A NOSSA VÃ FILOSOFIA
“A filosofia não tem o poder de
desesperar a humanidade”.
Estou de acordo.
Veyne pensa aqui o contrário do que pensa Deleuze sobre o papel da filosofia:
uma filosofia que não desespera, que não entristece, perde sua razão de ser.
Mas está bem. Veyne o diz no contexto em que considera a inquietação e o receio
daqueles que viam em Nietzsche e em Foucault uma ameaça à inocência da
juventude, que ainda se nutria do ideal revolucionário (à época de Foucault,
evidentemente; hoje em dia, a juventude está mais preocupada em saber como se
tornar uma celebridade de tik-tok ou de saber como pode se tornar um youtuber
milionário).
Mas aqui insisto em
que a filosofia parece ter um impacto ínfimo no modo de ser das coletividades
humanas. Com ou sem filosofia, o mundo passaria bem ou mal... o mundo, de
qualquer modo, levaria adiante sua marcha insensata em direção ao túmulo... Não
quero parecer subestimar a influência das ideias sobre os modos de ser e sobre
as mentalidades de uma época. Sim, Aristóteles moldou a visão de mundo
dominante durante toda a Idade Média cristã, Descartes (e Newton) moldou a
visão de mundo e do homem até o fim do século passado (a visão mecanicista de
mundo fez escola). E não faltam exemplos de como o pensamento filosófico
influencia os modos de ser e viver de uma época. Mas, em todo caso, não é a
filosofia sozinha que causa as transformações; são necessárias, principalmente,
mudanças no modo de organização socioeconômica e política, é necessário o
desenvolvimento tecnológico, etc... Como diz Bachelard, o mundo em que se pensa
não é o mundo em que se vive. Querem um exemplo? Veyne afirma que o páthos
niilista que Nietzsche soube entrever parece incendiar mais a oratória do que a
realidade. Niilismo? Quando me perguntam sobre o que versa minha pesquisa de
doutoramento, a resposta que dou - “niilismo” - causa na face de meu
interlocutor a mesma incompreensão e surpresa de quem ouve alguém falar que se
interessa por “física quântica”. Para a maioria esmagadora dos animais humanos,
“ o mais sinistro de todos os hóspedes” é tão invisível, misterioso; está tão distante
- talvez não passe de um viajante que se perdeu vindo não sabemos de onde -
quanto o espectro do comunismo que Marx dizia rondar a Europa de seu tempo.
Acho que, em parte,
a filosofia, pelo menos desde Platão e Aristóteles, contribuiu para o seu ostracismo
no viver comum, não porque tratasse, algumas vezes, de assuntos demasiado
afastados da lida diária com a vida (talvez não só por isso), mas porque nos
inculcou a crença ilusória de que a razão no homem era a sua parte mais
elevada, o sinal do divino nele, que a filosofia se encarregaria de exercitar,
para dignificá-lo, para torná-lo avizinhado com o próprio Deus (não o Deus
cristão - fique claro -, que não aprecia concorrência) e tivemos de esperar um
Nietzsche (sempre ele) para nos dizer que a nossa grande Razão não é mais do
que um instrumento a serviço da sobrevivência da espécie... e a biologia , a
paleontologia posteriormente viriam a dar razão a Nietzsche... nosso tão
complexo e maravilhoso cérebro símio não foi projetado para elevadas elucubrações,
para exaustivas ruminações espirituais... (claro que nosso cérebro é dotado de
uma plasticidade impressionante, de uma capacidade incrível para desenvolver
novos conhecimentos e habilidades; claro que ele é, em última instância, o
criador do mundo humano, da cultura, da linguagem, da filosofia, da ciência,
das artes, de tudo de que tanto se orgulha o macaco pelado que o carrega), mas
este cérebro humano precisa de estímulos, de um meio ambiente rico de
possibilidades criativas, de desafios, de uma paidéia para poder se
desenvolver, sob pena de atrofiar-se, de adoecer, de ficar esclerosado e
limitado ao que é: um pedaço esponjoso de carne... Aristóteles parece ter
errado, ou melhor, parece ter superestimado a natureza humana, portanto, quando
disse que somos naturalmente dispostos ao conhecimento teorético, à epistéme
(ciência)... a filosofia não nos é conatural... no mais profundo de nós, ainda
reside um caçador-coletor obstinado em garantir os recursos necessários à sua
sobrevivência e não um Tales de Mileto interrogando-se sobre o primeiro
princípio do Cosmo - aquele, por sinal, teria caído num poço enquanto,
distraído caminhando olhava para o céu...( e parece que a maioria dos macacos
pelados decidiu acolher a advertência da mulher de Trácia que troçou da
imprudência do grande filósofo, enquanto ainda hoje riem da pavonice dele).
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