Reversos da alma
Ontem, conversei com uma secretária kardecista. Bem humorada, ela me contava de amigas que diziam não querer voltar mais a este mundo material. Elas acreditam estar já cumprindo as provas que elas mesmas se impuseram. Como bem observou a moça, os espíritos mais adiantados escolhem as provas por que devem passar com vistas ao alcance de maior adiantamento. O objetivo último é a perfeição, ou seja, o alcance do estágio dos espíritos puros, aqueles que são totalmente desapegados da matéria.
Acordei hoje, e me apressei a procurar um trecho que confirmasse aquela crença, ou seja, a crença segundo a qual os espíritos mais evoluídos podem escolher suas provas. Peguei, então, o livro O Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec. Trata-se de uma leitura do Evangelho de um ponto de vista espírita. No capítulo Bem-aventurados os aflitos, lê-se, à página 117:
“Não se deve crer, no entanto, que todo sofrimento suportado neste mundo seja necessariamente indício de uma determinada falta. Muitas vezes são simples provas escolhidas pelo Espírito para concluir a sua depuração e acelerar o seu adiantamento. Assim, a expiação serve sempre de prova, mas nem sempre a prova é uma expiação. Contudo, provas e expiações são sempre sinais de relativa inferioridade, porque o que é perfeito não precisa ser provado. Um Espírito pode, pois, ter adquirido certo grau de elevação, mas, desejando adiantar-se mais, solicita uma missão, uma tarefa a executar, pela qual será tanto mais recompensado, se sair vitorioso, quanto mais penosa haja sido a luta. Tais são, especialmente, essas pessoas de instintos naturalmente bons, de alma elevada, de nobres sentimentos inatos, que parecem nada haver trazido de mau das existências anteriores e que sofrem, com resignação cristã, as maiores dores, somente pedindo a Deus para suportá-las sem murmurar.
(...)
Sem dúvida, o sofrimento que não provoca queixumes pode ser uma expiação, mas é lícito de que foi escolhida voluntariamente, e não imposta, e constitui prova de forte resolução, o que é sinal de progresso”.
Nunca escondi minha inclinação à doutrina espírita. Há apenas duas doutrinas metafísicas que me agradam: o espiritismo kardecista e o budismo. Ambas tentam explicar os dois extremos da existência: o nascimento e a morte. Ambas ensinam o dogma da reencarnação, que, para mim, é a expressão maior da Justiça do Cosmos. Ou do que prefiro chamar hoje de Mistério. Nesse sentido, aproximo-me do agnóstico.
É simples medir o proveito da crença na reencarnação. Basta tomar um exemplo comum de fatalidade na vida. Por exemplo, uma criança que nasce com alguma deficiência física ou mental. Aliás, a quantidade de crianças nascidas em tal condição é incalculável. Agora, tente explicar por que isso lhe aconteceu. Há, pelo menos, três respostas possíveis. Cientificamente, a causa de tal deficiência é genética. O nascimento é, assim, um acontecimento sujeito às vicissitudes da gestação. Há crianças que saem ilesas desse processo; outras não. Aqui repercute bem aquele verso de uma canção de Tim Maia: “na vida a gente tem que entender que um nasce pra sofrer enquanto o outro ri”. Outra resposta que se pode buscar é no padre ou pastor de sua Igreja. Provavelmente, ele lhe dirá: “é a vontade de Deus!”. E você sairá com aquela pergunta latejante: “por que haveria Deus de querer nosso sofrimento?” Mistério. Isso não satisfaz os espíritos mais filosóficos. A terceira fonte de explicação é a do espiritismo. Essa doutrina ensinará que o sofrimento tem uma causa em vidas passadas. Mas aqui também há um problema. Não se pode impingir uma pena a alguém que sequer sabe por que está sendo punido. Ensina a doutrina que Deus teria poupado o Espírito de se lembrar de suas faltas, para que, do contrário, não viesse a recuar diante das dificuldades. A lembrança poderia acarretar-lhe tormentos, aflições, sentimento de culpa. Nesse sentido, a lição, inspirada no cristianismo, é resignar-se em face do sofrimento. Psicologicamente, não vejo vantagem nisso. Todavia, há também que considerar a possibilidade de o Espírito escolher as dificuldades que terá de enfrentar. Nesse sentido, acho mais justo. A escolha depende da vontade de o Espírito alcançar maior adiantamento no plano espiritual, de sorte que possa encurtar seu caminho evolutivo até o estágio da perfeição.
