quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

"Nós matamos o Deus, mas não matamos nossa angústia" (BAR)

                                     

                                 Até onde pode ir o ateísmo

O dogmatismo, em filosofia, consiste numa atitude rígida em face da possibilidade de a razão humana alcançar certezas e verdades absolutas. Ser dogmático é admitir que podemos estar sempre seguros da verdade de nossas crenças. Se eu digo “tenho certeza de que Deus existe”, estou sendo dogmático. O dogmático não se preocupa em fazer a crítica, em avaliar,  em repensar suas posições.
Nós, ateus, temos de ter cuidado para não manifestarmos posições dogmáticas. Como bem pondera Marcelo Gleiser, em Criação Imperfeita (2010), ao mencionar o ateísmo ativista de personalidades como Richard Dawkins, Sam Harris, o filósofo Daniel Denett e o saudoso jornalista Christopher Hitchens:

“O grupo prega um ateísmo radical, usando uma retórica extremamente agressiva, tão inflamada e intolerante quanto a do fundamentalismo religioso que se propõe a combater”.

(p. 40)

Este texto se propõe repensar a postura intelectual ateísta. Sabe-se que o ateísmo, enquanto discurso, é entretecido pelos fios da razão e lógica científicas. Trata-se de um discurso calcado sobre os discursos das ciências (física, biologia, antropologia, sociologia, psicologia...). A sua retórica é a de exaltação à racionalidade científica, aos avanços da biologia, da física, bem como o da incorporação das explicações sociológicas, antropológicas e psicológicas (também neurocientistas) numa tentativa de fazer ver a natureza humana das religiões. O ateísmo não só nos convoca a colocar os pés no chão, mas também a enterrar as nossas almas com nossos corpos. Gleiser é, aliás, incisivo ao nos alertar para a proposta ateísta:

“O que o ateísmo oferece – mesmo com todo o seu apelo à razão e à lógica da ciência – não vai funcionar. Ao menos não como costuma ser apresentado, sem qualquer vestígio de espiritualidade”.
(pp. 41-42)

A espiritualidade que alguns ateístas dizem ser possível experimentar é, evidentemente, de outra ordem. Mas demonstrar essa possibilidade é complicado. Vale dizer que espiritualidade não está necessariamente ligada à religião. Aliás, independe dela. Escusando-se essa questão, vou-me ater ao que me interessa fazer ver aqui.
Gleiser criticará a tendência de os “quatro cavaleiros do apocalipse”, como ficaram conhecidas aquelas personalidades, ridicularizar as pessoas que professam a crença em Deus. E nos mostrará que o ateísmo não satisfará as indagações mais profundas e comuns a todos nós, quer as anunciemos, quer não:

“A verdade é que provas empíricas não têm nada a ver com o poder da fé. Quanto mais misterioso o credo, mais ardente a crença. A grande maioria das pessoas acredita no sobrenatural por não aceitar que a morte possa ser o fim definitivo da vida. Não queremos ser esquecidos, reverter ao nada, perder nossos entes queridos. Quantas pessoas já não passaram por este mundo, ricas e pobres, reis e escravos, famosas e desconhecidas, belas e feias, pessoas que amaram e foram amadas, que sentiram alegria e dor, e que agora são apenas um punhado de pó? “Será que é só isso?” Será que vivemos, amamos e sofremos para sermos esquecidos após algumas gerações? Se temos apenas alguns anos de vida, nem sempre felizes, para que batalhar tanto? Qual o sentido da vida, se no final a morte e o esquecimento são inevitáveis?”

(p. 41)

A ciência não pode responder a essas indagações. Ela não pode satisfazer o sentimento, o desejo grandioso que jorra de corações aflitos, o desejo de que seja possível a inesgotabilidade da vida, de que o sofrimento que experimentamos neste mundo seja justificado ou compensado. Muitas experiências de mundo nos estarrecem! Há milhares de pessoas que nascem com alguma anomalia; problemas congênitos, retardamento mental, desenvolvem câncer, ficam paraplégicas, tetraplégicas, nascem cegas. Uns nascem em um meio familiar repleto de cuidados, amor e riqueza; outros, desamparados; outros ainda em regiões marcadas pela miséria, por sofrimentos inimagináveis. São coisas que acontecem, disse-me uma amiga atéia. Verdade, ou uma triste verdade – o vizinho ao lado não teve a mesma sorte! Mas não podemos ser indiferentes! Também não podemos viver os problemas dos outros, é claro; mas devemos ter em conta que somos filhos de uma mesma angústia: o medo (ou, se preferirem alguns, a lamentação, a desilusão...) , ainda que tácito, de que todos os nossos esforços, tudo pelo que lutamos, os amores por que choramos e que nos fizeram felizes, as pessoas que amamos e que nos amaram, as alegrias que experimentamos e as tristezas que tentamos em vão sufocar ou em que nos inundamos; todo o vivido, sentido, experimentado, retorne ao nada, ao pó.
Não defendo um retorno à crença no sobrenatural, tampouco dou à fé um valor merecido em face da consciência de que nem o ateísmo nem a ciência nos acalentarão, nos ampararão. O que me esforço por fazer ver é a necessidade de repensar o projeto ateísta. Diante da Vida, basta-nos a contemplação e a oportunidade que temos de pensá-la, de buscar compreendê-la. Não à resignação e à passividade; e sim à ação pelo intelecto e pelo coração!
No entanto, ecoará surdo o apelo de Richard Dawkins a que aproveitemos a Vida, a grandiosidade e os mistérios da Natureza, quando muitos dentre nós não podemos, por condições por que não fomos responsáveis, aproveitá-los. Que diremos às crianças que chegaram à vida sem poder compreendê-la, por uma deficiência neurológica? Que diremos de tantos que vivem em condições sociais e culturais desfavoráveis e que, portanto, não tiveram oportunidades de, freqüentando curso superior, experimentar o contentamento, a alegria das mais diversas formas de saber? Estes foram privados da beleza do conhecimento científico, do prestígio da cultura letrada... Eles nasceram naquelas condições e, por fatores sócio-culturais e econômicos que os excedem, viveram uma vida de privações.
Nem a ciência, nem a razão, nem Deus no centro. Apenas o Universo e a consciência de seu grandioso mistério. O ateus devem contentar-se com o Mistério. Os religiosos também. Reconhecer o absurdo constitutivo de nossa existência é o primeiro passo para conseguirmos lidar com ele.

Um comentário:

  1. A maioria dos textos sobre ateísmo é através de discursos inflamados... Gosto desse cuidado com que escreves sobre ele.
    “O que me esforço por fazer ver é a necessidade de repensar o projeto ateísta. Diante da Vida, basta-nos a contemplação e a oportunidade que temos de pensá-la, de buscar compreendê-la. Não à resignação e à passividade; e sim à ação pelo intelecto e pelo coração!”
    Pena que as pessoas se prendam em seu dogmatismo exacerbado e preferem engolir as falácias das verdades reveladas, quando temos todo um universo de conhecimento e esclarecimento, que é em si um prazer em estudar.
    Liberdade é pouco, pra quem consegue fugir da sedução das amarras.
    Bjusss

    ResponderExcluir