sábado, 18 de setembro de 2021

“A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade”. ( Paul Veyne)




A NOSSA VÃ FILOSOFIA


“A filosofia não tem o poder de desesperar a humanidade”.

 Paul Veyne

 

 

Estou de acordo. Veyne pensa aqui o contrário do que pensa Deleuze sobre o papel da filosofia: uma filosofia que não desespera, que não entristece, perde sua razão de ser. Mas está bem. Veyne o diz no contexto em que considera a inquietação e o receio daqueles que viam em Nietzsche e em Foucault uma ameaça à inocência da juventude, que ainda se nutria do ideal revolucionário (à época de Foucault, evidentemente; hoje em dia, a juventude está mais preocupada em saber como se tornar uma celebridade de tik-tok ou de saber como pode se tornar um youtuber milionário).

Mas aqui insisto em que a filosofia parece ter um impacto ínfimo no modo de ser das coletividades humanas. Com ou sem filosofia, o mundo passaria bem ou mal... o mundo, de qualquer modo, levaria adiante sua marcha insensata em direção ao túmulo... Não quero parecer subestimar a influência das ideias sobre os modos de ser e sobre as mentalidades de uma época. Sim, Aristóteles moldou a visão de mundo dominante durante toda a Idade Média cristã, Descartes (e Newton) moldou a visão de mundo e do homem até o fim do século passado (a visão mecanicista de mundo fez escola). E não faltam exemplos de como o pensamento filosófico influencia os modos de ser e viver de uma época. Mas, em todo caso, não é a filosofia sozinha que causa as transformações; são necessárias, principalmente, mudanças no modo de organização socioeconômica e política, é necessário o desenvolvimento tecnológico, etc... Como diz Bachelard, o mundo em que se pensa não é o mundo em que se vive. Querem um exemplo? Veyne afirma que o páthos niilista que Nietzsche soube entrever parece incendiar mais a oratória do que a realidade. Niilismo? Quando me perguntam sobre o que versa minha pesquisa de doutoramento, a resposta que dou - “niilismo” - causa na face de meu interlocutor a mesma incompreensão e surpresa de quem ouve alguém falar que se interessa por “física quântica”. Para a maioria esmagadora dos animais humanos, “ o mais sinistro de todos os hóspedes” é tão invisível, misterioso; está tão distante - talvez não passe de um viajante que se perdeu vindo não sabemos de onde - quanto o espectro do comunismo que Marx dizia rondar a Europa de seu tempo.

Acho que, em parte, a filosofia, pelo menos desde Platão e Aristóteles, contribuiu para o seu ostracismo no viver comum, não porque tratasse, algumas vezes, de assuntos demasiado afastados da lida diária com a vida (talvez não só por isso), mas porque nos inculcou a crença ilusória de que a razão no homem era a sua parte mais elevada, o sinal do divino nele, que a filosofia se encarregaria de exercitar, para dignificá-lo, para torná-lo avizinhado com o próprio Deus (não o Deus cristão - fique claro -, que não aprecia concorrência) e tivemos de esperar um Nietzsche (sempre ele) para nos dizer que a nossa grande Razão não é mais do que um instrumento a serviço da sobrevivência da espécie... e a biologia , a paleontologia posteriormente viriam a dar razão a Nietzsche... nosso tão complexo e maravilhoso cérebro símio não foi projetado para elevadas elucubrações, para exaustivas ruminações espirituais... (claro que nosso cérebro é dotado de uma plasticidade impressionante, de uma capacidade incrível para desenvolver novos conhecimentos e habilidades; claro que ele é, em última instância, o criador do mundo humano, da cultura, da linguagem, da filosofia, da ciência, das artes, de tudo de que tanto se orgulha o macaco pelado que o carrega), mas este cérebro humano precisa de estímulos, de um meio ambiente rico de possibilidades criativas, de desafios, de uma paidéia para poder se desenvolver, sob pena de atrofiar-se, de adoecer, de ficar esclerosado e limitado ao que é: um pedaço esponjoso de carne... Aristóteles parece ter errado, ou melhor, parece ter superestimado a natureza humana, portanto, quando disse que somos naturalmente dispostos ao conhecimento teorético, à epistéme (ciência)... a filosofia não nos é conatural... no mais profundo de nós, ainda reside um caçador-coletor obstinado em garantir os recursos necessários à sua sobrevivência e não um Tales de Mileto interrogando-se sobre o primeiro princípio do Cosmo - aquele, por sinal, teria caído num poço enquanto, distraído caminhando olhava para o céu...( e parece que a maioria dos macacos pelados decidiu acolher a advertência da mulher de Trácia que troçou da imprudência do grande filósofo, enquanto ainda hoje riem da pavonice dele.

 


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