Seja como for, na doutrina espírita, a (re)encarnação é uma necessidade e submeter-se a provações também. A Terra é lugar de expiação e de provas. A verdadeira vida é a espiritual. Este mundo material é apenas um simulacro. É inspirado nesse sistema de crenças que a minha declaração, anunciada amiúde, neste espaço, o sofrimento tece as malhas da existência, ganha um valor inquestionável.
O leitor poderá escolher dentre as alternativas de explicação, aqui apresentadas, ou poderá simplesmente desistir de buscar explicação. De qualquer modo, terá de aceitar o Mistério. Talvez, só desvelado depois da morte. Sucede que o Espiritismo, longe de dar conta de nossas dúvidas mais viscerais sobre a existência, é indiscutivelmente um sistema doutrinário mais comprometido com as vicissitudes da vida.
Se pararmos para meditar um pouco, antes de dormir, na significação da nossa vida, na vida de cada um de nós, seremos levados a crer que a morte não pode significar simplesmente a aniquilação de toda a dimensão de significação de nossa vida. Todavia, a possibilidade de haver uma existência extracorporal não deve ser razão para a desvalorização dessa vida corpóreo-orgânica.
Há um capítulo interessante no Livro dos Espíritos, que trata da afinidade entre os Espíritos. A crença mística e ingênua na alma gêmea é explicada e reinterpretada em termos espíritas. Os Espíritos ensinam haver relações simpáticas e antipáticas entre os Espíritos. Ensina-se que os Espíritos têm afinidade entre si e que o laço que os une é mais forte na ausência do corpo.
Todavia, falar em “metade eterna” é um erro, já que, segundo a doutrina, todo Espírito é completo. A individualidade do Espírito é preservada. A simpatia existe na medida em que um e outro Espírito se atraem por terem inclinações em comum. Se não há almas gêmeas, pode-se falar de almas afins.
As reflexões encaminhadas até aqui abrem caminhos para a consideração de um tema que me é caro: o dos relacionamentos afetivos. Lembro aqui um trecho do texto Crônica do Amor, de Arnaldo Jabor. Nele, o cronista fala daquilo que o amor tem de indefinível:
“Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.
Não funciona assim.
Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o Amor tem de indefinível.”
Noutro trecho, Jabor questiona sobre nosso insucesso amoroso, malgrado termos qualidades apreciáveis:
“É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura
por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível.
Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo desse, criatura, por que está sem um amor?”
A despeito de as experiências amorosas ignorarem qualquer “equação matemática”, qualquer lógica de sentimentos e de compatibilidade de inclinações, é fato que todos nós, homens e mulheres, buscamos, para efeito de relações afetivo-sexuais ou amorosas, certas qualidades que nos são atraentes. Uns valorizam mais a honestidade, a fidelidade, a cumplicidade, etc; outros buscam a afeição, a espiritualidade, o companheirismo, etc.; mas todos desejam uma só coisa: a reciprocidade de sentimentos. Ou seja, todos nós desejamos a reciprocidade do amor.
As comunidades do orkut, muito embora algumas delas nos pareçam desinteressantes, podem servir de um bom corpus a um pesquisador interessado em investigar o que homens e mulheres têm a dizer sobre suas experiências amorosas. Em outras palavras, eles fornecem testemunho do estado dos relacionamentos na modernidade líquida. Gostaria de referir alguns exemplos. Tomo, para efeito de ilustração, duas comunidades – a primeira denominada de Quero namorar, noivar e casar. No fórum, um rapaz afirma “quero namorada no RJ”. A única mulher que respondeu, escreve o seguinte:
“Bom......eu sou do RJ.....rsrsrs
Eu tbm quero um compromisso serio,porem quando a gente vai conhecendo vemos que ñ é nada daquilo que vcs falam.”
