quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

"O professor só pode ensinar quando está disposto a aprender" (Janoí Mamedes)

                      

                    A formação do professor de português
                   Da antiga prática à crise que se arrasta

Para que os leitores que me acompanham, quer assiduamente, deixando o testemunho de seu interesse por meus textos, quer esporadicamente, dando aqui ou ali sinais de pouco interesse em minhas publicações (principalmente naquelas que se destinam à defesa do ateísmo, de que tenho me ocupado com mais afinco ultimamente) não concluam por minha predileção pelo referido tema (embora fosse equivocado assim pensar, dada a natureza diversa dos textos neste espaço propalados), tomarei para reflexão, nesta nova oportunidade em que, pela produção textual, me confronto com o mundo, a formação do professor de língua portuguesa. Este texto, quiçá, interesse aos meus ex-alunos do curso de Letras, muito embora (acredito eu) muitos deles passem ao largo de minhas publicações neste blog. Isso não me surpreende, desde que soube que é possível um aluno de Letras não gostar de ler e não exercitar a prática de escrita. Instaura-se uma crise!
Não pretendo alardear a crise (que olhada de perto explica a ineficácia do ensino de língua portuguesa em nossas escolas, isto é, explica como nossos alunos, após alfabetizados, tendo desde então percorrido onze anos de suas vidas em bancos escolares, podem chegar à universidade sem ser capazes de ler e escrever com eficiência), mas ela é um fato reconhecido e revisitado pelos profissionais que se dedicam a pensar sobre os problemas da Educação brasileira. Dentre estes profissionais, destacam-se muitos linguistas que, não se limitando a interesses meramente acadêmicos, voltaram suas preocupações para além dos corredores das universidades, concentrando-as no que se vem fazendo, nas escolas e nos cursos de formação de professores (graduação e pós-graduação lato sensu), com os conhecimentos que têm sido produzidos ao longo de mais de quarenta anos, desde a implementação da Linguística nos cursos de Letras, em 1963.
Este texto vem a propósito na ocasião em que me ocupei com o desenvolvimento de meu próximo artigo acadêmico, que será destinado à publicação em breve. Nesse trabalho, propus-me a pensar sobre a formação do professor de português, tendo em vista a dificuldade de superar o modelo de ensino tradicional baseado em atividades de metalinguagem e análise estrutural da língua.
Todos nós, que tivemos acesso à escolarização básica, sabemos que nas aulas de português que nos foram ministradas sempre predominaram atividades durante as quais éramos, enquanto alunos, levados a ‘classificar as palavras’, ‘identificar as vozes verbais’, ‘fazer análise sintática’, ‘classificar as orações subordinadas’, etc. Essas atividades podem ser entendidas como atividades de metalinguagem, porque nelas usamos a língua para refletir sobre a própria língua tomada em si mesma, ou seja, desvinculada de contextos de uso. Trata-se aqui de levar os alunos a compreenderem o mecanismo gramatical da sua língua materna, entre outras coisas, levá-los a compreender as regras subjacentes à formação das orações, frases, palavras, as propriedades semânticas, sintáticas e morfológicas das palavras (substantivo, adjetivo, artigo, verbo, etc.). A língua é, assim, entendida como um objeto a ser dissecado, suas partes discriminadas e classificadas e seu ‘sistema de regras’ (gramática) explicitado. É o que sucede quando tomamos a frase abaixo e a analisamos do ponto de vista sintático. Senão, vejamos:

(1) O Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500.

Estamos diante de uma frase bem-formada em língua portuguesa. Isso significa dizer que ela foi construída de acordo com a gramática dessa língua, a saber, com o seu conjunto sistemático de regras. Em primeiro lugar, as palavras que a compõem se organizam em blocos de sentido, ou sintagmas. Formam elas blocos de palavras entre as quais há coesão. Assim, discriminamos “o Brasil”, “foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500”, num primeiro nível de análise. Dentro deste grupo maior, identificamos ainda “por Pedro Álvares Cabral” e “em 1500”. A análise poderia prosseguir discriminando níveis hierárquicos mais “baixos”. No entanto, não vou me aprofundar na complexidade das estruturações sintáticas. São, pois, sintagmas os seguintes grupos de palavras:

O Brasil  - sintagma 1
Foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500 – sintagma 2
Por Pedro Álvares Cabral – sintagma 3
Em 1500 – sintagma 4

