamento proposto pelo autor não é inédito na história. Ele
repousa sobre tabelas de tributação semelhantes às já adotadas ao longo do
século XX. Nelas, as alíquotas variam de alguns por centro para os patrimônios
e as rendas inferiores à média 80-90% para os patrimônios e as rendas mais
elevadas. A principal novidade da proposta, no entanto, é valer-se de uma
tabela similar que contemple o imposto anual sobre a propriedade, juntamente
com o imposto sobre a renda e o imposto sobre as heranças. Esse novo modelo de
tributação, com foco nas heranças, é essencial, se quisermos superar a
redistribuição de propriedade realizada no século XX. Com a aplicação correta e
o controle adequado, o imposto anual
sobre propriedades permite a arrecadação de receitas mais elevadas do que as do
imposto sobre heranças; além disso, permite equilibrar melhor os esforços em
função da capacidade de contribuição de todos. O autor não ignora que uma
tabela específica também deveria ser aplicada às posses de fundações e órgãos
com fins não lucrativos, evitando, assim, uma concentração excessiva de poder
em um pequeno número de instituições. Assim se poderia permitir o
desenvolvimento de estruturas sociais menos abastadas. A esta altura, devemos
rechaçar a suposição de que a redistribuição da propriedade é suficiente em si
mesma para a superação do capitalismo. Não se trata de substituir grandes
proprietários por pequenos e médios proprietários igualmente ávidos de lucro e
indiferentes às consequências sociais e ambientais de suas ações. Atenda-se no
seguinte passo de Piketty:
A redistribuição da
propriedade é acompanhada de tabelas de tributações bastante progressivas que
impedem que as pessoas acumulem ou poluam sem limites e que, se necessário,
podem ser endurecidas. (ibid., p. 178).
Uma
regulamentação do uso da herança para todos poderia ser implementada com vistas
à limitação desse uso a projetos que se destinassem à aquisição de moradias ou
à abertura de empresas com vocação social ou ambiental. Conforme assinala
Piketty, “a discussão é legítima, desde que, contudo, sejam aplicadas as mesmas
regras a todas as heranças e a todos os herdeiros e não apenas às classes
populares que se beneficiam da herança mínima” (ibid.). O autor insiste em que
a implementação do sistema de renda básica e da garantia de emprego deve ser
prioridade. Um sistema de herança para todos não faz sentido sem que, antes,
aqueles dois sistemas se tornem vigentes. Para ele, a herança para todos deve
ser um elemento adicional, inserido num sistema de Estado social finalisticamente
organizado para a desmercantilização da economia. Piketty é taxativo neste
ponto: os bens e serviços fundamentais em setores como educação, saúde,
cultura, transporte e energia podem e devem ser oferecidos no âmbito de
estruturas públicas, municipais ou de instituições sem fins lucrativos.
Urge, portanto, retirá-los da esfera mercantil.
A
herança para todos poderia ser investida em um número limitado de atividades
que perfariam o setor lucrativo, tais como a moradia e as pequenas empresas,
sobretudo aquelas voltadas para o artesanato, o comércio, a hotelaria,
consertos, consultoria, etc. Portanto, se quisermos evitar que o sistema de
herança para todos gere, a médio e longo prazo, novas castas de proprietários
com excessiva concentração de poder, necessário se fará que as rendas da
herança sejam propriedades sociais e temporárias, e não propriedades
estritamente privadas. Em outras palavras, para Piketty, as propriedades
pequenas e médias geradas pela herança para todos devem inserir-se numa
estrutura legislativa baseada na divisão do poder com os diferentes usuários do
capital e numa estrutura fiscal que limite drasticamente as possibilidade de
acumulação e perpetuação da riqueza.
