segunda-feira, 14 de maio de 2012

"Quero inundar-me de madrugada a alma e ver a vida com os olhos do meio-dia" (BAR)

                                                

                                                   Pessoa em mim


Dentre tantas passagens surpreendentes que se acham no trabalho de Comte-Sponville, denominado de A vida humana, a que dou a saber abaixo merece nossa atenção:

“Ninguém escolheu viver, nem ser si mesmo.”
(p. 25)

Seguirá  o filósofo contestando a posição de Sartre, para quem “cada pessoa é uma escolha absoluta de si mesma”. Para Sponville, no que estou de acordo, um recém-nascido é  exemplo suficiente para invalidar essa crença. Como poderia ter ele escolhido nascer? O nascimento nos arremessa à existência. Nascer é entrar em relação com o acaso. Nascer é sorte, escreverá Sponville.
Também a personagem Astanavis, professora do curso de suicídio, no qual se matriculou Antoine, no romance Como me tornei um estúpido, de Marin Page, põe-nos diante da nossa insensatez, sempre que supomos ser-nos possível a liberdade absoluta. Suas palavras nos convidam a pensar sobre o que é ser realmente livre. Leiamo-las com esmero:

“- Há uma censura do suicídio. Política, religiosa, social, natural até, pois a senhora Natureza não gosta de que tomemos liberdades com respeito a ela, quer manter-nos sob as rédeas até o fim, quer decidir por nós. Quem decide em relação à morte dos homens? Nós delegamos esta suprema liberdade à doença, aos acidentes, ao crime. Chamamos a isso acaso. Mas é falso. Esse acaso é a sutil vontade da sociedade que pouco a pouco nos envenena com a poluição, que nos massacra com guerras e acidentes... A sociedade decide, assim, a data de nossa morte pela qualidade de nossa alimentação, pela periculosidade de nosso ambiente cotidiano, pelas condições de trabalho e de vida. Nós não escolhemos viver, não escolhemos a nossa língua, o nosso país, a nossa época, os nossos gostos, nós não escolhemos a nossa vida. A única liberdade é a morte; ser livre é morrer.”

(p. 46)

Esses dois trechos me levariam a compor um outro texto. Mas meu objetivo aqui é outro, conforme se verá.

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Debruçar-me-ei sobre um poema atribuído a Alberto Caeiro, um dos pseudônimos do poeta Fernando Pessoa, com vistas a apresentar uma interpretação que, sem embargo da recorrência às contribuições da Crítica literária, se pretende interessante e desbravadora. Interessante, porquanto creio ter um valor sócio-cultural (ainda que permaneça inacessível ao público em geral ou aos especialistas). Desbravadora, porque pretende revelar sentimentos que me estão escusos, confusos ou dispersos. A indefinição é o que me define hoje; e eu não me atrevo a delinear os contornos de meu estado de alma agora, pois isso me consumiria muito tempo; ademais, se o fizesse, me lançaria a tal empresa sem a esperança de que, ao cabo de tão árduo trabalho espiritual, eu lograsse sucesso.
Não me agrada a teorização da literatura. Confesso resistir à leitura da crítica especializada. O olhar teórico é uma forma de visão que reifica, que engessa, “fragmenta” a realidade observada. Portanto, o olhar teórico sobre a literatura acaba por tratá-la como uma coisa que permanece, que é estável, embora se reconheça sua fugacidade, sua fluidez, sua dinamicidade. O olhar teórico cria uma ilusão de permanência. Por exemplo, a poesia escapa a qualquer tentativa de reificação pelo olhar teórico. Os sentidos poéticos estão sempre dispersos (aliás, como em qualquer outro gênero discursivo); mas, na poesia, além da dispersão dos sentidos, há que admitir a transmutação contínua deles. Para captar tal transmutação, é necessário sentir a poesia, e não lançar sobre ela olhares teóricos. A transmutação deve ser experimentada por cada leitor, que produzirá uma leitura em consonância com os seus propósitos, seu conhecimento de mundo, seu grau de conhecimento intertextual, e com o acúmulo de suas experiências de leitura.
Observe-se agora o poema de Fernando Pessoa, que transcrevo abaixo:

Se Eu PUDESSE trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar.
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade como a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...


