quinta-feira, 2 de setembro de 2021

"O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem - uma corda sobre o abismo". (Nietzsche)

 




         O animal enjaulado

Se, como escreve Rosa Dias, com razão, ao ler Nietzsche, “a vida é atividade criadora”, e se o animal humano vive, é parte do ecossistema da vida, é um organismo vital, é o homem também criador. No entanto - Pasmem-se!-, historicamente, o homem se alienou de sua natureza; criou instituições, toda uma ordem simbólico-institucional que o nega enquanto tal. Alienado, o homem concebe-se ainda hoje como criatura de um Criador, vive como escravo de uma ordem institucional em cuja origem ele não se reconhece. A vida civilizada, produto da atividade laboral deste animal excêntrico e periclitante que é o homem, é a causa de seu adoecimento, de seu apequenamento, de sua demência. Civilizando-se, o homem construiu para si mesmo seus cárceres, dentro dos quais ele vive como um estranho que não se reconhece na sua criação, e luta pelo direito de permanecer encarcerado, pelo direito de ser quem acredita imaginariamente ser: o herdeiro primogênito de um Pai celestial, sem suspeitar que esse Pai é criação sua, que toda a ordem que cria tem a marca de um criador ausente, de um criador que se renegou.




O ALÉM-DO-HOMEM COMO CATEGORIA TRANS-HISTÓRICA


       A partir de dois pequenos textos que publiquei em minha página do Facebook e estimulado pelas leituras sobre Nietzsche (estou agora lendo um ensaio de Giacoia que se acha no livro “Labirintos da Alma: Nietzsche e a autossuperação da moral”), fiz a mim a questão: quem é o além-do-homem hoje? Como pensá-lo em nosso tempo? A quais tipos culturais se contrapõe? É interessante pensar que Nietzsche nos legou uma categoria, um tipo conceitual trans-histórico, uma categoria que nos permite pensar a necessidade de autossuperação contínua do homem no devir histórico. (Diferentemente do que julgava eu há algum tempo, não acho que o além-do-homem é um conceito superado, inoperante para nos auxiliar a pensar a condição do animal humano como ser no mundo). Acho que se trata de uma categoria filosófica sumamente valiosa, que descerra o horizonte teórico à luz do qual o homem é um experimentador de si mesmo, um criador de mundos históricos, um criador de si mesmo. Ocorre que Nietzche soube bem denunciar o tipo humano que vicejou na cultura ocidental com a mudanização do cristianismo. Nestes pouco mais de 2.000 anos de subsistência do sistema cristão de interpretação moral-religiosa, ainda predomina entre nós o tipo humano asceta, infestado pela vontade de nada, habitado pelas forças reativas do ressentimento, submisso aos poderes constitutivos da moral de rebanho. Se como escreve Giacoia, “ pode-se legitimamente caracterizar a filosofia de Nietzsche, em linhas gerais, como um ousado esforço teórico para levar a cabo uma crítica radical das formas superiores da cultura no Ocidente, que são por ele interpretadas como produto e superfície da reflexão do tipo histórico-cultural constitutivo do homem moderno”, como, então, pensar o tipo humano hegemônico em nossas sociedades hipermodernas (Lipovetsky), pós-modernas... em relação ao qual o além-do-homem, que Deleuze pensa caracterizar-se por uma “nova maneira de sentir e de pensar”, e poderíamos dizer “de viver, de afirmar”, se constitui agonisticamente? Nietzsche não assistiu ao terror dos totalitarismos, não viveu para assistir às duas Grandes Guerras Mundiais, não acompanhou o predomínio e expansão do homem-massa no pós-guerra, homem-massa hoje transfigurado no escravo digital... Nietzsche não assistiu ao avanço do fascismo histórico, como também não pôde pensar seu além-do-homem contra o que Reich chama de “peste fascista” “uma certa concepção de vida e uma atitude perante o homem, o amor e o trabalho”. O fascismo como estrutura do caráter, da personalidade do animal humano que continua entre nós, que continua a ameaçar não só nosso modo de vida democrático liberal, mas a própria vida em geral. Reich disse que “o fascismo é a atitude emocional básica do homem oprimido da civilização autoritária da máquina, com sua maneira mística e mecanicista de encarar a vida”. Como pensar o além-do-homem como horizonte de autossuperação do homem autoritário, do tipo humano fascista, que persiste entre nós? Enfim, o além-do-homem é um dos mais significativos legados filosóficos de Nietzsche, uma categoria trans-histórica, atemporal que nos permite pensar a necessidade de autossuperação das formas-homem historicamente constituídas como formas infestadas da negatividade, do ódio contra a vida, contra a diferença, contra a diversidade. Mas que fique bem claro: o além-do-homem é sempre pensado no registro do individual, não no da coletividade. Não caracteriza o homem em geral (abstrato), mas cada indivíduo humano. Pensar o além-do-homem é pensá-lo no campo de forças que é o mundo, onde ele se afirma em combate com outros tipos humanos hegemônicos. Entre nós hoje, o campo agonístico tem cada vez mais sido disputado e ocupado pelos tipos humanos da política ressentida, que reanimam e querem impor os valores decadentes forjados no imaginário-simbólico cristão e ultraconservador. Esses tipos e grupos humanos querem reativar a absolutidade dos sentidos e valores dessa tradição, querem nos fazer funcionários da servidão moral contra a qual há mais de um século se insurgiu Nietzsche. Aqui como em outras partes do mundo, a libertação niilista ainda não encontrou terreno para prosperar e dar frutos. O Brasil é hoje como o tem sido em sua relativamente curta história tão espiritual quanto social, política, economicamente atrasado.





