domingo, 22 de abril de 2012

"A minha vida é um suspiro de palavras" (BAR)


                 

             
                                    A construção do Cânone
                     
                                Como a Bíblia foi fabricada?

Estima-se que o número de cristãos no mundo chegue a 2, 180 bilhões, dos quais 50,1% são católicos. O Brasil ocuparia hoje o segundo lugar entre os países que abriga a maior quantidade de cristãos, a maioria dos quais católicos (http://noticias.gospelmais.com.br/pesquisa-brasil-segundo-pais-cristao-mundo-28475.html). A despeito do sincretismo que caracteriza fundamentalmente a nossa cultura, o Brasil é hoje considerado o maior país católico do mundo. Cerca de 70 % dos brasileiros são católicos e 89% da população do país é cristã.
Fico imaginando quantos dentre esses 151 milhões e 200 mil brasileiros (incluindo-se nessa totalidade católicos e evangélicos (tradicionais, pentecostais e neopentencostais)) sabem sobre os fatos de cuja exposição me ocuparei aqui. É certo que a maioria esmagadora os ignore. Convém lembrar, no entanto, que não escrevo sobre religião e sobre Deus com vistas a dissuadir quem quer que seja de suas convicções de fé.  À medida que me aprofundo em meus estudos sobre essa temática instigante e relevante (se realmente nos preocupamos com as direções que tomará o curso da História, sempre que a fé imiscuir-se em assuntos de interesse científico, político e social), reconheço que não será com discursos produzidos com rigor racional e ácido espírito crítico que se levará as pessoas que, desde crianças, têm suas percepções da realidade moldadas na visão de mundo (ideológica) da religião, a abandonarem sua fé.  Tal reconhecimento não faz calar a pergunta sobre o porquê de os religiosos serem tão resistentes a pôr sob o escrutínio da razão suas crenças religiosas, ou mesmo sobre o porquê de serem infensos a qualquer iniciativa de debate sobre questões suscitadas pela fé.
Eu escrevo, portanto, para os não religiosos (agnósticos e ateus). E, principalmente, escrevo para elucidar a compreensão que me foi possível durante minhas leituras. Escrevendo, sistematizo o conteúdo interpretado e compreendido. Escrevendo, esmiúço-o, dando-lhe mais nitidez em meu espírito. Escrever é também uma forma de compreender, tendo já terminada a primeira etapa de compreensão pelo exercício da leitura. Escrevo pelo prazer de concatenar ideias que afiguram bem o conhecimento adquirido. Escrevo para dar-lhe uma ordem, uma  solidez.
Vou encetar, pois, minhas reflexões com um longo excerto de Bart, em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010), que servirá para cativar o espírito do leitor, de modo que se sinta disposto a prosseguir na leitura. Cuido ser uma estratégia de instigação intelectual ou, se preferir, de sedução intelectiva, que me aproveitará. Senão, vejamos:

“Quando comecei a estudar a Bíblia na adolescência, com mais paixão que conhecimento (muita paixão, nenhum conhecimento), eu naturalmente imaginei que o livro tinha sido dado por Deus. Meus primeiros professores da Bíblia estimularam essa crença e a tornaram natural para mim, com visões cada vez mais sofisticadas sobre como Deus inspirara as Escrituras, fazendo delas uma espécie de roteiro para minha vida, me dizendo no que acreditar, como me comportar e o que esperar que acontecesse quando este mundo parasse de repente, em breve, com o advento de Jesus nas nuvens do céu.
Eu obviamente já não enxergo a vida assim. Em vez disso, vejo a Bíblia como um livro muito humano, não como um inspirado por Deus. Na verdade, muitas partes dela são inspiradoras, mas já não vejo a mão de Deus por trás de tudo. Não temos os originais que nenhum desses autores escreveu, apenas cópias que foram alteradas por mãos humanas em todos os pontos. E os livros que consideramos Escrituras passaram a formar um cânone séculos após terem sido escritos. Em minha opinião, isso não foi resultado de intervenção divina; foi resultado de líderes muito humanos da Igreja (todos eles homens), fazendo de tudo para decidir o que era certo.”
                                                            (p. 241)
                                                           (grifos meus)