O mundo está em mim. Referir as impressões do exterior é necessário, porque, assim, mostro que a exterioridade biossocial não  está apartada de nós, como um mero cenário onde encenamos o drama da vida; essa exterioridade afeta-nos; exerce sobre nós uma influência intensa. Essa exterioridade é interioridade constitutiva; ela desarruma-me a alma.
Para principiar a reflexão sobre o poema de Fernando Pessoa, lanço mão de certos princípios de análise tomados à teoria gerativa de Análise do Discurso. No entanto, não me ocuparei com a exposição do modelo teórico e com a definição de seus conceitos; tais princípios me servirão apenas como instrumentos de interpretação, que me permitirão apresentar uma leitura o mais límpida possível. Quando me refiro à “leitura”, subentenda o leitor o adjetivo “analítico”, pois a leitura que se assenta em níveis implícitos do texto é, por definição, uma leitura analítica, a saber, uma leitura que desconstrói ou disseca o texto, de modo que possa construir-lhe um sentido. No entanto, a leitura que proponho não se realizará para além do poema, de modo a captar os intertextos, conquanto fique claro que toda leitura está em aberto, não é vedada, já que produz silêncios. Embora não me preocupe aqui em fazer uma análise intertextual, o poema, como todo texto, está grávido de intertexto.
Não me delongando na definição de leitura, convém dizer que o poema em tela se estabelece sobre as categorias subjacentes /humanidade/ versus /naturalidade/. Tais categorias constituem a oposição semântica de base do poema. O eu-lírico propõe que se aceite a naturalidade do homem. E para tanto, é necessário reconhecer o dualismo que tece o universo natural, do qual nós, seres humanos, somos elementos integrantes. O eu-lírico propõe, pois, uma (re)conciliação do homem com a natureza.
Como seja importante buscar a sistematicidade da análise que se propõe e como se admita que aquela oposição seja a base sobre a qual se construiu o poema, vou-me deter a meditar sobre o conceito de ‘natureza’ no poema de Fernando Pessoa. De imediato, pode-se afirmar que ‘natureza’ recobre um feixe de oposições; a natureza é um universo de oposições. Tais oposições se revestem de concretude em seqüências como “nem tudo é dias de sol”, “que haja montanhas e planícies”, “rochedos e erva”. Cabe fazer aqui uma ressalva: a oposição entre “rochedos” e “erva” se dá no nível conotativo. Assim, ‘rochedo’ se opõe a ‘erva’, tendo em conta a oposição entre ‘aspereza’ e ‘suavidade’, ou entre ‘o que é tosco ou rude à vida’ e ‘o que é favorável à vida’ (se pensarmos, por exemplo, nas ervas que são utilizadas para fins medicinais). Em “nem tudo é dias de sol”, depreende-se que há dias de chuva; portanto, estabelece-se, por inferência, uma oposição entre ‘sol’ e ‘chuva’. “Sol” é um elemento ‘fórico’ (ou seja, avaliado positivamente em determinada formação discursiva), e “chuva” é um elemento ‘disfórico’ (ou seja, avaliado negativamente).
Por outro lado, o conceito de humanidade se assenta numa suposta estabilidade; é a negação do contraste natural. Os homens, assim, parecem lidar mal com a flutuação entre felicidade e infelicidade; querem experimentar o prazer estável, perene (Freud nos ensinou por que tal condição não nos é possível). A oposição entre /físico/ e /psíquico/, que o eu-lírico se propõe desfazer, está clara no pararelismo entre “Sentir como quem olha” e “Pensar como quem anda”. Convém lembrar que /físico/ se associa a /natural/, e /psíquico/ a /humano/. “Pensar” e “Sentir” são faculdades do espírito; mas o Sentir também participa do físico; situa-se na intersecção; /andar/ e /olhar/ são faculdades físicas, a saber, do corpo. O corpo é um objeto natural; e é o corpo que vincula o homem, enquanto ser racional, ao ambiente natural (primitivo). “Ter um corpo” é admitir que somos um elemento dentre os elementos da natureza; o corpo nos insere no mundo. O homem “civilizado”, “educado” segundo os valores de sua comunidade e/ou sociedade, torna-se insensível às manifestações da natureza, torna-se indiferente à existência de uma natureza viva, da qual ele é um filho que se rebelou.
O conceito de humanidade evoca o conceito de homogeneidade. O homem busca a homogeneidade como aquilo que permite a estabilidade, porque desfaz os contrastes, transformando-os numa massa homogênea. O eu-lírico nos dá testemunho disso no limiar do poema: “Se eu pudesse trincar a terra toda/ E sentir-lhe um paladar/ Seria mais feliz um momento”. Note-se o desejo humano pela absorção do mundo através dos sentidos. O homem tem necessidade de domesticar a natureza. Ocorre que o “eu-lírico”, admitindo que aquela absorção acarreta estado de felicidade (felicidade que é instantânea), confessa-nos que nem sempre quer ser feliz, e acrescenta: “É preciso ser de vez em quando infeliz”. Logo, reconhecer a necessidade de ser infeliz, ou seja, aceitar o contraste entre /felicidade/ e /infelicidade/, torna o homem um ser natural; reintegra-o ao universo natural pela filiação à heterogeneidade, ao que está em eterna relação de contraste. É preciso reeducar para o sofrimento.
Na medida em que aceita as oposições entre os elementos naturais, o homem imerge na natureza, (re)integrando-se  a ela. A reintegração do homem à natureza depende da consciência de que o natural não é estranho ao humano, ao contrário do que se supõe geralmente (antes do social, há o natural): o homem necessita dos fenômenos naturais, por isso, como bem lembra o poeta, “e a chuva, quando falta muito, pede-se / por isso tomo a infelicidade como a felicidade/ Naturalmente, como quem não estranha/ que haja montanhas e planícies (...)”. Lembrou-me um pensamento que registrei certa vez, pelo qual confessei amar as tempestades.
