quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Não tenho um discurso bonitinho, apenas uma idéia do que seja este mundo que ainda não entendo." (Hiago Rodrigues Reis de Queirós)



                           



                                                O que é Deus?
                         Uma análise crítica da teologia cristã

Dedicando muitas horas do cotidiano ao convívio com os livros, procuro trafegar espiritualmente por vastas avenidas de saberes conflitantes. Procuro tomar cuidado para não aderir tenazmente a uma única perspectiva; esforço-me por conhecer suas concorrentes. Em poucas palavras, preocupo-me em não me posicionar dogmaticamente. Por isso, estou ciente das críticas ventiladas por personalidades que, não sendo necessariamente religiosos ou crentes em Deus, martelam na tendência de o movimento do neoateísmo assumir uma postura tão dogmática quanto as atitudes que visa a atacar. Também não me escapa à consciência o fato de esse novo ateísmo, restituindo a confiabilidade nas promessas das Luzes, tomar a ciência como um modelo de explicação do mundo suficientemente capaz de satisfazer nossas inquietações mais profundas. Não sejamos ingênuos. A ciência está longe de oferecer uma teoria total. Não importa, para a grande maioria das pessoas, o que digam os cientistas sobre como surgiu o Universo, de onde viemos e para onde não vamos. A questão do significado transcendente de nossa existência ainda permanecerá e, provavelmente, nunca será extirpada. A autotranscendência, ou seja, a capacidade de ir além da herança biológica ou de superar-se a si mesmo é uma qualidade especificamente humana, já largamente reconhecida.

“Uma das constantes do comportamento humano é a de superar e transcender sistematicamente o comportamento dos animais: o homem sobrepuja os animais no pensamento, na liberdade, no trabalho, na palavra, na diversão, na técnica e em tantas outras coisas”.

                     (Mondim, B. Introdução à filosofia, 2009, p. 74)

Questões como “quem eu sou?”, “como foi que o universo/ mundo passou a existir?”, “o que acontecerá quando eu morrer?” tocam-nos no íntimo, onde a ciência não consegue penetrar. Atento a essa exacerbação dos que apelam para a ciência a fim de recusar as crenças religiosas, estou à procura do livro “Por que a ciência não consegue enterrar Deus?”, do matemático britânico e cristão John C. Lennox, que participou de um debate com Richard Dawkins sobre o livro Deus, um delírio (v. http://www.youtube.com/watch?v=-LNwek-UmlY).
Neste momento, pensamentos que, para muitos poderiam parecer angustiantes, visitam-me a mente. Deveria eu acolher o conselho, que se depreende da seguinte passagem, em A negação da morte (2012):

“Eu acredito que têm razão, absoluta razão, aqueles que acham que uma plena compreensão da condição humana levaria à loucura. De vez em quando, nascem crianças com guelras e caudas, mas isso não é divulgado – ao contrário, é abafado ao máximo. Quem é que quer enfrentar plenamente com coragem  a criatura que nós somos, que tem de usar suas garras e luta pelo ar que respira num universo além do seu entendimento”.
(p. 49)