Volvo
olhares sobre a importância do aumento do poder de negociação dos
trabalhadores, doravante. Acompanhando a
proposta de Piketty, tentarei mostrar que dar aos trabalhadores mais poder de
negociação no interior da empresa em que trabalham não é só mais uma condição
para retomar a marcha rumo à igualdade, mas também a condição para o exercício
da verdadeira liberdade individual. Além de Piketty, economistas renomados como
Joseph Stiglitz, Karl Polanyi e Anthony Atkinson, ensinam que o livre mercado
sozinho não é capaz de distribuir equitativamente a riqueza. O crescimento
econômico em si não propaga a riqueza. Segue-se daí que é mais razoável
conceber um sistema de redistribuição de herança que permita à população beneficiar-se de uma herança
mínima. Segundo Piketty, essa herança mínima poderia corresponder a 60% do
patrimônio médio por adulto, ou seja, 120 mil euros, tendo em conta o fato de
que o patrimônio na França, em 2021, era da ordem de 200 mil euros. Destarte,
essa herança mínima estaria acessível a todos os indivíduos quando completassem
25 anos. Resta saber como isso poderia ser financiado. A esse respeito,
esclarece-nos Piketty que o financiamento desse capital poderia ser feito por
meio de uma combinação de imposto progressivo sobre as riquezas e sobre
as heranças, que corresponderia a 5% da renda nacional, com um sistema
unificado de imposto progressivo sobre a renda, inclusas aqui as cotizações
sociais e um imposto sobre as emissões de carbono. Essas duas formas de imposto
financiariam o Estado social e corresponderiam a 45% da renda nacional. Importa
ser sublinhado o seguinte:
O primeiro
objetivo da herança para todos é aumentar o poder de negociação daqueles que
não possuem quase nada (ou seja, cerca da metade da população). (ibid., p.
174, grifo meu).
Dirijo-me,
agora, a cada um de meus potenciais leitores – trabalhadores, em sua maioria -,
e lhes pergunto: quem dentre vocês não gostaria de poder recusar um emprego que
oferecesse uma baixa remuneração e condições precárias para a realização de
suas tarefas? Ora, é justamente por não possuir nada, ou por possuir só
dívidas, que uma pessoa se vê obrigada a aceitar qualquer salário e quaisquer
condições de trabalho. Consoante pondera Piketty, “a renda básica e a garantia
de emprego com salário mínimo constituem ferramentas preciosas para modificar
essa situação e reequilibrar as relações de força” (ibid). É claro que isso não
basta, e o autor o reconhece. O aumento do poder da classe trabalhadora tem
como pré-condição também a garanta dos direitos associados ao Estado social
mais amplo possível, tais como educação e saúde gratuitas, aposentadorias e
seguro-desemprego redistributivos, direito sindical, etc. Ora, o que está em
jogo nessas conquistas das classes trabalhadoras é, especialmente, o exercício
de uma liberdade concreta, bem diferente da liberdade limitada e enganosa
preconizada pelos liberais e neoliberais. Um indivíduo é tanto mais livre e
emancipado social e economicamente quanto mais poder tiver de recusar certas
ofertas de trabalho, de adquirir moradia, de lançar-se num projeto pessoal, de montar
uma pequena empresa. Como enfatiza Piketty, “essa liberdade tem tudo para
assustar os empregadores e os proprietários, cujos funcionários perderiam a
docilidade, e alegrar os demais” (ibid.,p. 175-177).
5.2.
Um socialismo participativo
A
adoção de um sistema de socialismo participativo é a condição para
alcançar uma equidade na divisão do poder no interior das empresas privadas. O
socialismo participativo prevê o compartilhamento 50-50 dos direitos de voto
entre os assalariados e os acionistas e “uma rígida limitação dos direitos de voto
dos acionistas individuais em função do porte da empresa” (ibid., p. 179). Destarte,
um único assalariado poderia concentrar a maior parte dos votos numa empresa de
tamanho reduzido, mas perderia esse direito, se a empresa contratasse mais de
dez assalariados. Os direitos de voto de um assalariado poderiam depender de
seu tempo de serviço: ele acumularia tanto mais direitos quanto maior fosse seu
tempo de serviço.
