A
hierarquia gramatical
A
gramática de uma língua deve ser entendida como um sistema de regras e unidades. As regras de que a gramática se
compõe são responsáveis pelos arranjos linguísticos, isto é, são elas que nos
permitem combinar as unidades da língua em construções dotadas de significado.
As construções linguísticas são de extensão e níveis variados. Toda construção é
dotada de uma forma ou estrutura.
Esse
sistema – a gramática – apresenta uma arquitetura interna, a qual se organiza
em estratos. Chama-se estrato gramatical cada nível de
organização da gramática. As unidades da gramática são, assim, dispostas em
níveis ou estratos. Para cada nível, há uma unidade linguística. Podemos,
então, representar a hierarquização gramatical das unidades linguísticas do
seguinte modo:
4o nível – oração
3o nível - sintagma
2o nível – vocábulo
1o nível – morfema
(leia-se de baixo pra cima)
Consideremos,
pois, a seguinte frase:
(1) A moça
que eu conheci ontem é amiga de meu pai.
Trata-se
de uma frase bem formada, em português, como podemos ver. Podemos operar uma
análise dela de tal sorte, que explicitemos as mínimas unidades dotadas de
significado que estruturam os vocábulos nela presentes. Desse modo, teremos o
seguinte resultado:
(1a) a /
moç- / a / que/ eu / conhec- / -i/ ontem / é/ amig- / a/ de/ meu/ pai.
A forma moç- é a base ou o radical da palavra
“moça”. O “-a” é a desinência de gênero feminino. Trata-se de unidades mínimas
que encerram significado, ou seja, trata-se de morfemas. “Moç-“ inclui o significado-base (lexical), ao passo que
‘-a’ encerra o significado gramatical ‘gênero feminino’. É evidente que a parte
“moç-“ não constitui uma unidade linguística autônoma. O seu significado
resulta do todo, ou seja, da combinação dela com seus morfemas. Por isso, o que
importa é entender que o radical é a unidade indivisível que sobra quando
segmentamos as palavras em seus morfemas. Em “reagrupar”, temos os morfemas
“re- (prefixo), “a-” (prefixo), “-a” (desinência verbal de 1ª conjugação) e
“-r” (desinência de infinitivo). O que sobra é a forma “grup-” que é o radical,
a base a que os demais elementos se agregam. A partir dessa unidade “grup-”,
podemos ter “grupo”, “grupal”, “agrupar”, “agrupação”. Cada uma das formas compartilha a unidade “grup-”, seu
radical.
Quando
voltamos nosso olhar para a frase (1), verificamos que certos morfemas se
identificaram com os vocábulos. Isso é completamente normal. Muitas vezes, há
coincidência entre os níveis, como o do
morfema e o da palavra. Mas devemos ressaltar que estamos diante de uma
diferença entre níveis. Assim, “ontem” é um vocábulo, pertencente à classe dos
advérbios, num nível; mas um “morfema” (radical), em outro nível. A palavra
“ontem” é indecomponível. Mas a palavra “anteontem”, admite a segmentação em
“ante-” – prefixo – e “ontem”, radical. Assim, “anteontem” é uma palavra (ou
vocábulo). Já “ante-” é um morfema; e “ontem” é um morfema, num nível; e uma
palavra, noutro nível.
Vejamos,
agora, como a frase (1) pode ser analisada em seus vocábulos:
(1b) A /
moça / que / eu / conheci/ ontem/ é/ amiga / de/ meu/ pai.
O estudo
da palavra ou o vocábulo (há autores que fazem uma distinção; outros, não) é um
dos capítulos mais difíceis nos estudos linguísticos. Não é fácil determinar se
uma unidade linguística é ou não uma palavra. A primeira dificuldade consiste
em saber se “de” e “da” são duas palavras diferentes, ou se “da” é apenas uma
variação morfológica da palavra “de”. Há autores que entenderão a palavra como
uma unidade virtual, que se acha dicionarizada, e que se apresenta sem as
marcas de variação morfológica. Assim “pato” é uma palavra. Ela figura no
dicionário na forma singular e no masculino. Já as ocorrências “patos”, “pata”,
“patas”, “patinhos”, etc. são vocábulos (formas atualizáveis no uso) da palavra
“pato”. A segunda dificuldade é se
devemos considerar ocorrências como “merenda escolar” e “fim de semana” como
uma única palavra ou como um conjunto formado de palavras. Uma das
características da palavra é ser uma unidade autônoma de sentido. Assim, a
palavra “guarda-chuva” forma uma totalidade autônoma de sentido. Embora seus
componentes guardem um significado apreensível e possam funcionar em outros
ambientes sintáticos, o significado de cada parte difere do significado do
todo. Claro é que, no caso dos compostos, há graus de transparência do significado. O composto "navio-escola" tem um significado bastante transparente, no sentido de que pode ser deduzido do significado de suas partes. Se pensarmos, no entanto, na palavra “criado-mudo”, cujo significado não pode ser
deduzido do significado de cada uma das partes, saber o que significa "criado" e "mudo" não nos ajuda a saber o que significa "criado-mudo". Nesse caso, o significado do conjunto é opaco ou não-trasnparente. Não se trata, é claro, de um
criado que é mudo, mas de um tipo de móvel que alguns de nós temos em casa.