Tais pensamentos sugerem-me a possibilidade de, após a morte, não haver outra vida. Talvez, o universo nunca tenha sido criado, porque eterno. Talvez, a vida, tal como a conhecemos, seja um evento extraordinário e singular. Talvez, nunca se repita, quando nosso planeta for dizimado por qualquer evento cataclísmico. Da morte o que sabemos é que o morto não revive. A pessoa, o indivíduo não existe mais; na morte, passamos ao estado inorgânico. Só conhecemos a morte sob o aspecto da aparência. O que vemos num caixão é um cadáver, um corpo inanimado, um corpo destinado a apodrecer e a ser consumido por vermes. A morte reduz toda a nossa vida a um esqueleto estirado num caixão – o complexo de ossos que será, posteriormente, exumado. De um embrião a cinzas, eis os estados a que a vida consciente pode ser reduzida.
Uma vez decididos a enfrentar essa verdade que decorre de nossa consciência de seres destinados, desde o nascimento, à morte, teremos de construir um propósito para a vida nela mesma e não para além dela. Teremos de reconhecer que esse ‘eu’ singular que se representa em nossa consciência (e que pode ser identificado com ela) como uma alma habitando um corpo (embora a neurociência e a psicologia evolutiva o neguem), não é eterno; ele morre no momento em que o cérebro deixa de funcionar. A morte do cérebro é a morte do ‘eu’, desse ‘eu’ (auto)consciente, detentor de vontade e desejo, movido por paixões e emoção. Este que diz ‘eu sou’ deixará de existir e não voltará a existir, porque a vida é um fenômeno irrepetível ou não-renovável.
Eu não poderia afirmar categoricamente não haver uma realidade além-túmulo. Na verdade, a perspectiva de nossa condição como seres conscientes e mortais, como a que expus no parágrafo precedente, é uma verdade enquanto estamos vivos. Evidentemente, a ciência não pode ir além da constatação de que a morte significa o fim da vida. Um enunciado como “Há vida após a morte” não pode ser avaliado em termos científicos, porque não é falsificável. Devemos a Karl Popper esta compreensão epistemológica da natureza de uma teoria científica. Pelo critério de falsificabilidade, uma teoria é científica se for falsificável, ou seja, se for passível de ser desmentida, ou se ainda não tiver sido provada como falsa. Assim, toda teoria que recebe a qualificação de científica tem de ser refutável; caso contrário, não poderá ser considerada de natureza científica. Disso se segue que, da mesma forma que um enunciado como “Há vida após a morte” não constitui uma hipótese científica, um enunciado como “Deus existe” também não o é, porque cada qual encerra uma proposição não-falsificável.
E se a morte assemelhar-se ao despertar de um sonho? E se esta vida não passar de um longo sonho, nem sempre agradável? Para milhares de pessoas, certamente, um pesadelo. Se a realidade que tocamos, vemos, escutamos – se o mundo tal como o percebemos e interpretamos - , não passar de um simulacro, uma projeção distorcida ou ilusória de uma realidade verdadeira e essencial? Ouço o eco de Platão em minha alma!
Tendo ponderado sobre a inconveniência de tentar valer-se de um neocientificismo para rejeitar toda interpretação metafísica da realidade, posso agora me ocupar do tema deste texto. Estou interessado em avaliar como o Deus judaico-cristão é pensado no discurso teológico. Para tanto, vou me basear no capítulo Deus do livro Teologia – os fundamentos, de McGrath (2004). Como ateu, nego a existência de divindades, incluindo entre elas o Deus inventado por um povo que vivera num tempo remoto na região do Mediterrâneo (Oriente Médio). Espero que, ao cabo de minha exposição, o leitor se aperceba de que, na realidade, o que eu rejeito não é senão uma dada representação de Deus. Deus, aliás como tudo o mais a que nos referimos pela linguagem, é um objeto de discurso. Portanto, a representação de Deus é resultado de uma construção discursiva. Nenhum discurso espelha o mundo tal como é; mas o reconstrói segundo determinada perspectiva, segundo determinados valores e crenças de um sujeito sócio-historicamente determinado. Classicamente, por representação entende-se o ato de re-apresentar ao espírito alguma coisa. Trata-se de um registro simbólico (ideia, imagem) de um objeto que existe fora de nós. No domínio discursivo teológico, pode-se falar de representação de Deus, pois que se supõe a sua existência fora de nós, ou melhor ainda, para além de nós. Entretanto, para um descrente, talvez, o termo mais adequado fosse abstração. Abstrair é isolar, separar elementos que, na experiência, se apresentam como indissociáveis. Para Aristóteles, a abstração é o próprio ato de conhecer, pelo qual isolamos o que há de generalidade nas coisas. Assim, quando falamos no “ser humano”, referimo-nos ao gênero humano, ignorando que o gênero (ou espécie) humano é constituído de indivíduos singulares e muito diferentes entre si. Há um sentido muito comum no qual usamos a palavra abstração, que parece adequado na consideração do problema Deus. Abstração pode designar uma ideia demasiado pura, metafísica, desprovida de um referente no mundo. Para evitar a visão realista e ingênua da relação entre linguagem e mundo, melhor será dizer que os referentes só têm valor para a compreensão dos “jogos de linguagem” como objetos de discurso, que são construídos, modificados, expandidos, delimitados, etc., no discurso. Eles constituem entidades resultantes de uma construção mental.
Meus objetivos são:

