sexta-feira, 27 de abril de 2012

"Caminhando e cantando e seguindo a canção..."


                        

                               O retorno do mesmo
Abro a seção Boa Chance do Jornal O Globo, de 22 de abril de 2012 e depara-se-me uma reportagem sobre “erros” de português numa questão de prova de concurso público. No cabeçalho, lê-se Nenhuma das repostas abaixo. Subscrito, topa-se Erro de português em questão de prova de concurso público é mais frequente do que se imagina.
Para muitos, o fato é alarmante (isso deve ter sido um prato cheio para os gramáticos de plantão repisar seus chavões). E os que apreciam o patrulhamento linguístico e creem-se integrados à Guarda de Salvação da Língua Portuguesa devem ter engrossado mais suas opiniões preconceituosas sobre o modo como “a língua de Camões” tem sido tratada aqui nessas terras tupiniquins. E o que dizer dos “erros”?
Os desvios de norma culta se verificaram nos âmbitos da ortografia (grafou-se “exige” com “j” (exije), esqueceu-se o acento agudo em “publico” (“interesse publico”); além disso, grafou-se “senhoragem”, ao invés de “senhoriagem”); da concordância verbal (aqui justificável, como veremos), caso em que o verbo “ser” é pluralizado, ainda que o sujeito, oracional, na variedade padrão, exija o verbo na terceira pessoa do singular (“Ter boas práticas de higiene pessoal são fundamentais”), da concordância nominal (dez pagamento mensais - a presença do numeral na posição pré-nuclear leva à não marcação do plural no núcleo do SN; ademais, a marca de plural, em SN com pré-determinante, ocorre sistematicamente neste elemento e tão-só nele, o que nos leva a conjecturar que houve um lapso quando da não-marcação do plural no nominal, já que o adjetivo subsequente está no plural, sugerindo  que todo o SN deve ser entendido no plural. (cf. Os menino levado / Aqueles barco grande, comuns nas variedades populares.); e, finalmente, de regência, caso em que faltou o emprego da crase, em “Os estados e municípios poderão conceder incentivos as  MPEs...”).
Fazendo eco a Nietzsche, sem pretender, contudo, subverter seu conceito de “eterno retorno”, que, há de se frisar, deve ser entendido dentro dos limites de sua obra, e que tem caráter metafísico - quase místico - sucede que a sociedade nos dá fartos exemplos de práticas, eventos e circunstâncias que retornam incessantemente, a despeito das medidas políticas e/ou científicas para evitar que se repitam. Trata-se do retorno do mesmo. Em matéria de linguagem, o mesmo retorna em forma de discursos que insistem em acentuar a crença equivocada no empobrecimento do idioma, na deturpação dele pelos seus usuários, como se nota no texto da jornalista Maira Amorim, que escreveu a referida reportagem. Dou a conhecer abaixo o trecho inicial:

“Tudo bem que errar é humano e
qualquer um pode se confundir
com o português. Mas, quando
estamos falando de enunciados
e questões de provas de concursos
públicos, maltratar a língua é imper-
doável. Afinal, como cobrar que os
candidatos acertem tudo se nem
mesmo as bancas são capazes
de fazê-lo?”
(grifo meu)