Aqui, a fica clara a desconfiança feminina em face do comportamento de certos homens. Insegurança e desconfiança, aliás, são sentimentos bastante recorrentes nos depoimentos femininos. Vejamos alguns mais. Em outro tópico, um rapaz pergunta Quem ta solteira ae?. Vejam-se as respostas de mulheres:
Eu to!!! Muito decepcionada com vcs homens tb!!! Vcs naum querem nada com nada!!
uhull solteira graças a deus!!!!!!
Há também homens insatisfeitos, que se dizem frustrados, decepcionados e magoados em seus relacionamentos anteriores. A quantidade de pessoas solteiras à procura de reciprocidade amorosa é impressionante! O que me leva a defender que nossa época é a época de homens e mulheres afetivamente carentes. Parece haver uma demanda coletiva por maior profundidade emocional, afetiva, sexual. Em outras palavras, as pessoas desejam ser amadas, embora se demonstrem inseguras e insatisfeitas. A insatisfação é consequência das próprias condições sócio-culturais em que se dão as experiências amorosas, condições marcadas por fragilidade, liquidez de vínculos.
Em outra comunidade, intitulada de Eu quero namorar sério, uma mulher pergunta, em um tópico Vc quer mesmo um compromisso sério? Vamos às respostas:
“INFELIZMENTE HJ EM DIA É ASSIM MESMO: SEXO, CURTIÇÃO....E SÓ, É PELO MENOS O Q A MAIORIA PREFERE,POR ISSO ESTOU SÓ ATÉ AGORA...
JÁ PASSEI POR POUCAS E BOAS, MAS TUDO PASSA,E UM DIA IREI ENCONTRAR ALGUÉM ESPECIAL DE VERDADE, EU SEI DISSO!!!!!!!! border=0 v:shapes="_x0000_i1025"> “
“Sim comigo já não é a primeira vez em que acontece isso, na verdade eu quero sim algo serio, vc vai em uma balada não encontra ninguem que queira algo serio, muito dificil quase todos só querem pegação, então já desisti de balada, vai em algo mais tranquilo mas ligth só encontra casais então não da, procurei em alguns lugares, estou procurando aqui mas parece que realmente aqui tbem só querem brincandeira.
Tem gente aqui na comu que diz que quer e tal, mas vc entra em contato chama para converssar e a pessoa nem responde, gente vamos parar com isso, se não quiser nada sai fora não faz quem queira perder o tempo precioso.”
A primeira resposta foi escrita por uma mulher; a segunda, por um homem. Ambos demonstram insatisfação com as experiências amorosas. Mas vale dizer que o rapaz está procurando um amor no lugar errado. Experiências amorosas dificilmente começam em “baladas”. O amor é uma graça e como toda graça acontece por uma conjugação de circunstâncias. Discorrerei sobre isso mais adiante.
Vejamos outros depoimentos:
"Seria mais facil, se o caráter viesse estampado na testa".
“Eu quero um namoro sério!!!Mais muitas garotas hoje não estão afim,bom,pelo menos as que eu queria ter um relacionamento.Mais o barato é loko,e eu não vou desistir!!!”
“É gente ...muito complicado...Eu mesma ja passei cada uma ki é de chorar...Hoje em dia vivo muito isolada do mundo, e nem amigos eu tenho mais...dai como não saio sozinha pq é chato, minha única oportunidade de encontrar uma pessoa legal é aki na net... Pq eu não kero farra, kero algo sério...amar alguém ki também keira viver isso...Mas estou na espera...Um dia eu chego lá... bjusss esorte a todosssss”
O primeiro e o último textos foram escritos por mulheres. O último texto revela um mal que nos atinge visceralmente: a solidão. Eu me identifico com esse testemunho. O segundo texto foi escrito por um rapaz, que também se demonstra insatisfeito com o comportamento de suas pretendentes.
Vejamos esta última postagem:
“realmente é dificil condeguir um bom relacionmento serio sei que muitos caras e mulheres tambem não querem nada com compromisso mas não são todos que pensam assim quero u namoro serio mas é dificil achar será que consigo aqui ?”
Quem escreve esse texto é um homem. Num outro tópico, pergunta-se: O romantismo está morto?. A pergunta é feita por um homem. Vejamos algumas respostas:
“naum esta as pessoas que nem sempre se lembram de quanto é bonito e gostoso ser romântico”
(homem)
“Alias, ser romantico hoje em dia é sinonimo de cafonisse.Vc abrir a porta de um carro pra mulher, mandar flores e etc é extremamente cafona segundo as mulheres q conheço e uma q namorei.