Na primeira parte dessa passagem, o autor nos conta sobre como pensava quando sua mente era guiada pela paixão e pelo discurso de seus professores de teologia. Na adolescência, seu espírito era facilmente fisgado por concepções para as quais faltavam provas. Tal estado de credulidade perdurou ao longo dos anos em que se dedicou, no Seminário Teológico de Princenton, aos estudos bíblicos. Entretanto, à medida que se aprofundava nos estudos da Bíblia, após sua graduação, Bart descobriu a verdade por trás das escrituras. Esse desvelar da verdade lançou por terra sua credulidade; não mais podia sustentar a crença em que a Bíblia fora escrita sob inspiração de Deus. Ela é uma obra humana, e muito humana.
Bart desenvolve seus estudos sobre as origens do Cristianismo e sobre a Bíblia numa perspectiva crítico-histórica, a qual reúne o espírito de quem busca reconstruir os fatos (o historiador) ao espírito de quem os examina à luz de um método hermenêutico que traga  à tona as verdades ocultadas por discursos que se foram construindo na base de falsificações ao longo de séculos.
Dentre aqueles milhões de religiosos referidos, suponho que a grande maioria ignore o fato de que há outros tantos evangelhos que não foram incluídos no cânone (no conjunto de livros considerados pela corrente proto-ortodoxa como legítimos para o estabelecimento da Igreja e das raízes da fé). Neste texto, também vou me ocupar com a apresentação de fatos que giram em torno da fabricação deste cânone. Afinal, como os 27 livros da Bíblia chegaram até nós? Milhões de pessoas no mundo leem-na sem saber nada a respeito disso. Penso que é urgente elucidá-las sobre a forma como esses livros se tornaram objeto de adoração e signos inquestionáveis da verdade. O percurso é longo, mas tenho certeza de que será gratificante ao leitor arguto.