Vale fazer uma pequena digressão, para fundamentar a interpretação que vê a natureza como um elemento reintegrador do homem. O homem é um ser que pode ser estudado sob várias perspectivas. Reconhece-se, consensualmente, que o homem é atravessado por uma dimensão natural e uma dimensão social. A dimensão natural o aproxima a várias espécies animais do planeta, a saber, dispõem-no entre os seres vivos que têm necessidades vitais, cuja existência se desdobra em estágios tais como ‘nascer’, ‘crescer’, ‘desenvolver-se’ e ‘morrer’. Podemos ir mais longe e dizer que somos partes integrantes do universo, visto que formados pelos mesmos elementos que deram origem às estrelas e aos demais corpos celestes. Os elementos químicos característicos da constituição dos seres vivos – carbono, oxigênio e nitrogênio – foram sintetizados nas fornalhas nucleares no interior das estrelas. Somos, pois, seres indissociáveis da estrutura do universo. Por que não filhos do Universo!
A dimensão social, por seu turno, na medida em que pressupõe a capacidade de o homem produzir cultura, traça uma linha divisória entre o homem e as demais espécies animais. É claro que há espécies animais que vivem em comunidades ou espécies de sociedade, como as formigas; mas a vida social humana apresenta características singulares: a) planejamento em função de objetivos específicos; b) divisão e organização de ações e operações; c) socialização dos instrumentos e dos produtos da atividade, ou seja, a acumulação das experiências de produção e a possibilidade de acesso das pessoas aos bens produzidos. Escusa dizer que a técnica fundamental que possibilita a dinamicidade e a recriação (representação) das relações sociais é a linguagem. Esta constitui a base das sociedades  humanas. Ela permite a conversão do instrumento técnico – que nos permite agir sobre a natureza – num signo, o qual permite evocar na mente do outro a ação e a finalidade para as quais o instrumento foi fabricado. O signo permite a socialização do fazer técnico, transformando-o em objeto de conhecimento, a saber, em saber técnico. Não desço a pormenores, embora me sejam interessantes as relações entre linguagem, cognição e cultura.
Em suma, quando se considera o homem em sua dimensão sócio-cultural, é preciso assumir como pressuposto o distanciamento entre ele e o meio bio-físico. O eu-lírico propõe um retorno ao berço natural, mas não como um estado de exílio do ser social – o que seria uma ilusão, pois seres humanos necessitam viver em sociedade; esta é uma superestrutura  que os educa, que os modela, que os condiciona, (embora não sejam completamente subjugados ou determinados). -, e sim como aceitação da dimensão natural como um das dimensões que os constitui.
Deve-se contemplar o belo no polo natural a que se atribui uma qualidade negativa. Nesse tocante, o homem é um ser “polarizado”, ou seja, tendemos a concentrar nosso anseio, afeto, interesse em certas extensões de coisas, rejeitando outras, que se lhes opõem. Por exemplo, amamos os dias de sol e nos demonstramos, muita vez, desfavoráveis aos dias de chuva. No Brasil, especialmente – país edificado sobre o mito da sensualidade, dos corpos dourados e sedutores – o “sol”, como símbolo que justifica/ sustenta a exposição dos corpos, como o elemento (simbólico) que incita a busca pelo padrão tropical de beleza (corpos dourados, bem torneados, etc.) – é supervalorizado. Quem nunca ouviu dizeres do tipo “todo carioca é apaixonado por praia”; “dia nublado não é a cara do carioca”. Não faço incursão aqui em discussão de ordem sócio-cultural, porquanto isso consumiria muito tempo.
O eu-lírico toma, portanto, a natureza como um elemento /eufórico/, ou seja, como um elemento positivo. Argumenta em favor da busca pela serenidade; mas só se pode ser sereno, quando se aceita ser natural. O homem alcança o estado de tranqüilidade, quando aceita saborear a felicidade e degustar a infelicidade. A reintegração do homem ao universo natural o coloca numa mesma cadeia de transformações; o dispõe entre os elementos regidos pelas leis naturais, dentre as quais destaca o eu-lírico a “morte”. A morte se estende a muitos aspectos do mundo bio-físico: os seres morrem, mas também as feições da natureza morrem. A morte é a condição natural que irmana o homem e as feições naturais do mundo: “E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre”.
Reconhecendo-se que o homem necessita contemplar o belo, como fonte de prazer, o eu-lírico nos ensina que é possível experimentar o belo no pólo negativo da natureza: “(...) o poente é belo e é bela a noite que fica...”. A beleza que se experimenta na contemplação do poente é extensiva ao nascimento da noite (pólo negativo).
Ao cabo de seu discurso, estando o homem reintegrado na natureza e convencido de que, em meio ao contraste das feições naturais, a coexistência entre a aspereza e a suavidade, entre a suntuosidade e a simplicidade , enfim, entre o positivo e o negativo, é possível extrair da terra o prazer, o eu-lírico submete sua expressão à síntese da essência do natural – natural que não se deixa domesticar-se completamente, pois esconde em suas entranhas uma vontade própria de vida, uma vontade infinita de potência, cujas forças são grávidas de uma intensidade tal, que escapa ao desejo humano por submetê-las ao seu talante. Destarte, encerra o poeta: “Assim é e assim seja...”.

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