Mesmo assim, eu não consigo ser diferente, quero sempre tornar agradavel o momento e pelo menos na minha opinião, tratar uma mulher com carinho, com gentileza nunca é demais....mesmo algumas preferindo q a gente entre no restaurante, no cinema, coçando o saco e pedindo pra elas pagarem tudo...”
(homem)
“Nossa... E eu que pensei que não existissem mais homens românticos! rsrs v:shapes="_x0000_i1026">
Acho que o romantismo não está totalmente morto, vcs são prova disso... Mas são poucos que realmente o valorizam, poucas pessoas realmente querem algo sério, sejam homens ou mulheres... Para a maioria, namoro é sinônimo de curtição, isso se não preferem o "ficar"... No próprio fórum da comunidade, tópicos como "vc namoraria a pessoa acima" ou "quem procura namorado(a) deixe seu msn aqui" são a maioria!
Mas como vcs, ainda há aqueles que têm saudades dos "tempos antigos"... Que acham lindo, e não "cafona", uma atitude de carinho, um presente inesperado, uma carícia sem segundas intenções, um "eu te amo" de verdade...
Então meninos, não percam a esperança... Garanto a vcs que, se ainda se encontram homens românticos, mulheres românticas também existem, um dia as encontrarão! v:shapes="_x0000_i1027">There is still hope..!”
(mulher)
Em outras comunidades do mesmo gênero, há casos muito interessantes, alguns pela comicidade; outros pela carência que expressam. Um rapaz revela que, num site destinado a relacionamentos, em que a pessoa faz seu cadastro e busca outras pessoas compatíveis, não conseguiu que o site encontrasse tais pessoas. Um outro deseja não passar o Dia dos Namorados sozinho.
Vale notar, de passagem, já que me referi a isso em outros textos, que a concepção de ser romântico, no segundo texto-exemplo, está muito ligada a modos de cortesia e de educação. Mas isso é um reducionismo do conceito “romântico”.
É interessante notar que “ser romântico” é uma qualidade desejada por muitas mulheres, no que diz respeito a relacionamentos com homens. Mas, dada a falta de referenciais, há pessoas que desejam relacionar-se na base de inclinações religiosas, como no caso de um rapaz que procura por mulheres protestantes. Também a religião influencia a escolha de parceiros, muito embora afinidade religiosa não seja garantia de felicidade num relacionamento.
O fato é que homens e mulheres da modernidade líquida parecem patinar com seus corações em terrenos movediços e escorregadios. Faltam a ambos segurança e confiança. A maioria manifesta não só muito desejo de ser felizes nos seus relacionamentos afetivos, mas também muita carência de profundidade nesses relacionamentos.
O que me parece certo é que o outro com quem nos relacionamos é produto do meio educacional em que foi criado. Dizem que, quando nos casamos, também casamos com a família de nosso cônjuge. Talvez, haja aqui um bom referencial para avaliar a probabilidade de um relacionamento amoroso ser venturoso: a origem sócio-educacional do(a) parceiro(a).
Acho que para amar devemos ter um modelo de amor em casa. Nós amadurecemos amorosamente à medida que nos relacionamos e nos machucamos, mas a pré-disposição ao amor é um comportamento que se inicia em casa. Filhos conseguirão amar na medida em que foram educados para experienciar o amor. Isso significa, entre outras coisas, não pretender poupá-los do sofrimento, das dores típicas legadas por uma experiência amorosa.
Não concordo com uma educação que silencia em face do modo como os jovens conduzem sua vida sexual-afetiva, ou seja, diante do fato de eles buscarem apenas relações efêmeras e descartáveis, por temerem o envolvimento, o compromisso. Educar para viver a profundidade das relações, para o autoconhecimento e o conhecimento recíproco; educar para viver a autenticidade, para valorizar a dimensão da pessoa que o outro representa; educar, em suma, para envolver-se de coração, sem se contentar apenas com a superfície epidérmica.
Sentimentos não são descartáveis.