1.       As diversas formas de cristianismo primitivo


Bart D. Ehrman, em Evangelhos Perdidos (2008: 19), ensina-nos que, nos séculos II e III, eram muitas as visões cristãs. Havia cristãos que acreditavam em um único Deus, que julgavam verdadeiro. Outros tantos havia que acreditavam que existiam dois deuses. Outros ainda acreditavam que existiam 365. Alguns acreditavam na existência de trinta.
Também nesses séculos, havia cristãos que acreditavam que Deus é o criador do mundo. Outros, no entanto, pensavam que este mundo fora criado por uma divindade ignorante (isso explicaria a quantidade de dificuldades e sofrimento que recaem sobre a vida dos que nele vivem). Havia aqueles ainda que acreditavam que o mundo fora criado por uma divindade maligna, e o fez para aprisionar os homens e submetê-los à dor e ao sofrimento.
Naquele tempo, existiram cristãos que pensavam ser a Escritura Judaica (o “Velho Testamento da Bíblia cristã) um livro que fora inspirado por Deus, o único e verdadeiro. Outros havia, porém, que quem a inspirou foi o Deus dos judeus, que não era o Deus verdadeiro. Havia ainda cristãos que acreditavam a inspiração provinha de uma divindade maligna. Finalmente, outros tantos acreditavam que não houve inspiração alguma a guiar sua confecção.
As opiniões sobre a identidade de Jesus Cristo também divergiam bastante. Havia, nos século II e III, quem acreditasse que Jesus reunia em si duas naturezas: a humana e a divina. Cristãos havia que acreditasse que ele era completamente divino e, o sendo, não poderia ser também humano, já que uma natureza, necessariamente, contradiz a outra. Alguns acreditavam que Jesus não era divino, mas que fora adotado por Deus para filho.Outros ainda acreditavam que Jesus Cristo era homem e Deus; mas Jesus era o homem; e Cristo, o espírito divino que habitou seu corpo durante o seu ministério. Acreditavam que Cristo inspirou seus ensinamentos, mas abandonou seu corpo antes da morte.
Claro é que havia aqueles que não acreditavam que a morte de Jesus acarretou a salvação do mundo. Outros acreditavam que a sua morte não estava relacionada à salvação. Para outros tantos cristãos, Jesus nunca morrera.
O leitor pode, agora, estar-se perguntando como poderia haver tanta diversidade de crenças e opiniões, àquela época? Decerto, os textos que compõem o Novo Testamento começaram a ser escritos anonimamente por volta do século II. No entanto, os cristãos daquele tempo não podiam ainda ir à fonte para se certificar de qual dentre as muitas crenças que circulavam era a correta, simplesmente porque não havia Novo Testamento. Os textos ainda não haviam sido reunidos para compor um cânone de Escritura. Em outras palavras, a Bíblia cristã, tal como a conhecemos hoje, ainda não existia.
Também, à época, circulavam outros escritos (Evangelhos, Atos, Epístolas e Apocalipses) produzidos por pessoas que se declaravam os apóstolos de Jesus. Cabe observar, a essa altura, que os quatro evangelhos que viriam a compor o Novo Testamento foram todos escritos anonimamente. Tempos depois é que lhes foram atribuído autoria. Sabemos, com Bart, que os nomes que constam no cabeçalho dos quatro evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas, João) não correspondem aos verdadeiros apóstolos de Cristo. Tais nomes foram dados por seus autores com vistas a angariar prestígio e reconhecimento. Os quatro evangelhos são, portanto, produto de falsificação, prática muito comum naqueles tempos.
Outros evangelhos também estavam disponíveis, como um texto cuja autoria fora atribuída a Simão Pedro, outro cuja autoria fora atribuída a Maria Madalena; outro ainda que teria sido escrito pelo apóstolo Filipe; e outro atribuído ao irmão gêmeo de Jesus, Dídimo Judas Tomé.
É claro que alguém, que gozava de poder social e político, decidiu quais seriam os evangelhos, dentre os muitos disponíveis, que viriam a compor o cânone. É desse tema que trataremos neste texto.
Quando, finalmente, o Novo Testamento estava acabado, a coletânea reunia Atos, que são relatos sobre o que fizeram os discípulos após Jesus ter morrido. No entanto, havia outros Atos disponíveis nos primeiros anos da igreja. Entre eles, havia os Atos de Pedro e de João, os Atos de Paulo, e os Atos da companheira de Paulo, Tecla. Eles não entraram a fazer parte da coleção de livros da Bíblia, porque quem atuou na produção do cânone julgou que tais textos não correspondiam à visão proto-ortodoxa de uma elite.
Sabemos que Paulo, que de perseguidor dos cristãos, passou a ser seu principal defensor e propagador de suas crenças, supostamente escrevera treze epístolas. Os estudiosos concordam que Colossenses e Efésios não são de autoria de Paulo. Embora ele tenha escrito 1 Tessalonicenses, não escreveu 2 Tessalonicenses, cujo autor pseudônimo tomara a primeira como fonte. O conteúdo de 2 Tessalonicenses é bastante diferente do conteúdo de 1 Tessalonicenses. Elas se assemelham quanto ao estilo da escrita, mas veiculam conteúdos ideológicos diferentes.
Há outras cartas atribuídas a Paulo, como uma que ele enviara ao filósofo Sêneca, que não constam do cânone. Também não figuram na Bíblia cristã uma carta considerada de autoria de Paulo escrita à Igreja de Laodicéia, bem como 3 Coríntios (lembre-se de que na Bíblia só se encontram 1 e 2 Coríntios).
Ehrman dá-nos a saber o desfecho do longo processo de fabricação da Bíblia:

“Hoje, sabemos que em alguma época, em algum lugar, todos esses livros não-canônicos, assim como muitos outros, foram reverenciados como sagrados, inspirados e escriturais. Alguns deles nós temos hoje; outros, conhecemos apenas pelo nome. Somente 27 dos livros cristãos primitivos foram enfim incluídos no cânone, copiados por escribas através dos tempos, finalmente traduzidos [para o português], e agora estão nas estantes de praticamente todos os lares [do Brasil].”
(p. 21)