Todavia,
deixemos a problemática da definição e identificação das palavras. Vou me
limitar a dizer que as palavras, na língua escrita, são identificadas, com
certa facilidade, pelo reconhecimento dos espaços em branco que existem entre as
sequências linguísticas grafadas. Isso não resolve o caso de “fim de semana” (deveríamos
considerar haver aí três palavras? Ou uma só?). Mas, por ora, basta-nos saber
que em (1a) temos onze palavras. A segmentação que propus parece corresponder à
nossa intuição linguística enquanto falantes de português.
O próximo
nível a ser explicitado é o dos sintagmas. O que são sintagmas? Você já deve
ter percebido que as palavras se organizam em grupos, de tal modo que há entre
elas uma coesão, cujo grau pode
variar do mais aderente ao mais frouxo. O sintagma
é o verdadeiro constituinte da oração. Sintagmas são as unidades imediatas em que se
estrutura a oração. As palavras se organizam em grupos, marcados por coesão, e
que constituem os sintagmas. Assim é
que a vocábulo “o” se prende ao substantivo “menino” para constituir o sintagma
“o menino”, em “o menino caiu”. O sintagma “o menino” se articula ao sintagma
“caiu”. É possível que o sintagma se constitua de apenas um elemento, que é seu
núcleo.
A
identificação dos sintagmas depende de que apliquemos, pelo menos, um dois
testes: o de deslocamento e o de comutação.
O teste de
deslocamento consiste em movimentar as unidades linguísticas no interior da
oração, segundo as possibilidades previstas pelo sistema. Se o que mudamos for
toda a unidade, então toda a unidade será considerada um sintagma. Vejamos.
(2) O menino caiu da escada.
P1
(2a) Caiu o menino da escada.
P2
(2b) Caiu da escada o menino.
P3
P3
Claro está
que é o conjunto “o menino” que pode ser deslocado de posição, e não apenas “o”
ou “menino”. Se tentássemos deslocar uma e outra palavra, o resultado seria
agramatical:
(2c) *
menino o caiu da escada.
(2d) * o
caiu menino da escada.
O segundo
teste é o da comutação. Assim, podemos comutar “o menino” com “ele”, de tal
modo que o pronome passará a ocupar o mesmo ambiente sintático em que antes se
encontrava o referido sintagma.
(2e) O menino caiu da escada.
Ele caiu da escada.
A forma
“ele” substitui todo o conjunto “o menino”, passando a funcionar como sintagma.
Voltando à
nossa frase inicial, a sua segmentação em sintagmas nos dará o seguinte
resultado:
(1c) A
moça/ que eu conheci ontem/ é amiga de meu pai.
É preciso
fazer algumas observações aqui. Em primeiro lugar, podemos ter sintagmas
encaixados em outros sintagmas. Assim é que a unidade “é amiga de meu pai”
inclui os sintagmas “amiga de meu pai”, que, por sua vez, inclui o sintagma “de
meu pai”, que, por sua vez, inclui o sintagma “meu pai”. O esquema dessa
hierarquização sintagmática pode ser representado assim:
[é
amiga de meu pai] nível 1
é [amiga de meu pai] nível 2
é
amiga [de meu pai] nível 3
é
amiga de [meu pai] nível 4
Devo,
ainda, observar o seguinte. Se aplicássemos o teste de deslocamento à unidade
“a moça” que, a princípio, é uma unidade sintagmática, o resultado seria
agramatical. Senão, vejamos:
(1d) *que
eu conheci ontem a moça é amiga de
meu pai.
Nesse
caso, desloquei a unidade “a moça” para depois da forma “ontem”, no final da
oração iniciada por “que” (cf. que conheci ontem a moça...). O teste se demonstrou inválido, porque pressupusemos
uma independência entre “a moça” e a oração que se lhe segue. Na verdade, é
todo o conjunto “a moça que eu conheci ontem” que é o sintagma. Trata-se de um
sintagma complexo de natureza oracional. Tal sintagma é uma oração que sofreu o
processo sintático que chamamos de transposição.
