Jônia
O berço
da filosofia
A
filosofia,
na Grécia, se desenvolveu na cidade de Jônia, uma das áreas que compunham a
região da antiga Ásia Menor, da qual faziam parte também Mileto, Éfeso, Samos,
Cólofon e Quio. Jônia era, no século VI a.C., o grande centro de irradiação e
prosperidade da cultura grega. Os jônios fundaram numerosas colônias junto ao
mar Egeu e ao mar Negro. Quais foram as condições sócio-históricas que
favoreceram o surgimento da filosofia em Jônia? E dentre elas qual a mais
importante?
Alguns
especialistas na História da Filosofia apontam as navegações e as
transformações técnicas como fatores importantes para o surgimento da filosofia
naquela região, porquanto causaram o desencantamento do mundo. Em outras
palavras, pôde-se com elas superar a visão mítico-religiosa de mundo (até então
predominante), pondo-se-lhe no lugar uma visão racional da realidade, que
passaria a exigir explicações e justificativas assentadas na razão. Há também
aqueles que consideram a invenção do calendário (que permite a abstração do
tempo), da moeda ( signo que viabiliza a troca)
e da escrita como fatos que possibilitaram aos gregos desenvolver o
pensamento abstrato. Decerto, todos os fatos mencionados contribuíram para a
formação, entre os jônicos, do pensamento filosófico.
Todavia,
como nos ensina Chauí (2002: 40), o fato determinante para o surgimento da
filosofia foi a política. A
filosofia, entre os gregos, surge inextricavelmente ligada à política, e esta
encontrava seu nascedouro e local de desenvolvimento na pólis. A filosofia nasce como cosmologia e, como tal, preocupa-se
em explicar a natureza (princípio primordial que produz todas as coisas), muito
embora, porque nasce no interior da pólis,
a forma como a ordem sociopolítica era explicada fosse projetada para explicar também
a natureza ou phýsis.
Pólis é a palavra grega para designar
“cidade”, ou “Cidade-Estado”. Na pólis,
os cidadãos se reuniam para deliberar sobre assuntos de interesse público. Dela
também provém a palavra política (do grego politikós,
que é o cidadão, ou o que diz respeito aos negócios públicos, à administração
pública) (Chauí, 2000). É nos limites da pólis
que a democracia grega nasce e floresce, já que era na pólis que se davam os debates, que os cidadãos (homens livres,
excetuando-se os escravos e as mulheres) podiam exercer o poder de discursar.
O
ambiente político, favorável ao debate, às tomadas de decisões sobre os rumos
da sociedade, permitiu que a visão místico-religiosa de três personagens reais,
até então predominante, pudesse ser, aos poucos, suplantada. Eram elas o poeta,
o adivinho e o rei-de-justiça, todas recobertas pela designação Mestre da
Verdade. O filósofo, seu sucessor, traria, em substituição à Verdade
unilateral, derivada da autoridade, a Verdade como meta a ser alcançada pelo
diálogo, pelo discurso racional. Convém atentar para as palavras de Marcondes
& Japiassú, ao definir pólis, em
seu Dicionário Básico de Filosofia:
“polis A cidade estado grega da qual
Atenas
foi o principal
exemplo no período que vai
das reformas de
Clístenes (séc. VI a.C.) até
a conquista da Grécia
por Felipe da Macedônia.
A polis se constituía como uma unidade política
e territorial, sobretudo através do vínculo que
seus cidadãos mantinham com ela por lealdade,
identidade cultural e origem. É na pólis que se
dá a democracia,
caracterizada pela igualdade
dos cidadãos perante a
lei e pela participação
destes na decisão política (...)”
(grifo meu)
Comum
às três personagens reais, estava o dom de vidência, a capacidade de ver para
além da realidade sensível. Eles viam o invisível. O poeta, ao cantar seus
versos, tornava presente o passado; o adivinho (ou profeta) era capaz de ver o
futuro; o rei-da-justiça (ou sábio) era capaz de ver ordem em meio às mudanças
no mundo. Todos tinham visões inspiradas em oráculos. Eles não só tinham o dom
de ver para além, mas também o dom de fazer as coisas acontecerem. A palavra
deles era um fazer: “ao falar, fazem com que aconteça aquilo que dizem” (Chauí,
p. 40).