                2. O estabelecimento do cânone


Houve várias tentativas de estabelecimento de um cânone de Escrituras. Não me será possível discorrer sobre elas aqui. Nesse tocante, destacarei tão-só o papel decisivo que exerceram dois líderes da Igreja, no fim do século II e início do século III, chamados Irineu e Tertuliano. Irineu fora o fundador da teologia cristã e combatente contumaz das heresias cristãs. Vale lembrar que hereges eram aqueles cujas visões teológicas divergiam da visão proto-ortodoxa de uma pequena elite, mas originalmente, do grego haeresis, heresia significava “escolha”, “opção”. Tertuliano fora um apologista cristão que travou contendas com cristãos displicentes. Também ele estava interessado em fazer predominar a visão proto-ortodoxa sobre as demais.
Coube a essas duas personagens da História defender a ideia de que uma “regra de fé” já havia sido estabelecida pelos apóstolos de Jesus e que essa regra deveria ser acolhida por todos os cristãos. Essa regra, ao mesmo tempo em que passou a constituir a base da ortodoxia, rejeitava os outros pontos de vista comuns à época. Vale dizer que a autoridade dos apóstolos é que deveria ser o critério para estabelecer as crenças verdadeiras. Basicamente, a regra tornou predominante as crenças segundo a quais só há um Deus, ele é o criador do mundo, e é humano e divino. A crença ortodoxa faz ver, hoje, para nós, como a imagem de Deus não é senão a imagem que o homem faz de si como ser divino. Sabe-se que o Deus judaico-cristão é um Deus antropomórfico, ou seja, definido com propriedades ou predicativos humanos (bom, amoroso, justo, fiel, etc.). A observação desse fato talvez tenha levado Feuerbach, em seu principal trabalho a Essência do Cristianismo, a escrever que ”Deus é o espelho do homem” (p. 89), ou ainda que “Deus é a essência do homem mais subjetiva, mais própria, separada e abstraída (...) quanto mais humano for o Deus, tanto mais despoja-se o homem da sua subjetividade, da sua humanidade, porque Deus é em e por si o seu ser exteriorizado” (p. 59). Assim, com Feuerbach, podemos desfazer a inversão ideológica operada na forma “O homem foi criado a imagem e semelhança de Deus”, dando a expressão um sentido que exprime a verdade, ou seja, o modo como se dá a relação entre o homem e Deus: “Deus foi criado a imagem e semelhança do homem”.
Os Credos Apostólico e Niceno, escritos no século IV foram determinantes para oficializar aquelas crenças. A essa altura, os líderes proto-ortodoxos detinham um conjunto de crenças, outorgadas pela autoridade do bispo, e se puseram a fazer desaparecer aquelas que julgavam estar erradas.
O estabelecimento do cânone não se deu por critérios explícitos e bem definidos, embora haja relatos que permitem entrever alguns critérios que eram importantes, a saber: a antiguidade dos textos, a catolicidade, a apostolicidade e a ortodoxia.
Segundo o critério da antiguidade, os textos, para serem aceitos num cânone, deveriam ter sido escritos nas primeiras décadas da Igreja cristã; portanto, quanto mais antigos fossem maiores seriam as chances de eles entrarem para o conjunto de textos reconhecidos como expressão da fé verdadeira. Pelo critério da catolicidade, rezava-se que apenas os textos utilizados pela igreja poderiam vir a compor o cânone; os que não fossem, embora pudessem ser admirados, não poderiam integrar a classe dos textos seletos. A apostolicidade determinava que somente os textos escritos pelos apóstolos ou por amigos destes é que podiam compor o cânone. Era o critério mais importante e explicava por que os Evangelhos passaram a ser chamados por nomes específicos. Não se aceitava que os textos fossem escritos por pessoas anônimas. Sucedia, contudo, que as autoridades da época não eram instrumentalizadas para estabelecer quem eram os verdadeiros autores das obras. Serapião, bispo proto-ortodoxo da cidade de Antioquia, na Síria, por exemplo, decretou que o Evangelho de Pedro não tinha sido escrito por ele mesmo Pedro, muito embora o texto alegasse ter sido Pedro seu autor. Serapião não dispunha dos critérios de que, hoje, estudiosos eminentes da Bíblia se valem para estudar e certificar-se da originalidade dos textos. Ele apenas o fizeram baseando-se na ideia de que os textos rejeitados não expressavam a visão ortodoxa aceita.
Finalmente, pelo critério da ortodoxia, Serapião rejeitou textos que não se afinavam com o ponto de vista considerado ortodoxo. Concluiu que, se não são ortodoxos, tais textos não haviam sido escritos pelos apóstolos. Somente textos considerados apostólicos podiam ser aceitos.
Passaram-se pelo menos trezentos anos de debate até que o cânone começasse a ser definido. Evidentemente, muitos livros considerados quase ortodoxos e que alegavam ter sido escritos por um apóstolo de Jesus, não obstante, não se tornaram candidatos à inclusão no cânone, entre os quais estavam o Apocalipse de Pedro, a Epístola de Barnabé e 1 Clemente.
Coube a Atanásio, bispo de Alexandria e inimigo da heresia ariana, cujos textos defendiam a fé proclamada pelo Concílio de Nicéia, em 325 d.C., determinar os 27 livros que conhecemos hoje como representativos do cânone, em 367 d.C. Não obstante, a determinação de Atanásio, ela não pôs fim às disputas em torno de quais textos deveriam compor o cânone. Por muitos séculos, várias igrejas adotaram listas um pouco diferentes, algumas das quais incluía 3 Coríntios como canônico. À medida que avançava o século V, o conjunto de textos determinados por Atanásio como canônico obteve unanimidade. Ensinará, pois, Ehrman, em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010):

