Verberrando
Preciso retomar minhas leituras matinais.
Mas tive de interrompê-las por causa de um forte sentimento que me coagia a
escrever. É a vontade costumeira, decerto; mas ela se manifestou assaz
enérgica. É certo que filósofos e poetas (escritores, para ser mais exato)
escrevem sobre suas próprias vidas. Muitos produziram suas Memórias. E eu, que não suponho equiparar-me aos grandes doutos do
saber, também me agrado de escrever sobre minha vida, sobre minha contribuição
singela e discreta a uma ínfima parcela do Humano.
Quero
ainda cursar filosofia, especializar-me nessa área a que meu espírito e coração
se inclinam apaixonados. Não traio meu amor à Linguística. A linguagem me
abraça, envolve-me por completo. De que mais é feita a filosofia senão da palavra?
A linguagem é tudo. Somos na linguagem e graças a ela.
A
leitura estimula a imaginação. E quando leio, sinto-me tão livre, que esqueço
tudo que, ao derredor, me cinge a criatividade. Não raro, sinto ser ela
castrada. Qual não é a frustração experimentada pelo professor em face de um
público apático e desinteressado, ou incapaz de perceber que, para além do
imperativo do imediato, do pragmatismo cego, há holofotes de conhecimentos a
iluminar nossa prática! É preciso apropriar-se deles, para saber quando e como
empregá-los.
Os
fragmentos abaixo foram colhidos do livro A
vida humana, do renomado filósofo francês André Comte-Sponville, que já
conhecemos pelas referências que já fiz a alguns de seus trabalhos. Escusa
explicá-los. Leia-os, leitor, para dar-se conta da afinidade intelectual que
sinto ter entre algumas de minhas produções e as dele. Sponville - assim o penso
– ousa dizer aquilo que, em algum momento, se me afigurou claro e inegável. Ás
vezes, ele reitera, não sem o lúcido olhar de um filósofo, pensamentos que, em
algum momento, externei. A questão do Mistério, a que, muitas vezes, me referi,
em meus textos, está aí estampada. Contemplem-na!
"(...) não se
sabe o que havia antes do universo, [...] não é possível sabê-lo e [...] e os
religiosos o ignoram tanto quanto os ateus. A verdade não pertence a ninguém. O
mistério tampouco."
(p. 14)
"Antes do homem
há o mundo, e o mistério do mundo. Estamos dentro; no âmago do mistério - no
âmago de tudo. Não, por certo, no centro do universo, pois nada indica que haja
um centro (se ele é infinito, a ideia de centro seria contraditória), mas,
nele, envolvidos por todos os lados pelo que ele é ou contém (bilhões de
galáxias, cada uma composta por bilhões de estrelas ou de sistemas solares),
porém incapazes de sair dele vivos, ou simplesmente sair dele".
(p. 15)
Apressei-me
para trazê-los à consciência de todos que compartilham comigo da vida virtual
no facebook, com o único intento de
partilhá-los, sem mais. É possível que poucos venham a se interessar pelo livro
ou pelas questões que ele nos suscita. Que nos vale demorar-nos a pensar em
algo tão inapreensível como a Existência e o seu sentido (que somente aos seres
humanos interessa), a Origem do Universo, o propósito ou despropósito de nossa
existência; em suma, para que pensar sobre o Mistério de cuja incomensurável
extensão todos tomamos parte. Temos mais o que fazer! Ler sobre a vida íntima
dos artistas globais, assistir a programas como Pânico na TV e Big Brother,
saber dos fuxicos entre as celebridades, ler as revistas femininas, que nos
oferece uma série de “dicas” para “conquistar o homem dos seus sonhos”, ou
ainda, não sem o respaldo dos especialistas, um conjunto de dez razões por que
os homens traem mais do que as mulheres, etc.