Nota
Piketty que debates sobe a instituição de fundos salariais, de que
participaram integrantes da Federação Sindical Sueca nos anos de 1970-1980, vêm
sendo reanimados recentemente. O sistema de fundos salariais prevê que as
empresas de grande porte depositem todo ano uma parte de seus lucros num fundo
salarial que permita aos trabalhadores controlar gradualmente 52% do capital ao
final de vinte anos. Como era de esperar, essa proposta suscitou forte rejeição
por parte dos capitalistas suecos e acabou por não ser implementada. Não
obstante, segundo o autor, a adoção de fundos salariais voltou a ocupar,
recentemente, o debate público, tornando-se uma pauta na agenda dos democratas
norte-americanos, entre os quais está Bernie Sanders, e no programa oficial do
Partido Trabalhista britânico. Outras propostas inovadoras que visam a
possibilitar o desenvolvimento de fundos de investimento público em nível local
e comunal também vêm sendo elaboradas recentemente. Para Piketty, “o objetivo
aqui não é encerrar a discussão, mas muito mais mostrar toda a sua abrangência:
as formas concretas de poder e da democracia econômica devem ainda e sempre
deverão ser reinventadas”. (ibid., p. 180).
Procurando
levar a bom termo este artigo, cumpre ainda examinar de que modo se poderia
desenvolver um socialismo democrático. Em primeiro lugar, a condição
para a sua efetivação é o aprofundamento da democracia. Em segundo
lugar, o socialismo democrático (que no Brasil é um regime abominável, para
grande parte da população, incluindo-se aí a elite de rapina e muitos atores
políticos conservadores e reacionários, iletrados em matéria de história
mundial e sociologia), sendo descentralizado e democrático, opõe-se
radicalmente ao socialismo estatal, centralizado e autoritário experienciado no
século XX no bloco soviético. O socialismo democrático é o resultado do
desenvolvimento pleno do Estado social e do imposto progressivo. Essa forma
democrática do socialismo esteia-se na circulação permanente do poder e da
propriedade. Atente-se para a lição de Piketty nesse tocante:
Esse novo
socialismo democrático se situa, em larga medida, no prolongamento das
transformações socais, tributárias e jurídicas empreendidas em inúmeros países
ao longo do século transcorrido, sob a condição de lembrar que essas
transformações foram feitas ao custo de relações de força, de mobilizações
populares e de múltiplas crises e momentos de tensão. (ibid.)
Piketty
admite que o socialismo democrático de cuja descrição ele se encarrega é um
esboço e abriga “múltiplas fraquezas e limitações”. (ibid.) Uma dessas
limitações e fraquezas é que a admissão da subsistência de uma forma limitada
de propriedade privada dos meios de produção no âmbito das pequenas empresas e
da moradia significa que, na prática, haveria risco de as mudanças alcançadas
pelo modelo redistributivo do Estado social serem efêmeras. Pode também
constituir uma fraqueza do socialismo democrático a estrita limitação das
disparidades de riqueza, já que sua sustentabilidade seria constantemente
ameaçada pela insistência de grupos e atores políticos em alterar as alíquotas
das tabelas. Piketty, malgrado não subestimar todas as limitações ou fraquezas
do modelo, entende que elas não devem ser tomadas como motivos
desencorajadores. Foram receios dessa ordem que levaram as autoridades
soviéticas “a criminalizar toda forma de propriedade nos anos de 1920,
inclusive para as empresas muito pequenas que empregavam um número diminuto de
assalariados”. (ibid., p. 181). Insistindo na “gangrena do capitalismo”, os
soviéticos afundaram o regime na deriva autoritária e burocrática que
conhecemos.
Para
que a nova experiência socialista não sucumba ao mesmo erro, é preciso que se
aprofunde a experiência democrática, não somente por meio de sistemas de
redistribuição de propriedade, mas também pela criação de um sistema de
financiamento igualitário das campanhas políticas, da mídia e dos think
tanks, “a fim de evitar que a democracia eleitoral seja confiscada pelos
mais abastados”. (ibid.).
Segundo
Piketty, não há dúvida de que revisões constitucionais profundas sejam
necessárias para que o regime de redistribuição da propriedade e de divisão de
poder se tornem uma realidade. Para evitar ou, ao menos, inibir possíveis
tentativas de desmonte desse regime de promoção de igualdade, Piketty advoga a
alocação do produto do imposto progressivo sobre a propriedade e as heranças em
um fundo destinado à herança para todos, semelhante à alocação de cotas para os
fundos de previdência social.
