sexta-feira, 10 de setembro de 2021

"(...) a existência, tal como é, sem fim nem objetivo, mas inevitavelmente retornando, sem um finale no nada: "o eterno retorno"". (Nietzsche)

 



                      Quando a loucura chega ao poder

 

Em meio a essa insanidade coletiva, tenho me sentindo intelectual e emocionalmente asfixiado. E não é figura de linguagem ou força de expressão: tenho somatizado tudo que estamos vivendo em manifestações sintomáticas de ansiedade e desânimo cognitivo. Minha estratégia para não sucumbir a um estado de ansiedade generalizada ou irromper em fúria, é ler para entender, por exemplo, como é possível que o animal humano seja capaz de tanta loucura e estupidez. Mas, em vez de me aliviar, ler para entender intensifica minha perturbação e perplexidade, porque estudos em psicologia parecem confirmar que os animais humanos não são naturalmente predispostos a buscar a verdade. Há várias teorias, em psicologia comportamental, que buscam explicar por que muitas pessoas simplesmente se recusam a mudar suas opiniões, porque continuam a se comportar em conformidade com suas crenças estúpidas, irracionais, mesmo diante de evidências que as contrariam, que as invalidam. Em suma, tentar entender como é possível a estupidez humana generalizada não tem me ajudado muito emocionalmente. Muito pelo contrário, além de intensificar o sentimento de perplexidade e inquietação, lança por terra a minha confiança na racionalidade e na razão discursiva como ferramentas de combate. Sim, devemos admitir que nos enganamos quando acreditamos ser possível combater a desrazão com a razão, quando pressupomos que basta o diálogo logicamente organizado para extirpar a loucura das massas, para trazer de volta à lucidez uma pessoa que age e pensa em desconformidade com o bom senso. Já escrevi aqui que Descartes se enganou a respeito da distribuição igualitária do bom senso. Não é o bom senso o que é distribuído justamente entre os homens; mas a estupidez. A considerar o que nos ensinam os estudos em psicologia comportamental, os seres humanos não estão naturalmente predispostos à verdade, eles querem vencer discussões, querem proteger sua autoestima, seu ego, evitando o confronto com aquilo que lhes mostre que estão errados. O conhecido efeito Dunning-Kruger, por exemplo, nos diz, grosso modo, que “quanto mais burro você for, mais confiante você será de que não é realmente burro”. As pessoas sofrem de muitos vieses que funcionam como mecanismos psicológicos de preservação do valor próprio delas. Mas além desses vieses, devemos admitir que nem todos são inteligentes o suficiente para reconhecerem que estão errados, para reconhecerem sua própria estupidez (sim, os burros existem e não há nada que possamos fazer!). Nem mesmo sabendo disso, sinto-me mais aliviado, porque são minhas crenças iluministas básicas que estão em jogo, crenças inegociáveis, porque são elas que me motivam para o exercício da filosofia. Ora, vejam, estou me dedicando a uma pesquisa de doutoramento em filosofia em que procuro pensar o niilismo como condição de possibilidade para a desmitificação do homem, para seu retorno à vida da Lucidez, porque, na maior parte das vezes, esse animal estúpido e doente vive na Caverna de Platão. Como continuar acreditando ser possível essa travessia, esse resgate em face do caos de dissonância cognitiva, de insanidade, de irracionalidade em que vivemos? Talvez seja isto: o animal humano é terminantemente doente e irreversivelmente louco, sua condição insana é incurável.

Resta aos sãos de corpo-espírito tocar o barco...



(...)