Lembro-me
de que uma das poucas verdades que ouvi dizer um padre, um dia, estava na
afirmação, dirigida a mim, de que a escolha pela vida intelectual, pela
convivência com os livros implica certo isolamento. Em outras palavras, quanto
mais intelectualizados nos tornamos tanto mais desinteressados (para não dizer
intransigentes) da sociabilidade indiscriminada ficamos. Note-se bem: da sociabilidade indiscriminada! Disso
não se conclui, portanto, que os que descobrem o valor dos livros, da leitura e
da dedicação ao cultivo dos hectares intelectuais, cuja opulência tratam de
explorar, não sejam dados à sociabilidade. A solidão é uma consequência, não
que a desejem (muito embora, como nos ensina Rubem Alves, em seu texto A solidão amiga, lhes pareça agradável e
útil). Os estudos requerem um silêncio imperturbável, um distanciamento de tudo
quanto possa frustrá-los. O agito, o estrépito e as vozes dissonantes que nos
envolvem na lida cotidiana devem ser silenciados, na reclusão do espírito que
não se atém senão às páginas do saber.
Receio
que eu tenha participado da formação de professores que ainda não descobriram o
benefício dos livros. Não me culpo, pois que creio ter feito o melhor que me
permitiram as condições pedagógico-mercadológicas da instituição. Em muitas
instituições da rede de ensino privado, o espírito pedagógico-filosófico
docente precisa enfrentar o imperativo econômico que rege as relações
interpessoais no interior dela e que se nos aparece sob o slogan do sucesso – de um sucesso a qualquer custo (alto ou baixo,
importa a promessa de qualidade).
Qual
não é meu espanto ao deparar-me com redações de professores de português
repletas de rasura (e nem preciso levantar observações sobre a má formação dos
textos!)! E continuaremos a discutir sobre as razões pelas quais os jovens
escrevem tão mal e lêem pouco e, quando o fazem, compreendem pouco do que lêem.
Felizmente, muitos especialistas atentaram para o fato de que muitos
professores de português não lêem ou lêem muito pouco. Como poderiam formar
leitores competentes, se eles mesmos não são leitores assíduos à tarefa e são
pouco competentes? A “crise” parece ocultar-nos um aspecto decisivo, que nos
remete a um círculo vicioso: o professor deixa as cadeiras universitárias com
uma formação empobrecida de leitura, ensina seus alunos a ler com base nessa
formação empobrecida e estes entram na faculdade sem a devida competência de
leitura, e sairão dela para continuar a estender esse empobrecimento,
engrossando a quantidade de não-leitores (ou, na melhor das hipóteses, de
leitores ineficientes). Tal é a situação nos cursos de Letras na rede privada.
Não
deve surpreender ao leitor que eu me emprenhe em suscitar a reflexão, o desejo
pelo saber e insista na importância da leitura. Na chamada era do conhecimento
ou da informação (que não se confunde com conhecimento; afinal podemos estar
mal informados; podemos estar enganados quanto à informação corresponder à
verdade), o acesso ao saber é uma etapa fundamental ao exercício pleno da
cidadania. Pense-se na imensa quantidade de pessoas que é privada do acesso ao
saber livresco, em nosso país? Pense-se na imensa quantidade de pessoas para
quem o único acesso à informação e a alguma forma de saber é a televisão? Ora,
o saber, produzido pelas artes (pintura, escultura, literaturas, etc.), pelas
ciências e filosofia é não só instrumento de poderes, mas algo que nos torna
participantes do legado intelectual de nosso gênero; ele conta-nos sobre nossa
História - a história do humano e do mundo. Produzir as condições
indispensáveis a sua universalização deveria estar entre os deveres de nossos
governantes.
Válidas,
nesse tocante, são as palavras de Jean François Lyotard, em A condição pós-moderna (2009).
Reflitamos sobre elas:
“Sabe-se que o saber tornou-se nos
últimos decênios a principal força de produção, que já modificou sensivelmente
a composição das populações ativas nos países mais desenvolvidos e constitui o
principal ponto de estrangulamento para os países em vias de desenvolvimento”.
(p. 5)
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