Os grupos assim constituídos correspondem à nossa intuição enquanto falantes nativos, relativamente à conexão existente entre as palavras que os compõem. Assim, “sentimos” que “o Brasil” forma uma unidade sintático-semântica, mas não se pode dizer o mesmo de “Brasil foi” ou “Pedro Álvares Cabral em 1500”.
Existem, porém, dois expedientes, comumente aplicados, para assegurar a validade de nossa intuição. Ou seja, por eles prova-se que aqueles grupos constituem verdadeiros sintagmas. Partimos de dois princípios: a) todo sintagma é passível de substituição por outro sintagma funcionalmente correspondente, ou seja, por um sintagma que possa ocupar a mesma posição do sintagma que se trata de substituir; b) todo sintagma pode ser transposto para outras posições na cadeia sintagmática. O primeiro teste chama-se de “comutação”. Veja-se o que ocorre com a nossa frase aplicando os dois testes:

(1a) O Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500.

        A América foi descoberta por Cristovão Colombo em 1492.

      O menino estudava matemática    todos os dias.

Importa ver que no lugar de “O Brasil” podemos introduzir os sintagmas “a América” ou “o menino” (o número de possibilidades é ilimitado). No lugar de “por Pedro Álvares Cabral”, podemos colocar “por Cristóvão Colombo” (ou por qualquer outra estrutura funcionalmente correspondente). O sintagma “foi descoberta por Cristóvão Colombo em 1500” pode ser substituído pelo sintagma “estudava matemática todos os dias”. Assim também o sintagma “todos os dias” pode comutar com “em 1492”.
Embora nem sempre usuais, podemos dar às frases aqui exemplificadas outras configurações, o que significa dizer que podemos deslocar os sintagmas para outras posições, organizando-os de modo diverso da versão original da oração.
(1b) Por Pedro Álvares Cabral foi descoberto o Brasil em 1500.
      Em 1500, foi descoberto o Brasil por Pedro Álvares Cabral
      O menino todos os dias estudava matemática.
       Estudava o menino matemática todos os dias
      Matemática estudava o menino todos os dias
      Todos os dias estudava o menino matemática
      Todos os dias estudava matemática o menino (?)

Claro parece que alguns constituintes, em virtude do grau de coesão que mantenham com outros não são facilmente deslocáveis. Por exemplo, a frequência com que sujeito pode se deslocar para depois do verbo (sendo sua posição canônica antes do verbo) depende de o verbo não exigir complemento. Casos frequentes são os que seguem:

(1c) Muitas coisas aconteceram aqui.
       Aconteceram muitas coisas aqui.
       Nasceu muita criança neste ano.
       Muita criança nasceu neste ano.
       João escondeu o bicho debaixo da cama.
       Escondeu João o bicho debaixo da cama.

