sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

"A educação exige os maiores cuidados, porque influi sobre toda a vida". (Sêneca)


                                            Educação em foco
                           Considerações sobre ser professor

Costumo dizer que sou um apaixonado do exercício do magistério; sou um professor comprometido com uma Educação libertária. E sorri-me a crença em que, talvez, tenha eu nascido para a prática pedagógica. Se é verdade que certas aptidões e talentos possam já estar previstos em nossa constituição genética, é muito provável que a minha aptidão para o magistério estivesse em mim latente. É o que sinto, sinceramente, e o confesso aqui.
O que me estimula a escrever este texto é mais do que a necessidade de dar um testemunho de minha paixão pelo magistério, é também a vontade de trazer à consciência de meus leitores a inegável importância da Educação na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Sou romântico, sim, também neste domínio. Claro é, porém, que evito deslumbrar-me com idealizações, com utopias. E experimento frustrações, frequentemente. Não escapamos a elas, como professores, sempre que nos comprometemos a ir além; sempre que não nos conformamos às condições educacionais muito pouco favoráveis a um ensino crítico e libertário. Só não se frustram aqueles que nada desejam, que nada pretendem, além de receber, ao final do mês, seu ganha-pão.
A Educação é lugar de conflitos; é o espaço onde as desigualdades sociais, as diferenças de classe, as ideologias, as crenças e visões de mundo diversas repercutem. Mas é também o espaço onde tudo isso deve ser trabalhado; digo, discutido e questionado. A Educação é (ou deve ser), numa sociedade democrática, um espaço de resistência. Formar para a resistência, desenvolver a consciência crítica, promover a reflexão, o questionamento – são todas atividades que competem aos profissionais da Educação.
A que resistência me refiro? Resistência ao status quo, resistência ao senso-comum, aos lugares-comuns, às ideologias prestigiosas e que, supostamente, prescrevem “verdades”, aos preconceitos de toda sorte (inclusive ao preconceito linguístico, completamente ignorado, quer pelos membros das classes dominadas, quer pelos membros das classes dominantes, quer também por grande parte de nossas autoridades políticas).
Enquanto me ocupava da leitura do livro Nada na língua é por Acaso – por uma pedagogia da variação linguística (2007), do renomado (socio)linguista Marcos Bagno – um livro que, por sinal, muito bem escrito e de fácil compreensão – chamou-me a atenção o seguinte trecho, que é a expressão de uma das etapas que, segundo o autor, configuram o trabalho de reeducação sociolinguística que cabe ao professor de português desenvolver na escola (e eu acrescentaria também na universidade):

“Conscientizar o alunado de que a língua é usada como elemento de promoção social e também de repressão e discriminação – comparar o preconceito linguístico com as outras formas de preconceito que vigoram na sociedade; desconstruir o preconceito linguístico com argumentos bem fundados e alertar alunos e alunas contra suas próprias práticas de discriminação por meio da linguagem”
(p. 84)
(grifo no original)

Em seus livros (que prezam sempre pela clareza e pela fundamentação teórica, sem deixarem de ser didáticos e acessíveis à leitura), Bagno insiste incansavelmente na necessidade de combate ao preconceito linguístico, ignorado em nossa sociedade. Ele existe! Mas passa ao largo dos debates sobre temas sociais e políticos na mídia e escapa à consciência da grande maioria dos indivíduos de nossa sociedade. É claro que isso não é um fato específico da sociedade brasileira; o preconceito em relação aos usos da língua é comum  senão a todas, certamente à maioria das sociedades civilizadas.
E como esse preconceito se manifesta? Se manifesta nas ocasiões em que discriminamos a fala dos outros, a censuramos, a ridicularizamos, a rotulamos de “errada”, de “estropiada”, etc.. E mais – e isso sequer é percebido: a discriminação do modo de falar do outro é também discriminação do próprio indivíduo. Ora, quando usamos a língua trazemos à tona também nossa origem sócio-cultural, ou seja, à classe social a que pertencemos, nosso grau de escolarização e de participação na cultura letrada. O que falamos revela muito sobre de onde viemos, onde fomos educados, sobre nossos valores, nossa identidade; em suma, sobre quem somos. Disso se segue que, ao censurar uma forma como probrema (que, aliás, é muito estigmatizada; talvez, o leitor tenha-se rido ao lê-la) produzida por uma empregada doméstica, estamos demarcando-lhe as fronteiras sócio-culturais que dela nos separam. Estamos dizendo, tacitamente: “vejo logo que você vem de uma classe social menos favorecida à qual eu não pertenço (e rejeito)”. Os usos da língua, é preciso dizer, revelam a estratificação social. Numa sociedade como a brasileira, fortemente estratificada, usar a língua é, muitas vezes, uma forma de reforçar essa estratificação social. E fazemos isso frequentemente, sem que, muitas vezes, percebamos.
Não vou, contudo, me alongar neste assunto. Volto ao que me interessa propriamente aqui: a Educação. Evidentemente, falar em Educação é falar de um espaço de múltiplos discursos, portanto, de um espaço onde as práticas institucionais (e não poderia ser diferente) são práticas de linguagem. Discursos são arenas de conflitos; é o lugar privilegiado da ideologia. São práticas sociais ou modos de ação social e formas de representação; nesse tocante, devemos entendê-los tanto como espaços sociointeracionais moldados pelas estruturais sociais, quanto espaços constitutivos dessas estruturas. Assim também o discurso serve para a reprodução e  para a mudança dessas estruturas.
A Educação não é imune aos jogos de poder fundamentados nos discursos e por eles viabilizados ; ela não está salva das ideologias dominantes, das desigualdades de classe, realidades estas que repercutem em seus espaços institucionais (veja-se a escola). E o professor, como agente social, pedagógico e político, precisa atuar no sentido de mediar a relação entre as diferentes formas de representação social e de conhecimento. Ele não escapa ao senso-comum, evidentemente; mas não pode limitar-se a reproduzi-lo, deve ultrapassá-lo, deve estimular seus alunos a questioná-lo. Daí sempre a necessidade do debate, da leitura reflexiva, orientada, mas também das releituras (que não consistem em ler de novo, mais em ler sob outras perspectivas, à luz de novos conhecimentos alcançados). Questionar as leituras institucionalizadas, consagradas por uma tradição intelectual elitizada; afinal, os textos ( incluindo as obras literárias) são abertos a muitas interpretações (não a todas, certamente, mas a muitas) – constitui tarefa de todo professor (não só do de português e Literatura).
Uma Educação para a resistência começa num trabalho orientado pelo princípio de que a linguagem é um instrumento não só de expressão, mas também de reprodução e consolidação do poder. Não obstante, é também um espaço em que os poderes podem e devem ser questionados.
Não só fala quem manda; mas também fala quem ousa resistir e questionar! E você, ousa falar?


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