A Lucidez niilista: é possível ser niilista sem ser decadente?

 

Não obstante ter Nietzsche entendido o niilismo como a lógica da decadência, o niilismo, em Nietzsche, não se reduz ao anúncio da morte de Deus. A teorização nietzscheana do niilismo se desenvolve por muitos trajetos, abre-nos diversos caminhos semânticos. O fenômeno do niilismo em Nietzsche é polimórfico (há diversas variantes do niilismo) e polissêmico ( há vários temas a ele associados). No registro do anúncio da morte de Deus, o niilismo se revela como uma experiência do Nada como abismo sem fundo dos valores superiores que até então davam sentido e sustentação à existência do homem ocidental. O niilismo é, nesse contexto de problematização, a lógica do movimento agonizante dos nossos valores superiores. Mas Nietzsche não para por aí: é preciso levar o niilismo até suas últimas consequências lógicas. É necessário completar a travessia do niilismo. Enquanto o homem se ressente da derrocada dos valores superiores que o Deus cristão representava, ele ainda vive mortificado, enfraquecido por um niilismo incompleto. É preciso superar este estágio do niilismo do cansaço, da fraqueza, da vontade de nada, para transfigurá-lo na forma de “pensamento divino”, portanto, na condição necessária para a criação de novos valores afirmativos, de um novo imaginário-simbólico à luz do qual a vida se posiciona como valor supremo e o homem se reconhece como verdadeiro criador. Vattimo tanto quanto Giacoia nos lembram que o niilismo, em Nietzsche, tem caráter ambíguo. Ele tanto pode significar uma síndrome de declínio, a experiência do cansaço da vida, quanto pode ser uma potência ascendente do espírito. Meu esforço teórico consiste em inscrever o niilismo como parte do projeto nietzscheano de desmitificação do homem e de transvaloração dos valores que o tornaram um animal doente, esgotado e habituado ao autoengano. Não é o niilismo que deve ser superado, mas suas formas decadentes. Porque, se tudo que há são vontades de potência em relações agonísticas, também o niilismo é um campo agonístico de vontades de potência. A forma assumida pelo niilismo dependerá do predomínio da qualidade das forças em combate em seu interior. No Ocidente, por força da hegemonia do sistema de interpretação moral-religioso que é o Cristianismo, predominaram no niilismo entre nós as vontades de poder decadentes, negadoras. Nós vivenciamos o Nada como déficit de ser, como vazio de sentido, como aniquilação, como perda de esteios valorativos, como ausência de sentido, experiência muito diferente que têm os orientais do Nada e do Vazio. Se o niilismo é a lógica de um movimento histórico-cultural de desmoronamento, de derrocada dos valores superiores, de todo um imaginário-simbólico que dotava de sentido a vida humana, então o niilismo, entre nós, é o mais radical processo de desmitificação do homem. É esta a tarefa do niilismo ativo em Nietzsche: desmitificar, desilusionar. Mas este trabalho não se faz senão como uma guerra não apenas contra os valores e sentidos postos a serviço da negação da vida, mas também contra as forças reativas da vontade de nada que ainda persistem no interior do niilismo. Como ensina Vattimo:

“ Se (...) o niilismo tem a coragem de aceitar que Deus está morto, ou seja, que não existem estruturas objetivas dadas, torna-se ativo em pelo menos dois sentidos: antes de tudo, não se limita a desmascarar o nada que está na base de significados, estruturas, valores; produz e cria, também, novos valores e novas estruturas de sentido, novas interpretações. É só o niilismo passivo que diz que não há nenhuma necessidade de fins e significados”.

Longe de ser o deserto do pensamento, o seu veneno e impedimento, o niilismo é a condição sine qua non do pensamento, porque pensar é desmascarar as supostas certezas, é corroer as empedernidas crenças e convicções insuspeitas, é derribar os alicerces do que julgamos saber, daquilo que tomamos por verdades inabaláveis. Por isso, todo pensamento, se se pretende radical, é pensamento niilizante.