“(...) Esses livros, e apenas eles, foram copiados por escribas que reproduziram as Escrituras durante toda a Idade Média. E, embora nenhum concílio mundial da Igreja tenha ratificado a lista de Atanásio por mais de um milênio, o uso pelo povo forneceu uma espécie de ratificação de fato, até o momento da invenção da imprensa. Quando passou a ser mais fácil imprimir bíblias, depois da invenção dos tipos móveis, no século XV, o cânone já estava estabelecido. A partir de então não havia dúvidas quanto a quais livros deviam ser incluídos, e em qual ordem. Hoje, onde quer que você compre um Novo Testamento, será sempre o mesmo conjunto de livros, na mesma sequência”.
(p. 239)

O cânone resultou de um processo lento e muitas vezes penoso, já que, em torno dele, houve muitas manifestações de pontos de vista discordantes, que foram debatidos, aceitos e eliminados.

“Seja lá o que os teólogos cristãos e outros crentes sustentem sobre o ímpeto e a orientação divina por trás da canonização das Escrituras, também está claro que foi um processo bastante humano, determinado por um grande número de fatores históricos e culturais”.
(p. 240)


3. Ponderações finais



Por um instante, eu estava disposto a cessar de escrever este texto, depois que fui advertido de que minha insistência em trazer à tona minhas posições ateístas estava tornando-se enfadonha. E, para prová-lo, alegou-se que algumas amigas atéias não mais sinalizam seu interesse por minhas publicações. Todavia, entendi que, se isso for verdade, ainda assim não deve ser razão suficiente para demover-me da empresa que considero válida: trazer à consciência dos não-religiosos fatos importantes sobre um fenômeno contra o qual alguns se opõem; e sobre o qual outros tantos lançam descréditos.
Sinto ser necessário lembrar que não posso ser comparado a certos ateus que se limitam a expor mensagens jocosas para ridicularizar as crenças religiosas. Não só porque discordo de que seja essa uma prática válida para afirmar direitos e atrair reconhecimento pela maioria da sociedade, como também porque tenho insistido em que minhas posições ateístas são fundamentadas em estudos que empreendo habitualmente. Tornei-me ateu porque, através da leitura de textos filosóficos, enrijeci as raízes de meu ceticismo. A filosofia abriu-me as portas para conhecer sobre a literatura ateísta, mas antes de tomar conhecimento dela, já cultivava em meu espírito fortes suspeitas sobre o valor dos textos tidos como sagrados e legitimados como meios para orientação da conduta dos cristãos. Não me importava muito com a crença de que eles teriam sido escritos por meio da inspiração divina. Para mim, isso não fazia muito sentido, porque sabia que cada uma das três grandes religiões monoteístas, a saber, o judaísmo, o islamismo e o cristianismo, tinham seu próprio livro. Teria Deus inspirado todos três? Se sim, porque diferem entre si em ensinamentos fundamentais? Por que, então, as três tradições seguiram caminhos diferentes? Para os muçulmanos, Deus inspirou a Maomé, profeta a quem coube transmitir os ensinamentos divinos. Para os Cristãos, coube a Jesus reeducar aqueles que se desviaram da Lei de Deus, reformando-a em alguns pontos e reinterpretando-a com uma retórica pacifista. Já os judeus acreditam que Deus fizera um pacto eterno com o patriarca Abraão. Os judeus negam ter sido Jesus o Messias. E as várias correntes judaicas divergem quanto a temas como vida além-morte e Ressurreição.