1o – Mostrar que as construções imagéticas que a tradição teológica cristã faz de Deus têm raízes em uma dada tradição religiosa;

2o – Patentear como algumas questões teológicas não passam de pseudoquestões;

3o – Evidenciar que a necessidade de uma teorização sobre Deus (teologia) serviu para o estabelecimento de uma Igreja forte e de uma fé que pudesse beneficiar-se da razão, tornando-a, contudo, ancilar, e que isso favoreceu a consolidação de um sistema de conceitos e crenças que serve (e vem servindo) à sustentação de relações de dominação.

Claro me parece que o teólogo não se pretende um cientista. No entanto, seus estudos são desenvolvidos na base do pressuposto da existência de Deus. Creio que assim o é para a maioria dos teólogos. Há, portanto, um objeto teórico delimitável, cuja existência é assumida por princípio.
O autor inicia o capítulo buscando identificar o Deus cuja representação tratará de explorar. Esse Deus é o que se revelou aos profetas do Antigo Testamento. É o Deus de Israel, o Deus que estabeleceu uma aliança com o seu povo – os hebreus. É o Deus de Abraão, de Moisés, de Isaac e de Jacó. É também o Deus em que creem os cristãos. É o Deus que se manifestou na pessoa de Jesus Cristo. A novidade cristã consiste em acreditar que esse Deus se revelou de maneira definitiva em Cristo, de modo que falar em Cristo é falar em Deus.
Observa ainda o autor que abunda o uso de analogias, em teologia. Na Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, Deus é representado como pastor, rei, rocha, etc. No Antigo Testamento, a metáfora de pastor de que se reveste a noção de Deus se acha em Isaías 40, 11 e em Ezequiel 34. 12, por exemplo. No Novo Testamento, encontraremo-la em João 10, 11, onde se acha uma referência a Jesus como “o bom pastor” (“Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá sua vida pelas ovelhas”). Também no primeiro versículo do salmo 23 – “O Senhor é o meu pastor” – vemos a representação de Deus como pastor.
Para os judeus, considerar a Deus como pastor significa crer que Deus está totalmente comprometido com Israel e com a Igreja. Os primeiros cristãos, na medida em que pregavam a crença num Deus que se universalizava; portanto em um Deus que, se revelando em Cristo, sacrifica-se para a salvação da humanidade, entenderam a metáfora do pastor como uma forma de representar aquele que conduz o rebanho, zelando por ele de tal sorte, que arrisca a própria vida para protegê-lo. O bom pastor foi identificado com a figura de Cristo.
Interessa-me chamar a atenção para o fato de que, nessa imagem de Deus ou Cristo como pastor, há um mecanismo discursivo na base do qual se fundou uma moral do rebanho. Trata-se de uma estratégia discursiva, que, incansavelmente reiterada nas prédicas religiosas, molda a consciência de dependência, tão comum à maioria dos religiosos, mormente daqueles provenientes das classes populares, aos quais, em nosso país, é negado o benefício do letramento e da escolarização plena e satisfatória. Convém atentar para o seguinte trecho:

“(...) pensar em Deus como pastor significa afirmar que Deus nos guia. O pastor sabe onde se encontram o alimento e a agia, e guia o rebanho até onde esses bens se encontram. Comparar Deus com um pastor é mostrar a constante presença de Deus em Israel e na Igreja: é afirmar o desvelo de Deus para nos proteger dos perigos que a vida nos traz e para nos conduzir a um lugar de fartura e segurança. Deus “guarda seu rebanho como um pastor, toma os cordeirinhos em seus braços e os conduz no colo bem junto do coração, e conduz com carinho as ovelhas que têm crias” (Is 40, 11)”.