A crença de que a língua pode ser maltratada ou de que ela é constantemente maltratada pelos seus usuários é recorrente no universo da mídia. Ela está arraigada na consciência da maioria esmagadora de indivíduos em nossa sociedade, entre os quais estão aqueles que gozam de maior grau de escolarização e prestígio sócio-cultural. Essa maneira equivocada de entender as complexas relações entre língua e sociedade é ideológica, na medida em que mascara tais relações, legitimando uma dada visão sobre a língua, a saber, a de que ela tem de ser preservada do mau uso feito pelos seus usuários, especialmente se estes proveem das classes menos favorecidas socioeconomicamente. A crença segundo a qual a língua deve ser preservada da corrupção perpetrada por aqueles que são, supostamente, incapazes de se expressar nela é muito velha, pois que remonta ao século III a.C.
Também aquela visão revela as formas como o poder se expressa no âmbito sociolingüístico. Para compreender adequadamente avaliações como aquela, é necessário ter em conta a dinâmica do poder que a elas subjaz: quem o faz ocupa uma posição de prestígio e tem o poder de o fazer. Ao declarar que a língua é maltratada em questões de provas de concurso, a jornalista pressupõe haver indivíduos que a maltratam e supõe não estar entre os “incompetentes”, que usam mal o português. Ademais, atribui a toda uma classe de profissionais responsáveis pela elaboração dos exames a culpa pelos maus tratos à sua língua materna.
Vale notar que, quando falamos de poder, não devemos restringi-lo à esfera do Estado. O poder se imiscui nas práticas dos sujeitos no cotidiano. Nossas relações sociais rotineiras são atravessadas por formas de poder, sutis ou patentes. Pense-se na situação em que um pai se aposse do controle remoto da televisão, enquanto o filho, que estava assistindo a um programa de que gosta, foi atender ao telefone. Ao retornar, a criança pode reivindicar o direito ao acesso ao aparelho, para poder continuar vendo o seu programa, mas sabe que terá de defrontar-se com uma autoridade, com alguém que ocupa uma posição de poder. É claro que o laço amoroso pode sobrepujar a relação de poder, mas, em todo caso, nessa imagem comum do cotidiano, clara está a forma como o poder se manifesta.
Comentarei, brevemente, os casos assinalados como “erros de português” (lembrando sempre que a noção de “erro” em matéria de língua é muito simplista no senso-comum, e mascara uma realidade socio-histórica, marcada por forças ideológicas, que persistem ainda hoje). Dispensando-se o desvio da norma ortográfica, que prevê a grafia “exige” para o verbo “exigir”, particularmente interessante é o caso da concordância verbal. Nesse caso, o sujeito é oracional, ou seja, constituído por uma oração reduzida de infinitivo, como em “Acordar cedo na segunda-feira é muito difícil”, “Trabalhar até às oito da noite me cansa”.  Sucede, contudo, que casos como o do exemplo assinalado pelo jornal são perfeitamente explicáveis pela linguística. Os especialistas mostram que o verbo pode ser flexionado no plural, quando o sujeito, mesmo no singular, sendo extenso, inclui elementos que estejam no plural próximos ao verbo. A concordância se faz por atração, ou seja, o elemento mais próximo, no plural, influencia a relação de concordância, levando o verbo a assumir a forma de plural. Isso explica o emprego de “são”, no enunciado assinalado pelo jornal, já que o núcleo do SN (objeto direto) está no plural - “práticas”. Ao contrário do que se possa imaginar, casos como este são muito frequentes na língua escrita (ocorrências como "um deles saíram", "cada um de vocês falem..." são comuníssimas na escrita de alunos em nível escolar). Essa concordância por “atração” não deveria surpreender os defensores ferrenhos da norma padrão, visto que casos como “a maioria dos deputados foram cassados”, “A grande parte dos funcionários estão demitidos” são abonadas pela gramática normativa. Salta à vista a semelhança entre os casos, nos quais a concordância se dá, por atração, com o elemento no plural, que é o determinante. Mas, note-se bem, que o núcleo sujeito (maioria, parte) está no singular. A despeito disso, o plural também é aceitável na variedade padrão do português.
Finalmente, considere-se o seguinte excerto da reportagem:

“A falta da letra “i” [caso de senhoragem]
pode confundir um candidato, assim como
a ausência de um acento. Entre “publico”
e “público” a diferença vai além do acento
agudo e chega ao significado”.

De fato, o acento agudo em “público” tem valor distintivo. Assim, a presença do acento indica que a palavra pertence à classe do substantivo, ao passo que sua ausência leva-nos a entendê-la como a forma da primeira conjugação do presente do indicativo do verbo “publicar”. Mas a jornalista, como qualquer pessoa leiga em estudos linguísticos, foi incapaz de atentar para um outro fato. “Público” e “publico” não tem a mesma distribuição sintática. Se ela tivesse prestado atenção no ambiente sintático em que figura a forma “publico”, talvez não lhe fosse custoso concluir que qualquer candidato conseguiria inferir se tratar de “público”. Tomemos um trecho do enunciado: “Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse publico perante a Administração”. Note-se que “publico” aparece junto ao substantivo “interesse”. E nós, falantes nativos de português, sabemos, ainda que intuitivamente, usamos adjetivos para modificar substantivos (cf. as medidas governamentais, o plano econômico, o menino travesso, o deputado corrupto, a política pública, etc.). Por outro lado, se nos deparássemos com uma frase como “Eu público mais um texto amanhã”, a despeito da ocorrência de uma forma como “público” (que poderia figurar aí por um equívoco na digitação), o ambiente sintático em que ela ocorre (após o pronome “eu” na função de sujeito e seguindo de um SN na função de complemento) nos permitiria concluir se tratar da forma verbal “publico” (eu publico artigos) e não do substantivo “público”.
A ignorância episódica da jornalista sobre os mecanismos estruturais da língua é compreensível por não ser ela instrumentalizada para analisar com acuidade os eventos de linguagem, mas, de modo algum, podemos aquiescer em sua visão elitista e preconceituosa sobre o uso da língua. 

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