quarta-feira, 15 de setembro de 2021

"Todos os seres vivos são membros de comunidades ecológicas ligadas umas às outras numa rede de interdependências" (Fritjof Capra)

 



LIVRANDO-ME

 

            Quando um livro se nos abre, um vasto e complexo mundo se abre também; mas este mundo que se abre em sua complexidade e vastidão não se põe ao sujeito leitor como um simples objeto a ser esquadrinhado, inspecionado, examinado, conhecido. O mundo que se abre, que se desvela no folhear das páginas de um livro, é um mundo como campo de possibilidades de experiências afetivas, cognitivas, linguísticas, dialógicas que nos inundam todo o corpo, até o profundo de suas camadas nervosas, sensoriais, emocionais. Livros não são objetos de consumo, os quais se deterioram no próprio ato de consumo. Livros são espaços de experiências cognitivas, afetivas, culturais dialogais. O mundo que se nos abre na abertura de um livro é um mundo que nos desabitua, que nos desloca, que nos retira do conforto do mundo comum cotidiano em que costumeiramente nos instalamos e em cuja superfície perambulamos, tagarelamos e vivemos a vida rala e rasa através das lentes do senso comum. Quão custoso me é externar minha paixão (páthos) pelos livros, minha afeição (philotés, philía) ao bem de que eles me dão regozijar! Quão custoso me é tornar inteligível ao outro esta minha cumplicidade fisiológica, biológica com os livros, este meu dispor-se afetuosamente a eles com a gratuidade e a alegria dos enamorados! Que fique, ao menos, claro que, para mim, os livros não são utensílios, objetos de que me sirvo para atingir fins determinados; a vida sem a leitura é, para mim, empobrecida, é uma vida esquálida, é uma vida atrofiada, uma vida desperdiçada em seu tempo finito, de uma longenvidade tão incerta; é uma vida amputada em suas capacidades de autopoiese; é uma vida deficitária, uma vida que se vive sob o modo da insuficiência; é uma vida que se arrasta, que se leva adiante por uma simples indisposição para com a morte. Que me perdoem se tomo aqueles que não comungam deste meu vínculo afetivo com os livros, que vivem divorciados da intimidade do convívio com eles, como miseráveis a mendigar e a ruminar as sobras de um mundo limitado, esquemático, simplificado pelas telas do viver comum; perdoem-me se os tomo por prisioneiros de um mundo visto pelas grades estreitas da cotidianidade fragmentada pela hiperinformatividade de nossas sociedades digitais. Pudera que todos, sem exceção, se tornassem leitores-amantes, que deixassem de ser meros consumidores de informação, de corpos-imagens, de vidas estranhas celebrizadas, do banal espetacularizado, do mundo das marcas-sonhos sem alma, para se tornarem habitantes de um outro mundo - mais vasto, mais complexo, mais profundo, mais vigoroso, mais potente, pleno de intensidades afetivas e ilhas de conhecimento: o mundo dos corpos-leitores.

 


DESCULPE-ME, VOCÊ NÃO É A COROA DA CRIAÇÃO

 

        A visão mecanicista de mundo da física newtoniana e a visão mecanicista da vida de Descartes há muito foram superadas. No século XXI, em que se tornam cada vez mais flagrantes os problemas sistêmicos que ameaçam a vida em nosso planeta, predomina, nas ciências físicas e biológicas, a visão sistêmica de mundo, calcada sobre uma ecologia profunda. Do ponto de vista sistêmico, as únicas soluções possíveis para os problemas de nosso tempo - energia, degradação do meio ambiente, mudança climática, segurança alimentar e financeira -, são soluções sustentáveis. Uma sociedade sustentável significa uma organização social cujas atividades econômicas, comerciais, tecnologias e estruturas físicas não ameacem a capacidade inerente da natureza de sustentar a vida. Contrariamente à metafísica ocidental, que com Descartes, no século XVII, entronizou a consciência como a parte distintiva e mais elevada do homem, a ponto de considerar os animais não-humanos como meras máquinas, a visão sistêmica de mundo e a ecologia profunda de que se nutre preconizam que a consciência e a cognição não são privilégios humanos. Na visão sistêmica da vida, desenvolvida por estudiosos como Humberto Maturana e Fritjof Capra, o ser humano, como todo organismo vivo, está imerso em interações mútuas com a totalidade da vida no planeta; o homem é um fio da teia complexa da vida. A dicotomia metafísica cartesiana entre “coisa pensante” e “coisa extensa” é puro devaneio idealista. Como ensina Maturana, a cognição é uma atividade intrínseca ao processo da vida, ela está implicada na autogeração e na autoperpetuação das redes vivas. Plantas, animais e seres humanos são dotados de cognição e interagem cognitivamente com o ambiente em que vivem. Assim, vida e cognição são inseparáveis: “toda a estrutura do organismo participa do processo de cognição, quer o organismo tenha ou não um cérebro e um sistema sistema nervoso”. A consciência é um fenômeno emergente; é um tipo especial de processo cognitivo que se desenvolve quando a cognição alcança certo nível de complexidade. A cognição é um fenômeno mais amplo do que a consciência. É um preconceito metafísico separar os organismos vivos entre os que possuem consciência e os que não a possuem. Como fenômeno emergente, a consciência foi se complexificando e se diferenciando apenas em termos de graus entre os organismos vivos. O que se segue vale tanto para nós, macacos pelados, quanto para outras espécies de animais e plantas: “ as interações de um sistema vivo com seu meio ambiente são interações cognitivas, e o próprio processo de viver é um processo cognitivo”. Seguem-se da visão sistêmica da vida alguns postulados que não podem mais ser ignorados:

1. O planeta Terra é um sistema vivo e autorregulador;

2. O mundo material é uma rede de interações, de padrões;

3. O cérebro, o sistema imunológico, cada tecido corporal e cada célula é um sistema vivo e cognitivo;

4. A evolução não é mais concebida como luta competitiva pela sobrevivência, mas uma espécie de dança cooperativa, na qual a criatividade e a constante emergência da novidade são forças propulsoras.

 




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