segunda-feira, 30 de abril de 2012

"Nada vem do nada e nada retorna ao nada" (só há phýsis)


                                                 

                                                       Jônia
                                                O berço da filosofia
A 
filosofia, na Grécia, se desenvolveu na cidade de Jônia, uma das áreas que compunham a região da antiga Ásia Menor, da qual faziam parte também Mileto, Éfeso, Samos, Cólofon e Quio. Jônia era, no século VI a.C., o grande centro de irradiação e prosperidade da cultura grega. Os jônios fundaram numerosas colônias junto ao mar Egeu e ao mar Negro. Quais foram as condições sócio-históricas que favoreceram o surgimento da filosofia em Jônia? E dentre elas qual a mais importante?
Alguns especialistas na História da Filosofia apontam as navegações e as transformações técnicas como fatores importantes para o surgimento da filosofia naquela região, porquanto causaram o desencantamento do mundo. Em outras palavras, pôde-se com elas superar a visão mítico-religiosa de mundo (até então predominante), pondo-se-lhe no lugar uma visão racional da realidade, que passaria a exigir explicações e justificativas assentadas na razão. Há também aqueles que consideram a invenção do calendário (que permite a abstração do tempo), da moeda ( signo que viabiliza a troca)  e da escrita como fatos que possibilitaram aos gregos desenvolver o pensamento abstrato. Decerto, todos os fatos mencionados contribuíram para a formação, entre os jônicos, do pensamento filosófico.
Todavia, como nos ensina Chauí (2002: 40), o fato determinante para o surgimento da filosofia foi a política. A filosofia, entre os gregos, surge inextricavelmente ligada à política, e esta encontrava seu nascedouro e local de desenvolvimento na pólis. A filosofia nasce como cosmologia e, como tal, preocupa-se em explicar a natureza (princípio primordial que produz todas as coisas), muito embora, porque nasce no interior da pólis, a forma como a ordem sociopolítica era explicada fosse projetada para explicar também a natureza ou phýsis.

1. A pólis: o nascedouro da filosofia grega

Pólis é a palavra grega para designar “cidade”, ou “Cidade-Estado”. Na pólis, os cidadãos se reuniam para deliberar sobre assuntos de interesse público. Dela também provém a palavra política (do grego politikós, que é o cidadão, ou o que diz respeito aos negócios públicos, à administração pública) (Chauí, 2000). É nos limites da pólis que a democracia grega nasce e floresce, já que era na pólis que se davam os debates, que os cidadãos (homens livres, excetuando-se os escravos e as mulheres) podiam exercer o poder de discursar.
O ambiente político, favorável ao debate, às tomadas de decisões sobre os rumos da sociedade, permitiu que a visão místico-religiosa de três personagens reais, até então predominante, pudesse ser, aos poucos, suplantada. Eram elas o poeta, o adivinho e o rei-de-justiça, todas recobertas pela designação Mestre da Verdade. O filósofo, seu sucessor, traria, em substituição à Verdade unilateral, derivada da autoridade, a Verdade como meta a ser alcançada pelo diálogo, pelo discurso racional. Convém atentar para as palavras de Marcondes & Japiassú, ao definir pólis, em seu Dicionário Básico de Filosofia:

“polis A cidade estado grega da qual Atenas
foi o principal exemplo no período que vai
das reformas de Clístenes (séc. VI a.C.) até
a conquista da Grécia por Felipe da Macedônia.
A polis se constituía como uma unidade política
e territorial, sobretudo através do vínculo que
seus cidadãos mantinham com ela por lealdade,
identidade cultural e origem. É na pólis que se
dá a democracia, caracterizada pela igualdade
dos cidadãos perante a lei e pela participação
destes na decisão política (...)”
(grifo meu)