(p. 54)
(grifo meu)

Esse trecho nos suscita vários questionamentos. O primeiro deles diz respeito à crença em que Deus está verdadeiramente interessado na proteção de cada um de nós, que somos suas “ovelhas”. As ocorrências do mundo confinam essa crença ao imaginário da criança que reside na consciência dos que delegam às autoridades da fé o poder de interpretar o mundo por eles. Como bem nos ensina Marcelo Da Luz, a esse respeito:

“(...) O sentimento de radical dependência de outrem se expressa em variadas formas. Nas tradições monoteístas, por exemplo, todos os crentes se reportam à ideia do ser onipotente, onisciente e onipresente, origem e princípio de todas as coisas, cuja vontade é suprema em todo o Universo: “Deus” (embora essa ideia receba não apenas diferentes nomes, mas diferentes explicações dentro do judaísmo, cristianismo e islamismo; definitivamente, essas tradições não podem estar falando do mesmo ser supremo, embora os assessores teológicos do diálogo inter-religioso insistam no contrário)”.
(p. 77)
(Onde a religião termina: 2011)

Na mesma obra, o autor explicará a obediência aos “funcionários do sagrado” em termos de “terceirização das escolhas existenciais” (Da Luz, 2011). Leiamos com atenção este passo:

“Na língua portuguesa, o verbo terceirizar indica, no campo administrativo, a ação efetuada pelas empresas de transferir algumas atividades e serviços para outras organizações, a fim de diminuir custos, economizar recursos, desburocratizar estruturas e atingir mais rápida e eficazmente as metas estabelecidas. Na presente abordagem, o mesmo verbo vem utilizado metaforicamente, a fim de indicar uma das atitudes mais características da vivência religiosa, qual seja, a assunção da obediência aos funcionários do sagrado – sacerdotes, pastores, sheiks, rabinos, médiuns e gurus de todos os tipos. O fiel religioso transfere a essas figuras de autoridade a responsabilidade de interpretar a própria vida, à luz de regras estabelecidas pela suprema instância de terceirização: a ideia de “Deus” (ou deuses), em que se encontram, supostamente, todas as respostas e desígnios do Universo”.
(p. 71)
(grifo meu)

A presente passagem merece alguns comentários. A fim de ilustrar a validade da compreensão do autor acerca de como os religiosos buscam em terceiros formas de interpretar suas próprias vivências, basta que pensemos na pessoa que agradece ao pastor ou sacerdote, a quem ela atribui o papel de ministro ou intermediário de Deus (no caso do sacerdote, também a ele associa-se a qualidade de santidade), o fato de ter conseguido um emprego, ou, no caso de um jovem adolescente, de ter conseguido passar no vestibular. Num e noutro caso, a conquista foi uma graça de Deus, e nada ou pouco tem a ver com o esforço pessoal, ou com as condições político-econômicas favoráveis num dado período de crescimento de seu país.
Sempre achei muito suspeita a metáfora do “rebanho de ovelhas”. Vale notar que a figura do pastor de ovelhas era muito comum na cultura da palestina. Segundo MacGrath, o pastor, porque tinha de dedicar muito tempo ao cuidado com suas ovelhas, era um indivíduo muito marginalizado, não podendo participar das atividades sociais.
À luz da desconstrução da ideologia do rebanho de ovelhas produzida nas condições sócio-culturais e políticas da palestina do século I d.C., não parece difícil compreender o verdadeiro significado da ideia de que somos “ovelhas que teimam em desgarrar-se”. As ovelhas desgarradas são as ovelhas insubmissas, insubordinadas (hereges). São justamente aquelas que se rebelaram contra as condições de submissão em que viviam. Ainda no livro de MacGrath, podemos ler, nesse tocante, o seguinte:

“(...) a imagem de Deus como pastor fala-nos de nós mesmos, do ponto de vista cristão. Somos o rebanho das pastagens de Deus (Sl 79, 13; 95, 7; 100, 3). Somos ovelhas sem capacidade de cuidar de nós mesmas, continuamente nos desgarrando. Não somos auto-suficientes, precisamos aprender a depender de Deus como as ovelhas dependem inteiramente do pastor para a sua existência. Podemos ter vontade de pensar que podemos cuidar de nós mesmos, mas o modo cristão de compreender a natureza humana exige que reconheçamos nossa total dependência de Deus. Assim, a condição de pecado inerente ao ser humano é comparada muitas vezes com o afastamento de Deus, como o desgarramento de uma ovelha: “Como ovelhas, estávamos todos perdidos, cada qual ia em frente por seu caminho” (Is 53, 6; cf. Sl 119, 176; 1Pd 2, 25).”