      A VONTADE ASCETA E A DÉCADENCE

 

Vista à luz do conceito de DÉCADENCE, a aproximação que Nietzsche faz entre Sócrates-Platão e o Cristianismo, permite-nos inferir dentre os dois termos dessa aproximação, o traço que lhes é comum: a vontade ascética, a qual se expressa de modo paradigmático na figura do sacerdote asceta, como nos patenteia Nietzsche em GENEALOGIA DA MORAL. O sacerdote asceta é a formação típica da vontade de potência infestada pelo negativo. Ela se configura paradoxalmente na medida em que transforma a negatividade que a constitui em condição de triunfo e conservação da existência. Como fenômeno da DÉCADENCE, a vontade ascética só pode afirmar-se e dominar aniquilando aquilo a que se contrapõe, a saber, a natureza, a vida. Por isso, Nietzsche via o ascetismo como a expressão histórica de antinatureza. Para ele, na interpretação ascética de mundo e da vida, domina a vontade de poder do sacerdote ascético e sua perspectiva valorativa em face da vida e de tudo quanto integra a vida dos homens, a natureza, o mundo, o devir.

 

 

“A esfera inteira do vir-a-ser e da transitoriedade é posta em referência a uma existência outra, com a qual ela está em relação de oposição e exclusão, a não ser que eventualmente se volte contra si própria, negue a si mesma: neste caso, no caso de uma vida ascética, a vida vale como uma ponte para aquela outra existência... Uma tal monstruosa maneira de valorar não está inscrita como um caso de exceção e curiosidade na história do homem: É UM DOS MAIS AMPLOS E LONGOS FATOS QUE HÁ. Lida a partir de um astro longíquo, essa escrita em maiúscula de nossa existência terrestre induziria talvez à conclusão de que A TERRA É PROPRIAMENTE A ESTRELA ASCÉTICA, UM RINCÃO DE CRIATURAS DESCONTENTES, PRESUNÇOSAS E REPUGNANTES, QUE DE UM PROFUNDO FASTIO POR SI, PELA TERRA, POR TODA VIDA, NÃO SE DESVENCILHARIAM NUNCA E A SI PRÓPRIAS FARIAM TANTO MAL QUANTO POSSÍVEL, PELO CONTENTAMENTO DE FAZER MAL: PROVAVELMENTE SEU ÚNICO CONTENTAMENTO. (...)”

(Genealogia da Moral, III, § 11)





Como muito perspicaz e apropriadamente nos lembra Byung-Chul Han, “quanto mais poderoso for o poder, mais SILENCIOSAMENTE ele atua. Onde precise dar mostras de si, é porque já está enfraquecido”. Decerto, os poderes nos constituem, nos atravessam, moldam nossos hábitos, nossos gostos, constituem nossos discursos, nosso modo de ser social, e o fazem de modo a que não percebamos sua ação sobre nós. Surpreender os poderes lá onde eles operam silenciosamente, com disfarces e máscaras, é a condição para a formação de homens e mulheres deveras emancipados e livres.




Do lamento à resistência

 

É lamentável, é revoltante que nós, professores, amarguemos salários tão baixos que, associados à precarização das condições de trabalho da categoria, nos desestimulam ao mesmo tempo que nos coagem a aceitar qualquer coisa por necessidades de subsistência. Enquanto padecemos as agruras da falta de um projeto político-desenvolvimentista-educacional no Brasil, carência que é um problema crônico de nossa história social e política, vigora ainda no imaginário social o cinismo da romantização do magistério, o cinismo das ideias, das representações coletivas da Educação e do professor como a atividade mais nobre e como o agente social e político mais admirável de uma “Pátria amada” que o maltrata, que os põe à margem das preocupações de um sistema político que atende aos interesses mercadológicos do capital financeiro. Chegamos ao ponto de sermos perseguidos por defendermos política e pedagogicamente os interesses dos oprimidos, por lembrarmos a obra de Paulo Freire, de Darcy Ribeiro, por nos posicionarmos firmemente contra uma racionalidade neoliberal que estende a lógica do mercado para muito além das fronteiras do mercado, produzindo subjetividades contábeis por meio do estímulo da concorrência contínua entre os indivíduos. Se nos posicionamos contrariamente a essa racionalidade neoliberal cuja característica principal é a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação, se nos recusamos a aceitar passivamente as condições socioeconômicas impostas por um sistema econômico (o capitalismo) que a tudo transforma em mercadoria de consumo, que estende a lógica do capital a todas as esferas da vida social, somos tachados pelas vozes da estultícia e do autoritarismo estrutural de “esquerdistas”, “comunistas”, “esquerdopatas”, embora seja o “páthos” da paranoia, do delírio que alimente os discursos beligerantes dos militantes da irracionalidade, da desrazão, da política como máquina de produção de guerra e de morte. Se não nos curvamos a essas vozes da intolerância, a essas vozes reacionárias que reduzem a complexidade do real aos limites estreitos de sua insanidade perversa, enquanto não cedemos aos seus gritos, ao seu ódio que em tudo inocula veneno, aos tentáculos de sua burrice, à violência de seu obscurantismo, é que compreendemos o que significa verdadeiramente a Educação: uma prática de resistência! Educadores são, portanto, agentes da resistência contra os poderes instituídos que oprimem, que coagem, que escravizam, que querem fazer calar as vozes daqueles que são forçados a viver às sombras, à margem.



                                                        



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