Comum às três personagens reais, estava o dom de vidência, a capacidade de ver para além da realidade sensível. Eles viam o invisível. O poeta, ao cantar seus versos, tornava presente o passado; o adivinho (ou profeta) era capaz de ver o futuro; o rei-da-justiça (ou sábio) era capaz de ver ordem em meio às mudanças no mundo. Todos tinham visões inspiradas em oráculos. Eles não só tinham o dom de ver para além, mas também o dom de fazer as coisas acontecerem. A palavra deles era um fazer: “ao falar, fazem com que aconteça aquilo que dizem” (Chauí, p. 40).
Que verdade revelavam eles? O que era, em tais condições, a verdade? Em grego, verdade se diz alétheia. Assim, verdade depende da automanifestação da realidade ou do ser. A realidade se revela à visão intelectual dos homens. A verdade é, assim, aquilo que a coisa é. Quando a realidade se nos desnuda, se manifesta clara ao espírito, quando é seu ser mesmo que se mostra, dizemos que ela é verdadeira. Assim é que, para os gregos,

“o verdadeiro é o ser (o que algo realmente é) e o falso é o parecer (o que algo aparenta ser e não é)”.
(Chauí, 2008: 96)

Cumpre observar que, em alétheia, há um prefixo grego de negação –a, e o radical léthe, que significa “esquecimento” ou “esquecido”. Destarte, alétheia é o “não-esquecimento” ou o “não-esquecido”. A verdade é não esquecer e se liga a Mnemosýne, a deusa da memória. O poeta, o adivinho e o sábio (rei-de-justiça) são aqueles que não esquecem e evitam que os homens esqueçam. Como ensina Chauí (2002: 41):

“O poeta canta os feitos dos antepassados. O adivinho diz os feitos e efeitos da ação dos deuses e dos homens. O rei-de-justiça diz justiça (dike*), isto é, afirma que a ordem do mundo é governada por uma lei boa e justa.”.

A fala dos três tem efeito mágico. Ela realiza o verbalizado. Ao cantar seus versos, o poeta torna o passado presente; ao anunciar, o adivinho traz à consciência dos homens o futuro; ao enunciar justiça, o rei-de-justiça cria a lei (à semelhança do Deus judaico-cristão, que ao dizer “faça-se”, as coisas acontecem)
“Sua palavra [a dos três personagens], mesmo quando proferida em público, é sagrada e secreta, um dom que somente os iniciados possuem. É, portanto, uma palavra de poder ou de soberania, reservada apenas a alguns, homens excepcionais, dotados de poderes religiosos. São essas três figuras que irão, pouco a pouco, desaparecer com o surgimento da pólis.”

                                                             (Chauí, ib.id.)

A Grécia antiga também produziu seus guerreiros, um grupo de homens que também tinham direito à palavra, muito embora ela fosse de natureza diferente da do Mestre da Verdade. A palavra dos guerreiros é uma palavra dialógica, portanto, compartilhada entre eles. Era uma palavra publicamente acessível. Também não era uma palavra religiosa, mas leiga, própria dos homens (não tinha inspiração divina).
Após o combate, esses guerreiros se reuniam e formavam uma assembleia. Em círculo, cada qual podia se dirigir para o centro e falar, propondo táticas e estratégias de combate. Essa prática acontecia ao cabo de cada combate. Cada guerreiro também tinha o direito de escolher seus espólios. Podiam eles falar, emitindo suas opiniões e eram considerados iguais em face da lei, criada pelo próprio grupo. Com a assembléia dos guerreiros e em virtude delas, surge a pólis e a política.
Em grego, palavra ou discurso se diz lógos, que, por sua vez, relaciona-se à dóxa, que significa “opinião”. Dóxa pode significar tanto ‘participar na base de um julgamento adequado a uma situação”, ‘conformar-se a uma norma’ ou ainda ‘escolher e decidir’. A dóxa se situa no campo político e como tal está a serviço daqueles que pretendem persuadir e impor sua opinião aos outros. Não tardou para notar a aproximação dela com a alétheia, já que, por vezes, pela dóxa o cidadão buscava seduzir seu interlocutor, mas de modo enganoso.
A filosofia surge então do encontro da dóxa com a alétheia. Em vários momentos, os filósofos se inclinavam mais a uma do que a outra. Entre estes estavam os sofistas, que empregavam a dóxa para persuasão e cobravam pelo serviço prestado. Coube a Sócrates e Platão fazer valer a alétheia sobre a dóxa.