(p. 54)
(grifo meu)

Esse trecho abriga vários elementos importantes na formação de uma consciência religiosa caracteristicamente dependente e submissa, por meio da doutrinação. Há pouco, falava do papel do discurso na construção de modelos de mundo, ou seja, o homem compreende o mundo e atua sobre ele através de suas práticas discursivas, que constituem uma etapa entre outras práticas sociais. Todo discurso é uma prática social dentre outras. O discurso não espelha a realidade, mas a reconstrói, fabrica um modelo de realidade, segundo a perspectiva de sujeitos situados historicamente, determinados, em alguma medida, ideologicamente. Tendo em conta isso, é extremamente importante que o leitor atente para as construções simbólicas de mundo nesse excerto. Destaquei algumas palavras e expressões, a fim de que a análise que farei esteja bem situada ou ancorada no texto.
Em primeiro lugar, veja-se como a natureza humana é representada. Note-se que salientei a expressão “do ponto de vista cristão” (que, em Linguística Textual, é um operador discursivo de domínio, ou seja, um recurso linguístico que sinaliza a perspectiva ideológica ou teórica em que um enunciado deve ser compreendido). No caso em tela, o operador discursivo sinaliza a perspectiva de uma doutrina específica e de toda uma comunidade que adere a ela. Então, segundo essa doutrina, tendo assumido Deus como pastor, assume-se toda a humanidade como seu rebanho. O rebanho deve obediência ao pastor. Chamo atenção, de passagem, para o fato de a ideia de ‘livre-arbítrio’ tornar-se, nesse modo de entender a relação entre Deus e o ser humano, dificultosamente sustentável. Um estudo aprofundado dos discursos teológicos, criteriosamente orientados na perspectiva de uma Análise do Discurso Crítica, nos permitiria trazer à tona uma série de inconsistências. Convém, no entanto, retomar a análise.
Uma prova de que a doutrina cristã é orientada para tornar seus adeptos indivíduos dependentes, desprovidos de autonomia crítico-intelectual é a passagem “precisamos aprender a depender de Deus”. Trata-se de um processo de ensino-aprendizagem (adestramento) voltado para a produção de indivíduos submissos; certamente contrário a qualquer concepção pedagógica moderna que se orienta pelo objetivo de promover a emancipação do estudante. O que vemos nas práticas religiosas, o que lemos em suas produções discursivas é um testemunho de ações orientadas por uma pedagogia da submissão irrestrita. É necessário “depender inteiramente de Deus”. O trecho a seguir, que recupero, a título de destaque, abaixo, é bastante claro:

“Podemos ter vontade de pensar que podemos cuidar de nós mesmos, mas o modo cristão de compreender a natureza humana exige que reconheçamos nossa total dependência de Deus”.

Toda religião oferece uma “teoria” da natureza humana. O cristianismo também tem a sua forma de entender a natureza humana. Na perspectiva cristã, a natureza humana é inteiramente dependente de Deus e pecadora, porque tende sempre a se afastar de Deus. A palavra desgarramento tem claramente um valor negativo no texto. Aqui, aproveito para chamar a atenção para o fato de que nenhuma palavra (nenhum signo) tem sentido fora do discurso. Sua significação é construída no interior do discurso, o que significa dizer que depende das circunstâncias de discurso, as quais compreendem os saberes supostos sobre os pontos de vistas dos atores sociais, bem como os saberes supostos acerca do mundo, implicados nas práticas sociais.
Claro está que num discurso em que a natureza humana é destituída de autonomia, é vinculada submissamente a um Outro transcendente, a palavra desgarramento só pode significar “insubordinação”, “rebelião”, “desobediência”; portanto, um ato depreciável, passível de correção. Raciocínios análogos podemos desenvolver a respeito da ocorrência das palavras “pastor” e “rebanho” (entre tantas outras), que significarão diferentemente, caso ocorram em outros domínios discursivos, por exemplo, na fala de um fazendeiro ou na de um antropólogo. Pensemos no uso da palavra “política”, num enunciado como “Isso tudo é política”, proferido por alguém que assiste pela televisão um político prometendo grandes realizações. Nesse caso, política significa “uma prática cínica”, uma prática que visa a enganar os segmentos populares. Uma discussão que pretendesse lançar luzes sobre essa questão demandaria um novo texto. Escuso-me de fazê-la aqui.
Já se desponta aqui os prelúdios de uma “moral de rebanho”. Viver moralmente é viver buscando a Deus, buscando seguir os ensinamentos da Igreja, que é depositária da Verdade Revelada, que constitui, senão, um ato de fé. O imoral, o pecador é aquele que se desvia do rebanho de Deus. Essa compreensão é confirmada na seguinte passagem de MacGrath:

“Em todas as essas analogias observamos a mesma ênfase da fé cristã: nós estamos desgarrados e Deus vem ao mundo em Jesus Cristo para nos reencontrar e trazer de volta para casa”.
(p. 54)

Outra metáfora associada a Deus é a do Pai. É interessante ver que o Deus judaico-cristão é um deus antropomórfico, porque representado com características humanas (amoroso, irado, justo, bondoso, ciumento, tirano, etc.). O autor justifica o largo uso das analogias com tipos humanos, no tratamento, ou melhor, na tentativa de definir a Deus, com o argumento segundo o qual “precisamos formar uma ideia de Deus como que em uma imagem de tamanho reduzido, apropriada à nossa capacidade humana” (p. 56), que se entende seriamente deficiente ou limitada. Recorre-se a analogias com elementos do universo humano, porque, segundo o autor, não há como termos acesso direto a Deus. É interessante pensar na relação entre a crença na inacessabilidade cognitiva a Deus, ou seja, a crença de que Deus é incognoscível, e a necessidade de manutenção da obediência dos religiosos, ou melhor, da formação de uma consciência de submissão. Se fosse dado aos religiosos saber que o ter acesso a uma compreensão de Deus depende apenas e exclusivamente de que eles reconheçam que Deus nada mais é do que produto da mente humana, que Deus é uma representação construída no longo curso de uma tradição milenar, eles, então, saberiam que o famigerado recurso a ideia de “inacessabilidade pela razão humana a Deus” é um estratagema de que se valeram as autoridades religiosas para mantê-los em estado de submissão. Uma vez invertida a relação que se depreende no enunciado, muito repetidamente martelado na consciência dos crentes - “o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus”-, compreende-se melhor que a inacessabilidade a Deus é, na verdade, decorrente do fato de os crentes leigos serem privados de uma compreensão clara das estratégias discursivas na base das quais essa inacessabilidade acaba por ser representada como impossibilidade humana de uma compreensão direta de Deus. A razão, contudo, pode compreender a Deus, no momento em que o desnudamos de sua vestimenta metafísica, desmanchamos o enredamento conceitual a que ele está preso, para, assim, vê-lo exposto como uma ideia pronta para ser analisada no seio do discurso, no interior do qual ela se conecta a outras ideias. Se reescrevêssemos o referido enunciado, de sorte a inverter a relação – “Deus foi criado à imagem e semelhança do homem” – a inacessabildade a Deus não é senão a impossibilidade de os crentes “contemplarem” o que está por detrás da construção imaginária de Deus. Tendo situado Deus, enquanto ideia ou conceito, no domínio da História, compreendido num dada conjuntura cultural, ficará claro entender como é possível a construção de discursos que visam a subordinar uma imensa parcela da humanidade a uma autoridade transcendente, a um Outro, por intermédio de pessoas que reivindicam para si o posto de porta-vozes de uma Verdade inquestionável.