Que
verdade revelavam eles? O que era, em tais condições, a verdade? Em grego,
verdade se diz alétheia. Assim,
verdade depende da automanifestação da realidade ou do ser. A realidade se
revela à visão intelectual dos homens. A verdade é, assim, aquilo que a coisa
é. Quando a realidade se nos desnuda, se manifesta clara ao espírito, quando é
seu ser mesmo que se mostra, dizemos que ela é verdadeira. Assim é que, para os
gregos,
“o verdadeiro é o ser (o que algo
realmente é) e o falso é o parecer (o que algo aparenta ser e não é)”.
(Chauí, 2008: 96)
Cumpre
observar que, em alétheia, há um
prefixo grego de negação –a, e o
radical léthe, que significa
“esquecimento” ou “esquecido”. Destarte, alétheia
é o “não-esquecimento” ou o “não-esquecido”. A verdade é não esquecer e se liga
a Mnemosýne, a deusa da memória. O
poeta, o adivinho e o sábio (rei-de-justiça) são aqueles que não esquecem e evitam
que os homens esqueçam. Como ensina Chauí (2002: 41):
“O poeta canta os feitos dos
antepassados. O adivinho diz os feitos e efeitos da ação dos deuses e dos
homens. O rei-de-justiça diz justiça (dike*), isto é, afirma que a ordem do
mundo é governada por uma lei boa e justa.”.
A fala
dos três tem efeito mágico. Ela realiza o verbalizado. Ao cantar seus versos, o
poeta torna o passado presente; ao anunciar, o adivinho traz à consciência dos
homens o futuro; ao enunciar justiça, o rei-de-justiça cria a lei (à semelhança
do Deus judaico-cristão, que ao dizer “faça-se”, as coisas acontecem)
“Sua palavra [a dos três
personagens], mesmo quando proferida em público, é sagrada e secreta, um dom
que somente os iniciados possuem. É, portanto, uma palavra de poder ou de
soberania, reservada apenas a alguns, homens excepcionais, dotados de poderes
religiosos. São essas três figuras que irão, pouco a pouco, desaparecer com o
surgimento da pólis.”
(Chauí, ib.id.)
A
Grécia antiga também produziu seus guerreiros, um grupo de homens que também
tinham direito à palavra, muito embora ela fosse de natureza diferente da do
Mestre da Verdade. A palavra dos guerreiros é uma palavra dialógica, portanto, compartilhada entre eles. Era uma
palavra publicamente acessível. Também não era uma palavra religiosa, mas
leiga, própria dos homens (não tinha inspiração divina).
Após o
combate, esses guerreiros se reuniam e formavam uma assembleia. Em círculo,
cada qual podia se dirigir para o centro e falar, propondo táticas e
estratégias de combate. Essa prática acontecia ao cabo de cada combate. Cada
guerreiro também tinha o direito de escolher seus espólios. Podiam eles falar,
emitindo suas opiniões e eram considerados iguais em face da lei, criada pelo
próprio grupo. Com a assembléia dos guerreiros e em virtude delas, surge a pólis e a política.
Em
grego, palavra ou discurso se diz lógos,
que, por sua vez, relaciona-se à dóxa,
que significa “opinião”. Dóxa pode
significar tanto ‘participar na base de um julgamento adequado a uma situação”,
‘conformar-se a uma norma’ ou ainda ‘escolher e decidir’. A dóxa se situa no campo político e como
tal está a serviço daqueles que pretendem persuadir e impor sua opinião aos
outros. Não tardou para notar a aproximação dela com a alétheia, já que, por vezes, pela dóxa o cidadão buscava seduzir seu interlocutor, mas de modo
enganoso.
A
filosofia surge então do encontro da dóxa
com a alétheia. Em vários momentos,
os filósofos se inclinavam mais a uma do que a outra. Entre estes estavam os
sofistas, que empregavam a dóxa para
persuasão e cobravam pelo serviço prestado. Coube a Sócrates e Platão fazer
valer a alétheia sobre a dóxa.