A experiência
histórica nos mostra que isso complica a tarefa dos que gostariam de mudar suas
escolhas (por exemplo, prometendo diminuição de impostos ou cotizações), pois
os obrigaria a explicitar as privações de direitos a que aspiram. (ibid.).
Como
se pode depreender do exposto até aqui, Piketty não propõe um socialismo
democrático radical, que se insurja contra todo tipo de propriedade privada. No
entanto, acredita serem discutíveis propostas como a do sistema de socialismo
salarial defendida por Bernard Friot. Segundo esse economista francês,
dever-se-ia estender a toda organização socioeconômica o modelo de fundos de
previdência que valeram sobretudo para a aposentadoria e o seguro-saúde desde
1945. Disso derivaria a criação de um fundo de salário e de um fundo
de investimento, o primeiro dos quais encarregado de classificar as pessoas
de acordo com suas qualificações em diferentes níveis de salário vitalício
(numa escala de 1 a 4); e o segundo destinado a conferir créditos de
investimento e direitos de uso do capital imobiliário e profissional às
diferentes unidades de produção e aos múltiplos projetos individuais e
coletivos envolvidos.
Uma
vez que esses fundos sejam administrados segundo um regime participativo e
democrático e sob formas bem definidas, eles carreiam muitas potencialidades.
Piketty admite que o desenvolvimento de novas formas de organização
socioeconômica baseada na propriedade comum e na propriedade de uso do capital
deve ser estimulado como complemento do sistema de propriedade social e
temporário por ele proposto. Todavia, mantém o autor certa reserva no que toca
à proposta redistributiva baseada em fundos salariais, como a de Friot. Vejamos
em que termos se expressa a ressalva do autor:
[esses fundos de
salários ou de investimento] concentram em seu âmbito um poder considerável
sobre milhões de existências e decisões cotidianas (no que diz respeito aos
níveis salariais e ao uso do capital e, em particular, à moradia e às pequenas
empresas), e a questão da organização interna e de um funcionamento realmente
democrático e emancipador dessas instâncias quase estatais e extremamente
centralizadas nada tem de evidente. (ibid., p. 182).
Em
outros termos, a proposta de Friot não lograria, na opinião de Piketty, a
realização de um socialismo democrático, descentralizado e autogestionado, cujo
princípio basilar é justamente evitar uma grande concentração de poder numa
entidade ou setor estatal. Atendo-se ao estado atual dos conhecimentos e das
experiências disponíveis, Piketty prefere trilhar o caminho mais moderado
política e economicamente, admitindo certa durabilidade para a pequena
propriedade privada, social e temporária, mas sem descurar de encorajar o
aprimoramento de estruturas coletivas e cooperativas, sempre que isso estiver
alinhado com as necessidades dos agentes envolvidos.
Não
podemos deixar que a fé excessiva na capacidade de as grandes organizações
centralizadas articularem, em seu âmbito, a deliberação e a decisão democrática
leve-nos a subestimar o poder emancipador de dispositivos institucionais como a
pequena propriedade privada, desde que – adverte Piketty -corretamente regulada
e limitada em sua magnitude e nos direitos que confere.
Finalmente,
cumpre acrescentar que o imposto progressivo também não pode estar submetido a
decisões em escala centralizada, porquanto isso redundaria em destituir seu
regime e progressividade de qualquer valor social. Em suma, damos a saber qual
é a forma desse socialismo democrático, diversificado e autogestinado que,
instituído e aperfeiçoado no transcurso histórico, acarretaria a destruição do
capitalismo:
Em contrapartida,
se admitimos o princípio de uma organização socioeconômica duravelmente
descentralizada, que colocaria em jogo uma grande diversidade de agentes, de
coletividades e estruturas mistas, as formas concretas do imposto são
importantes: elas contribuem para determinar a repartição do valor ao lado de
outros dispositivos institucionais, como, por exemplo, os sistemas de direitos
de voto dentro das diferentes estruturas. (ibid. p. 183).
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