MacGrath tratará, em outra seção da metáfora de Deus como Pai, bem como da ideia de Deus pessoal e de Deus como todo-poderoso. São temas que merecem uma apreciação cuidadosa, mas que será adiada para outra ocasião.
Percebi, na leitura do capítulo, certa seriedade no tratamento dos temas pelo autor. É claro que a teologia moderna também compreende o estudo das religiões em geral (não só do cristianismo) e de suas relações com os homens. Nesse sentido, trata-se de um domínio de conhecimento interessante. Mas as discussões calorosas, que engendraram disputas acirradas por poder nos primórdios da era cristã, a respeito da natureza de Jesus Cristo - se era ele divino e humano, ou se era ele apenas divino, ou se apenas o Cristo era divino, sendo Jesus um homem em que Cristo viveu por um tempo (crença da maioria dos gnósticos à época), não parecem ter maior interesse para nós modernos, já acostumados a ver o mundo a partir de uma ótica cientificista, exceto pelo fato de revelar um aspecto da história das ideias, ou de revelar como uma determinada classe dirigente (a dos Pais da Igreja nascente) desenvolvia e se apropriava de uma ideologia poderosa, cuja propagação resultaria, entre outras coisas, no arrebanhamento de grande parte da humanidade para uniformizar-se em seu sistema de crenças e valores . A visão vitoriosa (ortodoxa), nesse tocante, foi a dos autores proto-ortodoxos dos séculos II e III, entre eles Justino, Irineu, Tertuliano e Hipólito. Todos estavam de acordo em que Jesus era homem e divino ao mesmo tempo. Por isso, hoje, teólogos assumirem que se deve falar em Jesus como Deus. Daí também a adoração de Jesus como Deus pelos crentes. Deus se rebaixa à condição humana, “revela-se” em Jesus e sacrifica-se, tal como o cordeiro oferecido em sacrifício nos rituais judaicos, para a expiação dos pecados dos homens. Deus se sacrifica, sacrificando Jesus. Este era o cordeiro sacrificado, a ovelha obediente e conduzida à morte porque era essa a vontade de Deus. Jesus hesita, suplica a Deus que o livre do tormento iminente. Mas era a vontade de Deus, de um Deus homicida, que dispôs as condições necessárias para a crucificação do próprio filho amado; e com um único propósito nobre: a salvação da humanidade pecadora. Mata-se para salvar... uma lógica absurda! Deus deveria estar horrorizado com seu crime e dolorosamente frustrado com a ineficácia de sua premeditação repugnante. Há quem defenda que Jesus construiu o caminho de seu suicídio, não sem a aprovação de Deus.
Antes de pôr termo a este texto, gostaria de me estender um pouco mais sobre o papel fundamental que desempenha o discurso não só na vida humana, mas, particularmente, na atividade de doutrinação religiosa. Para tanto, é preciso considerar os seguintes pressupostos, na base dos quais uma teoria do discurso crítica estabelece seu projeto:

1opp. O discurso é uma prática social, um modo de ação social, entre outros. É um momento das práticas sociais;

2opp. O discurso, como realidade social, é, ao mesmo tempo, moldado pelas estruturas sociais e constitutivo dessas estruturas. Não convém pensar linguagem e sociedade em esferas separadas, uma externa à outra; mas inter-relacionadas dialeticamente

3opp. Todo discurso é atravessado por formações ideológicas, as quais compreendem um complexo de práticas e representações, que não sendo nem individuais, nem universais, estão ligadas às posições de classe em disputa. Assim, não obstante a polissemia do termo ideologia, interessa entender que todo discurso se constrói na base de uma ideologia, entendida como visão de mundo de um dado grupo social situado historicamente. Nesse sentido, não só as classes dirigentes produzem suas ideologias, mas também as classes populares, embora apenas as ideologias das classes que detêm o poder socio-político e econômico passem a ser as ideologias dominantes em uma determinada época.

Em Ideologia (1997), de Terry Eagleton, o leitor encontrará uma discussão exaustiva sobre o conceito de ideologia. Trata-se de um termo, cujo emprego deve ser significativamente determinado, já que, dependendo do teórico que dele tenha se ocupado, poderá ter um valor tanto positivo quanto negativo. No capítulo 1 de seu trabalho, Eagleton nos oferece nada mais nada menos do que dezesseis definições de ideologia. Entendida num sentido mais “neutro”, a reflexão sobre ideologia demandará de quem a desenvolve a avaliação de quais discursos servem à transformação de relações de dominação, à emancipação social e quais, sendo ideológicos, servirão para a produção e reprodução dessas relações de dominação. É o que encontramos nesta definição de Fairclough, em Discurso e Mudança social (2001):

“As ideologias são significações/ construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/ sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação”.
(p.117)

Autores há que só entendem a ideologia no seu aspecto negativo, ou seja, como fenômeno ilusório e enganador, que servem à reprodução das relações de poder. As relações de poder se sustentam mediante significados em torno dos quais se estabelece um acordo tácito, pois é assim que se consolida a universalização de pontos de vistas particulares (o que se chama hegemonia). É o que sucede com os discursos da tradição cristã, nas suas variadas ramificações (especialmente católica e neopentecostal). Não obstante o sincretismo religioso tão característico de nossa cultura, o discurso religioso hegemônico é o discurso produzido na esteira da tradição cristã.
Finalmente, apresento o quarto e último pressuposto:

4opp. A linguagem é uma atividade social por meio da qual nossas experiências de mundo são organizadas numa estrutura significativa. Assim, a realidade é produto da inter-relação entre linguagem, cultura, percepção-cognição.

Assim, aprendemos muito com a lição do linguista Luiz Antônio Marcuschi (2005):

“(...) Não nego que exista certa relação entre linguagem e algo externo a ela, mas nego que ela seja estável, pronta, universal e a mesma para todo sempre. Afirmo que conhecer não é um ato de identificação de algo discreto existente no mundo e mediado pela linguagem: conhecer é uma atividade intersubjetiva (...)”.
(p. 69)

E um pouco adiante, acrescenta:

“Conhecer um objeto como cadeira, mesa, bicicleta, avião, livro, banana, sapoti não é apenas identificar algo que está ali, nem usar um termo que lhes caiba, mas é fazer uma experiência de reconhecimento com base num conjunto de condições que foram estabilizadas numa dada cultura. O mundo de nossos discursos (não sabemos como é o outro) é sócio-cognitivamente produzido. O discurso é o lugar privilegiado da designação do mundo. A própria ordem de reflexão sob o ponto de vista de sua organização e dependências lógicas é uma construção predominantemente discursiva”.
(id.ibid.)

Se o desenvolvimento da reflexão, que supõe uma organização de conceitos, segundo esquemas de dependências lógicas é “uma construção predominantemente discursa”, não custa lembrar a lição do também professor e linguista Carlos Franchi, para quem a linguagem serve à construção do pensamento. É consenso entre os especialistas que não há possibilidade de produção de pensamento conceitual fora dos domínios da linguagem. Portanto, não é correto reduzir a linguagem a mero instrumento de comunicação, a mero instrumento para a expressão do pensamento. Os antigos filósofos já haviam notado que a própria razão não poderia desenvolver-se nos seres humanos, se esses não fossem dotados de uma faculdade de linguagem, se não fossem capazes de fazer uso de uma linguagem articulada, mediante a qual combinam um extenso repertório de sequências de sons com uma gama grande de significados diferentes. Isso é um fato extraordinário, principalmente se pensarmos, por exemplo, que, em português, temos 31 fonemas (12 vocálicos, sendo 7 orais e 5 nasais; e 19 consonantais) e eles podem ser combinados em sequências diversas, segundo regras previstas no sistema fonológico da língua, para a produção de um número gigantesco de palavras (cada qual encerrando uma pluralidade de sentidos), que entrarão a fazer parte de um número teoricamente ilimitado de enunciados,  para a expressão de uma vasta quantidade de significações. Dispondo dos fonemas /a/, /e/. /i/, /d/, /p/, /l/, /c/ , /o/, podemos ter as sequências sonoras significativas dedo, pé, , copo, lado, pedal, oco, oca, etc. É um exercício interessante o articular essas mínimas unidades sonoras desprovidas de significado. Somente quando dispostas numa determinada sequência segundo padrões fonológicos previstos pelo sistema da língua é que temos uma unidade significativa, de nível hierárquico mais elevado.









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