Neste cair da noite, revisitando as páginas de Nietzsche, supero, momentaneamente, aqueles sentimentos diurnos de cansaço, fraqueza e desespero, ao recordar que o mundo, para Nietzsche, é um  processo cujas forças múltiplas combatem umas com outras sem trégua. Recordo, em suas páginas, que a vontade de potência precisa daquilo que lhe faz resistência para se autossuperar. Que a vontade de potência é uma força plástica e criadora. Que a luta que se trava entre as vontades de potência não visa a metas ou a objetivos, mas expressa o caráter agonístico e a pluralidade beligerante do mundo enquanto criação e destruição contínuas. Se Nietzsche sofreu, soube ser combatente de seu sofrimento, combatente de todas as manifestações de fraqueza, de degenerescência das vontades de potência infestadas pela negatividade. Em suma, o vir-a-ser do mundo é o do conflito, da guerra sem trégua entre os contrários e a afirmação deste mundo exige-nos uma única tarefa inalienável: “ser o que sempre deve superar a si mesmo” (Zaratustra)




                                  A lucidez niilista


Situado numa abordagem dialógica das filosofias de Nietzsche, Schopenhauer e Cioran, o niilismo é, em nossa pesquisa, encarado como a condição sine qua non do pensamento, na medida em que pensar é desmascarar as supostas certezas, é corroer as empedernidas crenças e convicções insuspeitas, é derribar os alicerces do que julgamos saber, daquilo que tomamos por verdades inabaláveis. Por isso, todo pensamento, se se pretende radical, é pensamento niilizante. Assumindo esse pressuposto, propomo-nos discutir a problematicidade do niilismo compreendendo-o, na esteira de Nietzsche, como um fenômeno polimórfico e polissêmico que, não podendo ser reduzido à lógica do movimento agonizante dos valores superiores, nem ao próprio movimento histórico-cultural que leva à aniquilação todo um imaginário-simbólico plasmado na interpretação socrático-platônico-cristã moral de mundo, descerra a sua própria Lucidez como a qualidade que leva o homem a despertar-se, a desenganar-se, a desiluniosar-se acerca de sua condição como ser no mundo. Habitando a Lucidez niilista, o homem pode reconhecer-se como um animal integrado à natureza, como um fio da teia da vida. Enquanto o homem se ressente da derrocada dos valores superiores que o Deus cristão representava, ele ainda vive mortificado, enfraquecido por um niilismo incompleto. É preciso superar este estágio do niilismo do cansaço, da fraqueza, da vontade de nada, para transfigurá-lo na forma de “pensamento divino”, portanto, na condição necessária para a criação de novos valores afirmativos, de um novo imaginário-simbólico à luz do qual a vida se posiciona como valor supremo e o homem se reconhece como verdadeiro criador. Nós, homens e mulheres do Ocidente, vivenciamos o Nada como déficit de ser, como vazio de sentido, como aniquilação, como perda de esteios valorativos, como ausência de sentido, experiência muito diferente que têm os orientais do Nada e do Vazio. Se o niilismo, como pensava Nietzsche, é a lógica de um movimento histórico-cultural de desmoronamento, de derrocada dos valores superiores, de todo um imaginário-simbólico que dotava de sentido a vida humana, então o niilismo, entre nós, é o mais radical processo de desmitificação do homem. É esta a tarefa do niilismo ativo em Nietzsche: desmitificar, desilusionar. É esta a qualidade que tem o niilismo também no pensamento de Schopenhauer e Cioran, conforme se mostrará. Este trabalho de desmitificação do homem, no entanto, não se faz senão como uma guerra não apenas contra os valores e sentidos postos a serviço da negação da vida, mas também contra as forças reativas da vontade de nada que ainda persistem no interior do niilismo. O niilismo ativo também deve ser ultrapassado para que se perfaça o niilismo extremo, este sim a variante de niilismo que torna possível ao homem assumir-se como criador, como artista de sua existência. Articulada ao atual contexto pandêmico da Covid-19, nossa pesquisa nos leva a questionar não só o estatuto metafísico-imaginário que o homem atribui a si mesmo crendo-se o ápice da Evolução ou a coroa da Criação, como também nos incita a pensar nos impactos de suas ações predatórias sobre o ecossistema do qual ele não se reconhece como parte, por força de sua constituição como ser social ou cultural alienado. Nesse contexto de questionamento, é possível pensar o niilismo como a condição histórico-antropológica para a abertura de uma visão de mundo calcada sobre uma ecologia profunda, à luz da qual o mundo é uma totalidade integrada e os seres humanos não são seres apartados do meio ambiente natural, mas um fio da grande teia da vida.





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