Ou seja, ela foi transposta à classe de um sintagma, para assim assumir uma
função sintática na frase. Veja-se que podemos comutar toda a unidade com
“ela”:
(1e) Ela
(= a moça que eu conheci ontem) é amiga de meu pai.
O sintagma
“A moça que eu conheci ontem” funciona como sujeito (veja-se que a forma “é”
concorda com toda a unidade, que está na terceira pessoa do singular). Esse
sintagma inclui outro sintagma, que é a oração encetada por “que”. A unidade
“que eu conheci ontem” funciona à guisa de um adjetivo, pois ela restringe a
extensão de significado de “moça”. Não se trata de qualquer moça, mas de uma
moça específica: a que eu conheci ontem. Poderíamos substituir “que eu conheci
ontem” por “linda”, ou por “de vestido de bolinhas”:
(1f ) A moça linda é amiga de meu pai.
A moça de vestido de bolinhas é amiga de meu pai.
Como sejam
unidades funcionalmente equivalentes, “linda”, “de vestido de bolinhas” e “que
eu conheci ontem” podem figurar juntas na frase:
(1f ) A moça linda de vestido de bolinhas que eu conheci ontem é amiga de
meu pai.
Agora, o
sintagma corresponde a toda a unidade “a moça linda de vestido de bolinhas que
eu conheci ontem”.
Finalmente,
oração e frase podem também coincidir, de um ponto de vista formal. Mas não
coincidem funcionalmente. A frase é uma unidade de comunicação. Assim, em (1),
a frase corresponde a toda a complexa estrutura de unidades linguísticas que se
inicia com letra maiúscula e termina com um ponto, na escrita.
(1g) A
moça que eu conheci ontem é amiga de meu pai. (frase)
No
entanto, essa frase encerra duas orações. Identificamos a oração pelo número de
verbos que ocorrem. Em (1g) ocorrem dois verbos, a saber, “conheci” e “é”. A
marca para a segmentação das orações é o pronome relativo “que”. Ele introduz
uma oração que “quebra” a sequência sintática que reúne o sujeito “a moça” ao
verbo “é”. O relativo é um elemento anafórico, já que ele recupera o elemento
anterior, projetando-o na oração que introduz. Vejamos:
(1g) A
moça que [ eu conheci a moça
ontem] é amiga de meu pai.
1ª oração
– eu conheci a moça ontem.
2ª oração
– a moça é amiga de meu pai.
Veja que
“a moça” cumpre uma função sintática diferente em cada uma das orações que compõem
a frase. Na oração introduzida pelo relativo “que”, “a moça” é o complemento do
verbo “conhecer” (objeto direto); já na oração, tradicionalmente chamada de
principal (2ª oração), é o sujeito.
Do exposto,
tiramos a seguinte conclusão: as unidades
linguísticas se organizam de modos variados e complexos. Essa organização é
hierárquica. Assim, os morfemas entram na configuração das palavras, que, por
sua vez, entram a fazer parte dos sintagmas. Estes são os constituintes
imediatos nos quais se organiza a oração. E a oração pode identificar-se com a
frase, ou articular-se a outra(s) oração(ões) para formar uma frase complexa
(também chamado de período composto).
Cara, muito obrigado pela postagem. Estava passando mal aqui tentando compreender a relação entre os estratos, através da gramática do Bechara. Percebi que meu ponto de dificuldade estava na compreensão de cada estrato, e aqui está muito bem explicado!
ResponderExcluirNão sei que você ainda responderia, mas sabe me dizer porque o Bechara aponta 6 níveis ao invés de 5?
Aos cinco estratos comumente apontados na tradição, ele acrescenta o da "cláusula", com base em Coseriu. Esse estrato corresponde ao advérbio da oração, ou seja, o advérbio que modifica toda a oração e que nos estudos linguísticos modernos, chamamos de "modalizador". Numa frase como "Possivelmente, ele virá", possivelmente é pertence ao estrato da cláusula, que é um comentário, significando algo como "é possível a vinda dele", ou "há possibilidade de que ele venha". A cláusula é o estrato que inclui a oposição "comentário" e "comentado". No caso em tela, o comentário é feito por "possivelmente" e o comentado é o conteúdo "ele virá".
ResponderExcluirBruno,
ExcluirMUITO obrigado pelo auxílio. Facilitou demais para mim!
:)
De nada. :)
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