“Será o momento em que a filosofia, em vez de ocupar-se com a origem do mundo e as causas de suas transformações, se interessará exclusivamente pelos homens, pela ética, pela política. A dóxa (palavra própria do espaço político da discussão, da escolha e persuasão) será substituída pela alétheia (palavra dos iniciados que se expõe a todos, sem necessidade de persuasão e de escolha) quando a ética e a política deixarem de ser opiniões práticas sobre a conduta individual e coletiva para serem consideradas ciências ou conhecimentos teóricos sobre a essência do homem e da pólis”.
(p. 44)

A filosofia, assim, inaugura, através do lógos (discurso racional) a sua grandiosa investigação sobre o ser. A pergunta com que todo labor filosófico se inicia – O que é o ser? – que, em Parmênides de Eléia, já encontrara sua expressão germinal, passaria a ocupar a mente dos pensadores gregos. A pergunta pelo ser das coisas é a pergunta pela verdade, mas de uma verdade que deve ser buscada pelo pensamento; daí entender-se o pensamento de Parmênides, ao anunciar “é o mesmo o ser e o pensar”.  Nada mais do que dizer que o real é racional e o racional é real. Eis a identificação entre razão e realidade, tão cara aos filósofos de todas as épocas, que viriam a beber da fonte grega.
Cuido necessários alguns comentários sobre a figura de Parmênides, o filósofo do Ser. O Ser, para Parmênides, era real, mas sua realidade era inacessível aos sentidos. O Ser de Parmênides tem natureza oculta, abstrata e opõe-se à aparência. Do Ser só se pode dizer que ele é. O não-ser não é. O Ser é imutável, permanente, resiste às mudanças, a que temos acesso pela experiência sensível. O Ser está ligado à experiência intelectiva, ou seja, do intelecto. Seu principal discípulo, Melisso de Samos, pensava o Ser como eterno, imutável, atemporal e incriado (Marcondes, 2008: 36). O Ser não tem começo e de nada deriva.
Da alétheia do Mestre do Saber (o poeta, o adivinho e o rei-de-justiça), a filosofia colheu o sentido de verdade que sobrepuja a dóxa. A filosofia se assenta no lógos e, portanto, propõe um discurso (que é ação pela palavra) que se destina a buscar a verdade. O que se faria, doravante, seriam debates desinteressados, que visariam a trazer à tona a verdade. A filosofia tornar-se uma contemplação desinteressada da verdade (theoria). A theoria será o resultado da ação do lógos, que se assenta no acordo entre o ser, a razão, o pensamento e a palavra, que são comuns a todos os seres humanos.

“A opinião é múltipla e variável; a verdade é uma e imutável. A opinião nasce dos conflitos e os alimenta. A razão é idêntica em todos os homens e propício à paz”.

(Chauí, 2002: 45)

A universalidade pretendida pela filosofia ficou, entretanto, no plano das ideias, pois que, historicamente, veio a ser tornar, para o bem da própria atividade crítico-reflexiva de que ela é a maior expressão, um palco de pluralidade de vozes, consoante ensina Chauí:

“Paradoxalmente, essa pretensão da filosofia de ser universal, de encontrar o acordo entre as ideias e estabelecer a identidade entre as coisas e o pensamento se realizará como ideal inatingível, pois, de fato, será feita de desacordos e de oposições entre os filósofos”.

(ib.id)

Ser um discurso que se abre para muitas vozes, para muitas perspectivas é próprio da filosofia. Nos seus vastos palcos, encenam muitas vozes; todas dialógicas, conflitantes ou consonantes; todas atravessadas pela pluralidade dos discursos. Todas compromissadas com a verdade.








[1] Chauí, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos à Aristóteles, v. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2002
___________ Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2008.

Marcondes, Danilo. Hilton Japiassú. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
Marcondes, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

Nenhum comentário:

Postar um comentário