Da mesma forma que os religiosos têm o direito de estampar suas mensagens cristãs, também eu tenho o direito de expor minhas posições ateístas. E da mesma forma que a grande maioria é indiferente a elas, também eu o sou em relação às deles. A indiferença mútua, portanto, serve para evitar o conflito. A mim, pouco importa que as pessoas continuem a falar em Deus, a reproduzir os discursos que aprenderam na igreja e que vieram a moldar sua consciência de mundo, suas formas de perceber e se relacionar com os acontecimentos da vida, desde que esses acontecimentos toquem à esfera subjetiva. No entanto, se me é negado o direito de expor minhas posições, porque supostamente elas incomodam, ou se as posições religiosas venham a imiscuir-se (como o têm feito) na direção do governo deste país, então não me privarei de manifestar minha oposição. E me oponho sempre que não silencio em face da influência que as crenças de líderes religiosos exercem sobre a decisão política sobre os rumos da sociedade.
Eu escrevo não com o objetivo de dissuadir ninguém de suas crenças religiosas. Escrevo porque sinto prazer em fazê-lo e porque cuido ter talento suficiente para tanto. Dedico-me à escrita como quem se dedica a fazer crochê: com vagar e paciência, abstraindo-se de tudo e de todos. Tendo apenas a solidão como berço que anima os pensamentos. Minha escrita é a forma que desenvolvi para resistir ao mundo. Pela escrita, eu intervenho, ainda que anonimamente, nas formas como a sociedade em que vivo e atuo como cidadão e educador me atinge. A vida social nos interpela, mas, infelizmente, só é dado responder aos que tiveram o privilégio de ter alcançado uma escolarização plena e de ter conquistado o direito ao acesso aos livros. Meu compromisso como educador é contribuir para universalizá-lo. A escrita que desenvolvo é minha defesa contra o mundo. Apreciem-na ou não, vale-me mais a aventura do que a recompensa. Que eu permaneça para muitos inaudível e que um dia eu seja assim sepultado. Até lá usufruo o prazer que mo permite o talento que desenvolvi durante anos, ousando escrever, ousando ler mais e escrever mais, listando palavras que consultava no dicionário, empenhando-me na labuta diária que consiste em disciplinar os pensamentos ávidos e indistintos que se vão acumulando na alma, na aridez do terreno da modalidade escrita.

A minha vida é um suspiro de palavras!
(BAR)

Um comentário:

  1. A Bíblia é o reflexo da temporalidade e historicidade de cada escritor. Isso é um fato que não pode ser refutado.
    Continue a escrever meu amigo! Amei o texto, embasado em estudos bem fundamentados, você não está postando coisas infundadas, todos os textos que leio aqui é de uma riqueza inconteste, fruto de muita leitura e estudo, conhecimento e entendimento do que se escreve. Pena que muitas pessoas preferem viver condicionadas a falsas ilusões, mas isso é conseqüência de milhares de séculos de doutrinação e é tão cômodo viver na zona de conforto. Enfim, mas isso não é motivo para desistir da tua verdade, desmistificar crenças arraigadas sem o menor senso critico não é fácil, as criticas vão sempre existir, mas “perdoai-os, eles não sabem o que dizem” rsrs... Acho que essa advertência não procede, não tem nada de enfadonho aqui, “incomode” bastante ainda, o que será da gente se perdermos o direito de nos indignar?

    Bjusss

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