 A posposição de “João” ao verbo “esconder”, que exige o complemento “o bicho” não é tão usual. Na fala corrente, tende a não se verificar.
Aspectos de concordância e regência são também evidenciados aos alunos durante as atividades de análise da língua fragmentada e descontextualizada. Por exemplo, o aluno aprende que o verbo, na variedade padrão da língua, assume o número e a pessoa do sujeito. Ao fazê-lo, ele modifica sua forma morfológica para adequar-se ao sujeito. Assim é que “O Brasil”, constituído por um núcleo substantivo no singular, determina a forma do verbo. Este assume a forma de 3a pessoa do singular (todo substantivo, por designar coisas, fatos, eventos dos quais falamos representa no discurso a terceira pessoa, ou a não-pessoa, em relação as duas pessoas do discurso, a 1a e a 2a).
Já há muito, os professores reconheceram que o estudo formalista da língua, ou seja, baseado na análise de sua estrutura, com discriminação das suas entidades, identificação dos tipos de relações entre elas, das regras subjacentes a essas relações, não contribuem para alcançar o objetivo fundamental do ensino de português a falantes nativos dessa língua. Em outras palavras, não levam os alunos a ler melhor, escrever e falar de acordo com a norma padrão. Não é ensinando gramática que levaremos nossos alunos a se tornarem mais proficientes no uso de sua língua materna.
Avultou-se à consciência a necessidade de dar às práticas de leitura e produção textual um espaço maior no tempo em que ocorrem as aulas de português. É somente quando consideramos a língua em uso, realizada em textos reais, compreendida nos processos discursivos, que estaremos efetivamente contribuindo para o desenvolvimento do que se tem chamado “competência comunicativa” dos falantes nativos.
A competência comunicativa (para os estudantes de Letras trata-se de uma lição fundamental e que não pode ser negligenciada) é a capacidade de o falante nativo não só produzir enunciados em sua língua de acordo com as regras da gramática internalizada, que está inscrita em sua mente/cérebro, mas também de usá-los adequadamente às diferentes situações comunicativas de que participa. A competência comunicativa é sensível não só às regras daquela gramática, sem as quais não é possível, mas também às regras ou normas sócio-culturais. Assim, um falante comunicativamente competente sabe como se comportar linguisticamente em situações sociais solenes, como enterros, celebrações religiosas,  ou em situações que demandam formalidade (mas não necessariamente solenidade),  como congressos, reuniões de trabalho, ou ainda quando precisam se dirigir a advogados, diplomatas, desembargadores, a seus professores, especialmente quando estão apresentando uma comunicação em congressos, etc.
Ter competência no uso de nossa língua é saber transitar nas diferentes esferas sociais de modo adequado às normas nelas vigentes. Essas normas são internalizadas por nós via cultura. É porque partilhamos de um mesmo código cultural e linguístico que somos capazes de reconhecer estas normas, estas convenções de nossa sociedade. O uso da língua perpassa todas as esferas institucionais de nossa sociedade, desde a família até as esferas jurídicas, passando por escola, universidade, associações por ideologia ou lazer, burocracia; em suma, compreende os espaços privado e público.
O que me motiva ao magistério, o que me motiva, mormente, no exercício de minha vocação como intelectual e professor de língua portuguesa é justamente o enfrentamento da crise, tão bem patenteada por Coimbra (2006), em A Formação do Professor de Português, quando escreve sobre o fato de a grande maioria dos professores de português atuantes nas redes escolares pública e privada não serem nem leitores nem escritores (em sentido lato):

 “(...) o reconhecimento de suas próprias deficiências levá-los-ia a entender as dificuldades dos alunos e a modular sua relação com as deficiências deles. Ou seja, esses professores ainda não se tinham dado conta das dificuldades inerentes ao escrever e de suas deficiências pessoais. Tinham passado iludidos pela escola e pelo curso de letras: ou nunca tinham escrito na vida ou nunca tinham tido problematizada a sua escrita e nunca se tinham perguntado se sabiam ler e escrever suficientemente bem para querem-se professores de português”
(p.28)

       Do fragmento citado, chegamos à conclusão irrecusável de que a condição prévia para se ensinar a ler e a escrever com eficiência é saber ler e escrever com eficiência. Daí que o ensino de leitura e de escrita deve ser feito por leitores/ escritores a leitores/escritores. Se os professores não têm o hábito de ler, se não praticam o exercício da escrita e reescrita contínuo, como podem eles pretender ensinar aquilo com que sequer estão familiarizados?

3 comentários:

  1. vc foi muito pontual e loquaz - como sempre - qto a esta questão tão pouco [não discutida, mas] repensada em sala de aula.
    e isto me fez lembrar, ao citar a tal oração, do estudo de voz passiva, cuja 'regra' diz que é preciso um VTD para que ela seja possível. no entanto, há falhas em alguns casos.
    assim como há falhas - maiores - nas metodologias e currículos até mesmo nas ditas melhores instituições de ensino.
    mas é uma luta a ser considerada...

    beijo

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  2. Verdade, amiga. E quanto aos casos que escapam aos padrões da gramática normativa, temos o do verbo "obedecer", considerado VTI, embora ocorra na voz passiva, sendo a forma consagra pelo uso, mesmo entre os falantes letrados: "O pai era obedecido pelos filhos". E não me causam estranheza ocorrências como "O filme era assistido por ele", "O cargo era aspirado por ele". Minha hipótese é que os verbos que regem "a" permitem o uso mais frequente da voz passiva, ao contrário de verbos que regem outras preposições, como "em" ou "de" (v. "Essas coisas eram acreditadas por ele" (?), "O sorvete é gostado por ele" (?)) Decerto, o grau de aceitabilidade é menor nesses casos entre parênteses.

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