“Será o momento em que a filosofia,
em vez de ocupar-se com a origem do mundo e as causas de suas transformações,
se interessará exclusivamente pelos homens, pela ética, pela política. A dóxa
(palavra própria do espaço político da discussão, da escolha e persuasão) será
substituída pela alétheia (palavra dos iniciados que se expõe a todos, sem
necessidade de persuasão e de escolha) quando a ética e a política deixarem de
ser opiniões práticas sobre a conduta individual e coletiva para serem
consideradas ciências ou conhecimentos teóricos sobre a essência do homem e da
pólis”.
(p. 44)
A
filosofia, assim, inaugura, através do lógos (discurso racional) a sua grandiosa
investigação sobre o ser. A pergunta com que todo labor filosófico se inicia – O que é o ser? – que, em Parmênides de
Eléia, já encontrara sua expressão germinal, passaria a ocupar a mente dos
pensadores gregos. A pergunta pelo ser das coisas é a pergunta pela verdade,
mas de uma verdade que deve ser buscada pelo pensamento; daí entender-se o
pensamento de Parmênides, ao anunciar “é o mesmo o ser e o pensar”. Nada mais do que dizer que o real é racional
e o racional é real. Eis a identificação entre razão e realidade, tão cara aos
filósofos de todas as épocas, que viriam a beber da fonte grega.
Cuido
necessários alguns comentários sobre a figura de Parmênides, o filósofo do Ser.
O Ser, para Parmênides, era real, mas sua realidade era inacessível aos
sentidos. O Ser de Parmênides tem natureza oculta, abstrata e opõe-se à
aparência. Do Ser só se pode dizer que ele é. O não-ser não é. O Ser é
imutável, permanente, resiste às mudanças, a que temos acesso pela experiência
sensível. O Ser está ligado à experiência intelectiva, ou seja, do intelecto.
Seu principal discípulo, Melisso de Samos, pensava o Ser como eterno, imutável,
atemporal e incriado (Marcondes, 2008: 36). O Ser não tem começo e de nada
deriva.
Da alétheia do Mestre do Saber (o poeta, o
adivinho e o rei-de-justiça), a filosofia colheu o sentido de verdade que
sobrepuja a dóxa. A filosofia se
assenta no lógos e, portanto, propõe
um discurso (que é ação pela palavra) que se destina a buscar a verdade. O que
se faria, doravante, seriam debates desinteressados, que visariam a trazer à
tona a verdade. A filosofia tornar-se uma contemplação desinteressada da
verdade (theoria). A theoria será o resultado da ação do lógos, que se assenta no acordo entre o
ser, a razão, o pensamento e a palavra, que são comuns a todos os seres
humanos.
“A opinião é múltipla e variável; a
verdade é uma e imutável. A opinião nasce dos conflitos e os alimenta. A razão
é idêntica em todos os homens e propício à paz”.
(Chauí, 2002: 45)
A
universalidade pretendida pela filosofia ficou, entretanto, no plano das
ideias, pois que, historicamente, veio a ser tornar, para o bem da própria
atividade crítico-reflexiva de que ela é a maior expressão, um palco de
pluralidade de vozes, consoante ensina Chauí:
“Paradoxalmente, essa pretensão da
filosofia de ser universal, de encontrar o acordo entre as ideias e estabelecer
a identidade entre as coisas e o pensamento se realizará como ideal
inatingível, pois, de fato, será feita de desacordos e de oposições entre os
filósofos”.
(ib.id)
Ser um
discurso que se abre para muitas vozes, para muitas perspectivas é próprio da
filosofia. Nos seus vastos palcos, encenam muitas vozes; todas dialógicas,
conflitantes ou consonantes; todas atravessadas pela pluralidade dos discursos.
Todas compromissadas com a verdade.
[1] Chauí,
Marilena. Introdução à história da
filosofia: dos pré-socráticos à Aristóteles, v. 1. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002
___________
Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2008.
Marcondes, Danilo. Hilton Japiassú. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
Marcondes, Danilo. Iniciação
à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2008.
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